Carta de Curitiba – Fundação do Setorial Ecossocialista do PSOL
Os e as militantes ecossocialistas do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), reunido(a)s em Curitiba nos dias 1, 2 e 3 de abril de 2011, se dirigem ao conjunto do partido, aos movimentos sociais, ecológicos, socioambientais e à sociedade, para, analisando a atual crise planetária, propor ao partido e aos movimentos uma reflexão e uma agenda de lutas comuns.
Não há dúvidas de que estamos imersos em uma crise ambiental planetária de proporções ainda não vividas pela sociedade humana. Sua face mais visível, mas não única, são o superaquecimento da Terra e as mudanças climáticas. Não há um só dia em que não se observe a ocorrência em qualquer parte do mundo de algum fenômeno climático-ambiental extremo. Fenômenos cada vez mais intensos e recorrentes a ponto de um termo do vocabulário de guerra ter sido adaptado para o repertório ecológico: o “refugiado climático” ou “refugiado ambiental”, que já se conta em dezenas de milhões no planeta.
No entanto, o aquecimento global e as mudanças climáticas são apenas a face mais visível de uma crise maior, que se relaciona à atual configuração do modo de produção capitalista, com seu modelo de desenvolvimento produtivista-consumista, baseado na matriz energética fóssil e um modo de vida das elites econômicas mundiais baseado no consumo ostensivo e perdulário, que são, a um só tempo e em todas as escalas, ambientalmente insustentáveis e socialmente injustos.
Outros sinais dessa crise são a escassez da água, onde uma em cada quatro pessoas no mundo de hoje não tem acesso a água potável; a extinção das espécies, que é a mais elevada em 65 milhões de anos; e a ruptura da capacidade regenerativa da terra, que se deu em 1980 e faz com que estejamos, anualmente, sacando 25 e 30% de nosso capital natural. A salubridade para crianças, idosos, mulheres e homens é permanentemente ameaçada e degradada por conta de vetores de doenças infecto-contagiosas, da contaminação da água, do ar e dos alimentos, mas, principalmente, pela irresponsabilidade do poder público e dos agentes capitalistas na gestão de programas e projetos ambientalmente degradantes, além do histórico sucateamento dos sistemas públicos de saúde.
A tudo isso se somam as últimas catástrofes ambientais, como a da região serrana do Rio de Janeiro e a do acidente nos reatores nucleares de Fukushima, cujas conseqüências trágicas ainda não temos como dimensionar o alcance.
Configurada a crise (“policrise”), que é social, ambiental e civilizacional, há uma disputa de natureza ideológica sobre o entendimento das suas causas e métodos de enfrentamento, que confronta, em matizes diferenciados, capitalistas “verdes” versus “ecossocialistas”, ou seja, a disputa sobre projetos de sociedade e, portanto, de civilização.
A compreensão dos que se reivindicam herdeiros da utopia igualitária do Século XIX, à qual se agrega o ecologismo da contemporaneidade, é a de que, nas precisas palavras do Manifesto Ecossocialista Internacional, “o atual sistema capitalista não pode regular, muito menos superar, as crises que deflagrou. Ele não pode resolver a crise ecológica porque fazê-lo implica em colocar limites ao processo de acumulação – uma opção inaceitável para um sistema baseado na regra ‘cresça ou morra’”.
Trata-se, assim, não só de uma crise ambiental e social, mas uma crise da própria civilização do capital, de sua lógica econômica, de seu modelo de desenvolvimento, de seu modo de vida e de seus valores que engendram, a um só tempo, uma desigualdade social cada vez mais abissal entre uma oligarquia global e os mais de um bilhão de humanos que sobrevivem com menos de um dólar por dia. A renda das 500 pessoas mais ricas do mundo é maior do que a das 416 milhões mais pobres do planeta.
