Por Maykon dos Santos
No dia 1º de setembro um Guarda Civil Metropolitano (GCM) assassina uma jovem de 17 anos em Heliópolis. Menos de um mês antes, no dia 07 de agosto, um homem negro, esperava por sua família no estacionamento de um supermercado em Osasco. Seria espancado. Motivo? Acusado de tentar roubar o próprio carro. Entre esses dois episódios, em 24 de agosto, a polícia executa ordem de reintegração de posse na favela Parque do Engenho, no Capão Redondo, a favor de uma empresa de ônibus. Os moradores reagem, a polícia age como sempre e pessoas são feridas, presas, espancadas!
Episódios como esses são tão normais que estão praticamente virando naturais na mentalidade coletiva de nosso país. Duvido, por exemplo, que o leitor lembre o nome da menina assassinada pelo GCM, ou do homem negro espancado pelos seguranças do supermercado. Afinal, a primeira uma moradora de periferia, o outro um homem negro. Como tantos outros nasceram com a cor errada, moram no lugar errado!
Os episódios me fazem lembrar do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Principalmente dos personagens menino mais velho e menino mais moço. O livro retrata a opressão social e étnica orquestrada contra os nordestinos moradores da região conhecida como caatinga. No enredo do livro, os meninos não passam de figurantes. Graciliano não lhes dá nome, pois para o mundo eles não existem. É uma forma do autor de estabelecer comunicação entre os nordestinos de carne e osso e o Brasil que os invisiliza.
Pois bem, a jovem assassinada era Ana Cristina de Machado e deixou uma filha de 1 ano e 8 meses. Já o homem espancado é Januário Alves de Santana, segurança da USP. Mas para a sociedade brasileira ambos não passam de mais um menino mais velho e um menino mais moço. A cor da pele de Januário e o local em que morava Ana os transformam em anônimos, em invisíveis para o sistema. Ambos sentiram na pele o que significa serem sujeitos pertencentes a um lado da estrutura do capital, o lado os oprimidos, e sofreram do racismo que está na constituição da formação da territorialidade dos centros urbanos no Brasil e no mundo.
Em Vidas Secas, Graciliano retrata a vida de pessoas que vivem no sertão brasileiro e o sacrifício delas para sobreviver. Ao ler cada página do livro, percebmos a luta pela sobrevivência diária de um nordestino morador da caatinga. Por isso, o autor traz em seus personagens muito da alma nordestina. Ler Vidas Secas é entender todo um sistema social que, quase como destino, predestina seres humano a um estilo de vida que dificilmente será quebrado. Fabiano, pai do menino mais velho e do menino mais moço, viveu nessa vida. Seus filhos também vão viver.
O paralelo feito até aqui entre Vidas Secas e as Secas vidas de Ana e Januário são fáceis de entender para qualquer morador de periferia brasileira, que cotidianamente se vêem lapidados de condições mínimas de vida. Vivem com salários miseráveis, vivendo no mundo da economia informal e toda sua instabilidade, morando em péssimas condições. Os jovens vivem sem um mínimo de educação, com quase nenhuma abertura para o mercado de trabalho, desempregados, com poucas perspectivas de cursar uma faculdade, além da violência policial e de uma política de extermínio da qual são os alvos prioritários. Ana deixou uma filha, Januário tem dois. Será que como os filhos de Fabiano viveram as mesmas limitações dos pais, os filhos de Ana e Januário irão viver?
Gracialiano Ramos estrutura o livro de uma forma que podemos ler quase todos os capítulos aleatoriamente. Como a vida de um habitante do sertão, que parece viver a vida assim, apenas buscando sobreviver. Os únicos capítulos que devem ser lidos na ordem são o primeiro, chamado “mudança”, e o último, intitulado “fuga”. Esses dois capítulos reforçam a ideia de que toda a miséria que circunda os personagens de “Vidas Secas” representa um ciclo, em que, quando menos se espera, a situação se agrava e a família é obrigada a se retirar, repetidas e repetidas vezes.
Felizmente, os últimos episódios protagonizados pelos moradores de periferia nos demonstram que estes não querem apenas serem mais um menino mais velho e um menino mais moço. A periferia se levanta contra a opressão! Os moradores de Heliópolis se levantaram contra a opressão e protagonizaram cenas de revolta contra a perda de mais um membro da comunidade.
As cenas vistas após a morte da adolescente estão se tornando mais comuns desde pelo menos o final de 2007 e o início de 2008. No final de 2007, os moradores da favela Real Park na Zona Norte de São Paulo, próxima a Marginal do Rio Tietê, deram uma resposta às seguidas chacinas promovidas pela polícia, bloqueando por horas a principal via de acesso à cidade e combatendo com bombas caseiras e molotovs a tropa de choque. No carnaval de 2008, na favela Pela-Porco, em Salvador, quatro garotos foram assassinados pela policia nas tradicionais “faxinas” que antecedem os grandiosos carnavais de Salvador. Os moradores da favela protagonizaram uma revolta que se generalizou por vários bairros com bloqueio de ruas, barricadas com ônibus incendiados e enfrentamento com a polícia. Em fevereiro de 2009, moradores de Paraisópolis também se rebelaram contra a morte de jovens da comunidade. Todos esses episódios mostram que vai se acumulando nos setores mais pobres dos grandes centros urbanos uma profunda insatisfação social que não é captada e organizada pelos sujeitos tradicionais da esquerda, como partidos políticos e sindicato. A crise econômica e a perspectiva de agudização da luta de classes e, consequentemente, da repressão policial, indicam que episódios como esse irão continuar, quem sabe até se agravar.
Que a luta dos moradores de periferia mostrem para nosso país que temos nome. Ana, Januário, Djair e tantos outros que sofreram com o racismo, sendo espancados, mortos são seres humanos e a nossa luta irá ajudar a gravar seus nomes na história de nosso povo como Zumbi, Dandara, Solano Trindade e tantos outros que ousaram se levantar contra o sistema!
Maykon dos Santos é professor, militante do PSOL em São Vicente.