Por Douglas Belchior
Após dez anos de tramitação e completa desconfiguração de seu conteúdo, o Estatuto da Igualdade Racial foi aprovado no dia nove de Setembro, pela Comissão Especial da Câmara Federal.
A demora e o alto custo político até a aprovação do Estatuto demonstram o quanto o povo negro ainda é refém dos interesses dos diferentes setores racistas e partidos políticos herdeiros do escravismo. A articulação política responsável pela aprovação do “estatuto esvaziado” unificou desde ruralistas e grileiros, até gestores públicos e empresários dos grandes meios de comunicação. Isso somado aos explícitos interesses eleitorais colocados, acabou resultando no esquartejamento dos conteúdos de justiça racial do Estatuto. A esta altura, cabe-nos repudiar o retrocesso imposto à luta política por direitos sociais encampado pelo povo negro. Destes recuos, destaca-se:
• O caráter autorizativo e não determinativo do Estatuto aprovado, que não obriga nem Estado, tampouco o setor privado a cumprir as orientações da referida lei;
• A inobservância das políticas de cotas em universidades e nos meio de comunicação, além da restrição das ações afirmativas;
• O não reconhecimento dos territórios tradicionais quilombolas, resultado específico do acordo com ruralistas que, por sua vez, são descendentes dos escravocratas;
• A não criação do fundo de recursos financeiros para a implementação de políticas públicas para a população negra.
Respeitáveis lideranças e diversas organizações do movimento negro ocuparam os holofotes nos dias que se seguiram a aprovação do Estatuto: “Aprovamos o Estatuto possível”, “melhor um imperfeito que um perfeito engavetado”, “Será a oportunidade de construir uma nova democracia” e “Momento histórico para a luta do povo negro”. Esbaldaram-se em meio às comemorações, ao lado de partidários do DEM e do PSDB, por sua vez aliviados por terem garantido a retirada de “todos os pontos com os quais não concordavam”, nas palavras do deputado Onyz Lorenzoni (DEM/RS).
O discurso apaziguante e de acomodação proferido por lideranças e organizações do movimento negro beiram o escárnio. Ao que parecem, os efeitos da tese da democracia racial ganhou força entre os nossos irmãos, que preferem a política do conchavo e o pragmatismo eleitoreiro à luta política por liberdade e direitos de fato. Nestes mais de 500 anos, a “política do possível” garantiu a riqueza de castas, grupos e oligarquias racistas no Brasil. Para a população negra restou a miséria, o abandono, a violência e a morte. Quando não, no máximo migalhas para a sobrevivência do servir.
O acordo que garantiu a desfiguração do Estatuto e sua decorrente aprovação traz a memória o clima “gilbertofreireano” das relações entre os senhores e os seus “escravos de dentro de casa”. Hoje a sutileza da opressão promovida pelos ricos racistas – representados pelo DEM e PSDB, mantém poderosos efeitos de cooptação e silenciamento, que vitima importantes guerreiros da resistência negra.
O Projeto de Lei segue agora para o Senado onde, segundo consta, já existe um acordo para sua aprovação. Se confirmado o texto, a lei poderá ser batizada por um nome mais habitual: “lei para inglês ver”. Assim como na história que dá origem do termo, que retrata a lei do Regente Feijó, que atendendo as pressões da Inglaterra, promulgou, em 1831, uma lei proibindo o tráfico negreiro declarando assim livres os escravos que chegassem aqui e punindo severamente os importadores. Sabe-se que nos anos seguintes o número de negros trazidos pelo tráfico até aumentou. Por isso “lei para inglês ver”.
O tempo dos “avanços simbólicos” é passado. Apesar da importância política da conquista do tal “marco regulatório”, não é possível tolerar a defesa da aprovação de leis que não obriguem e/ou imponha direitos humanitários essenciais à vida. A população negra reivindica leis que garantam mudanças reais em suas vidas! O Estado brasileiro e o grande capital privado, representado pelos grupos racistas e seus lacaios partidários, saíram ilesos e, se depender de um Estatuto como o que temos hoje, assim continuarão.
Não é preciso repetir aqui os já saturados dados que embasam as denúncias de desrespeito aos direitos humanos dirigidos especialmente a população e a juventude negra brasileira. Neste exato momento, as principais forças militares do país guardam presídios e penitenciárias repletas de pretos; ocupam militarmente favelas e bairros periféricos resididos por famílias negras; neste exato momento, jovens e pais de família negros estão sendo “enquandrados” em batidas policiais por parecerem suspeitos. Destes, os de menos sorte serão torturados ou presos… ou mortos; agora mesmo uma mulher negra está sendo violentada; uma criança negra preterida, uma mãe negra humilhada; um trabalhador negro demitido, enquanto outro é recusado. E qual a novidade?
Neste exato momento comemora-se um Estatuto que “sugere” tratamento cidadão ao povo negro brasileiro; que “sugere” tratamento digno por parte do Estado e do grande capital privado.
Como a esperar que um urubu não se alimente da carniça.
Em tempo: Talvez possamos, todos nós, militantes das mais diversas organizações negras e movimentos sociais como um todo, rediscutir nosso papel diante do desafio do combate às elites racistas, uma vez que, mesmo diante de um Estatuto esvaziado em seu conteúdo, ouvem-se os gritos de insatisfação em especial dos setores da academia e aqueles ligados à grande mídia. Por um Estatuto digno da importância histórica do povo negro para a construção do Brasil!
Douglas Belchior é professor de história e integrante do conselho geral da União de Núcleos de Educação Popular para Negros e Classe Trabalhadora (Uneafro).
Fonte: RadioAgência NP
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