Em nosso país, cuja formação histórica, socioeconômica e cultural foi fundada na monocultura de exportação, na escravidão, na sistemática superexploração dos povos indígenas, afrodescendentes e na rapina de nossa natureza, o PAC – com seus megaemprendimentos ecologicamente insustentáveis e socialmente injustos – é, atualmente, a face mais visível de nosso “desenvolvimentismo”.
Hidrelétricas e grandes empreendimentos tais como Belo Monte, Jirau, TKCSA, CSU, a transposição no rio São Francisco, com seu repertório de agressões socioculturais, étnicas e ambientais; a ampliação do programa nuclear, mesmo após a contaminação em Caetités e a tragédia de Fukushima; o ataque à legislação ambiental, configurada na proposta Aldo-ruralista do Código Florestal, mas, também, na flexibilização do licenciamento ambiental – além da agenda excludente das obras da Copa do Mundo e Olimpíadas – demonstram até onde o capital, pelos seus governos e suas empresas, pretendem chegar em nosso país.
Denunciamos e combatemos as relações espúrias e corruptas dos agentes públicos com os grandes grupos financeiros, industriais, empreiteiros e do agronegócio que financiam suas campanhas eleitorais para depois cobrar o preço amargo da destruição e da inviabilização de todas as formas de vida.
Denunciamos os discursos e as práticas supostamente voltadas para a preservação de ecossistemas, mas cuja retórica esconde nefastos interesses pela exploração acelerada dos recursos naturais e a conseqüente desagregação dos diversos biomas e modos de vida humana a eles associados. Esse conjunto de práticas ecocapitalistas baseiam-se em constatações genéricas e, muitas vezes, distorcidas a partir dos grandes processos ambientais e significam, no limite, uma estratégia global para conduzir a política ambiental em direção à segregação social e espacial e ao desarranjo das áreas ecologicamente mais importantes e preservadas.
Denunciamos, também, os traidores das grandes causas da esquerda que, entre a garantia dos direitos das classes trabalhadoras e a aliança com a burguesia internacional, optaram por esta última e se transformaram nos principais fiadores da desgraça e da destruição ambiental. É preciso lembrar que a opção pelo crescimento econômico indiscriminado está diretamente ligada à adaptação da economia brasileira para pagamento dos juros da dívida pública, pois a maior parte da grande produção é voltada para a exportação. A exportação de commodities é também exportação de água, energia e vida do nosso povo e dos nossos ecossistemas. Numa conjuntura onde um governo construído a partir das lutas sociais passa a ser apoiado por forças marcadas pelo conservadorismo mais reacionário, a irresponsabilidade ambiental e a corrupção, vemos que o embate se dá contra dois campos que, apesar de eleitoralmente antagônicos, são cada vez mais próximos nos interesses e nos objetivos que perseguem.
Só um partido que se reivindique da tradição anticapitalista, mas que tenha rompido com as experiências autoritárias, burocráticas e predatórias do chamado “socialismo real” – um partido que dialogue e interaja com as comunidades tradicionais e os movimentos sociais, ecológicos e socioambientais – pode fazer face a esse processo de degradação e configurar alianças táticas e estratégicas para a luta ecossocialista.
É verdade que o Ecossocialismo ainda é uma promessa, uma aposta, mas é uma necessidade premente para garantir nossa sobrevivência enquanto espécie e sociedade, assim como todas as demais formas de vida. Esse ser em processo, em construção, tem como premissas a igualdade social, a sustentabilidade ecológica, a defesa da diversidade em seus aspectos biológico, social, étnico e cultural, além de um novo modo de vida, fundado na premissa do “ser” sobre o “ter”.
Os ecossocialistas propõem uma atuação transversal, pois a luta ambiental deve interagir com os diversos movimentos que compõem a luta pela emancipação social, incluindo as organizações que levantam as bandeiras da reforma agrária e da reforma urbana, a luta sindical e da juventude, bem como dos movimentos contrários ao racismo ambiental e pela igualdade e equidade racial e de gênero. Nossas principais diretrizes de organização:
• É urgente e necessária a construção do programa ecossocialista como forma de qualificar melhor o debate interno ao partido e a sua relação com a sociedade;
• Nossa inserção institucional deve ocorrer em todos os espaços de discussão das políticas públicas, tanto nos conselhos e comissões oficiais como nos fóruns temáticos dos movimentos sociais;
Frentes de luta e propostas de ação:
• Denúncia e combate permanente à tentativa de flexibilização da Polítca Ambiental, notadamente a revisão do Código Florestal, reforçando o ato nacional já convocado pelos movimentos sociais no dia 07/04/2011 em Brasília, os atos estaduais convocados para o dia 28/04 e a atuação do Deputado Federal Ivan Valente, com sua crítica constante e contundente a mais esse ataque do Capital ao meio ambiente;
• Acompanhamento, denúncia e resistência às arbitrariedades e desvios dos projetos, das obras e impactos do PAC, inclusive na preparação para os megaeventos, principalmente no que tange à degradação das condições de trabalho, os despejos e remoções forçadas de comunidades pobres, o estímulo à prostituição e tráfico de mulheres e crianças, bem como à redução da biodiversidade;
• As comunidades atendidas e atingidas pelos grandes empreendimentos, obras de infra-estrutura, planos diretores urbanos, unidades de conservação e projetos agroindustriais devem ter garantida sua participação qualificada, continuada e legitimada em todas as suas fases, desde os diagnósticos até as medidas para tratamento dos impactos.
• Ampla mobilização para enfrentar a questão nuclear e barrar o programa nuclear brasileiro através do parlamento e dos movimentos sociais! Pelo descomissionamento de Angra 1, 2 e 3! Pelo cancelamento de novos projetos de usinas nucleares e do uso militar de artefatos e reatores!
• Ampliar as áreas protegidas por unidades de conservação nos diversos ecossistemas brasileiros, com garantia da participação pública qualificada na gestão e integração aos modos de vida das comunidades locais.
• Por uma reforma agrária ecológica e uma reforma urbana inclusiva e ambientalmente responsável! Contra o Deserto Verde, as monoculturas e a especulação imobiliária!
• Mobilidade humana é uma condição fundamental para o futuro da sociedade e isso significa um apoio irrestrito a movimentos contra a carestia dos transportes públicos (movimentos pelo passe livre e pela tarifa zero), além da luta por uma gestão mais transparente dos sistemas de transporte urbano, a integração entre os diversos modais e o fim da dependência do rodoviarismo.
• Ainda no âmbito das cidades, o lixo e demais resíduos sólidos constituem um desafio inadiável. É preciso atacar com adequada didática os aspectos degradantes do sistema produtivo, tais como a irresponsabilidade das empresas com as embalagens de seus produtos e a ausência de políticas sérias de reciclagem, valorização e proteção aos profissionais da limpeza urbana e da catação.
• As zonas costeiras devem ser geridas como bem público inalienável e como santuário da vida. Portanto, repudiamos toda e qualquer atividade que cause constrangimentos à pesca e à navegação artesanal; ao uso público das praias e demais bens naturais litorâneos; ou a ameaças aos patrimônios genéticos marinhos e estuarinos.
• Pelo reconhecimento e demarcação de territórios quilombolas, terras indígenas e reservas extrativistas! Contra o Racismo Ambiental!
• Contra a Criminalização dos movimentos sociais e as prisões políticas de lideranças e militantes!
Afinal o que se coloca para a humanidade é o desafio da constituição dessa nova sociedade que possa vir a ser, a um só tempo, politicamente democrática, socialmente justa e igualitária, cultural e etnicamente diversa e ambientalmente sustentável. Assim, na esteira de Löwy, poder-se-ia atualizar a consigna de Rosa Luxemburgo para “Ecossocialismo ou Barbárie”!
Em memória de Chico Mendes e Irmã Dorothy Stang