Considerando a contribuição do Setorial Estadual de Tecnologia e Antivigilantismo ao 7º Congresso do PSOL/2021 [1] e o ecossocialismo como pressuposto de nossa construção, entendemos pela necessidade de problematização dos ganhos científico-tecnológicos sob perspectivas como a do antipunitivismo – considerando o encarceramento em massa no Brasil, país que ocupa a terceira colocação mundial em termos de população carcerária, conforme dados do Infopen de 2020 [2]. O encarcerameno reflete, em verdade, um projeto classista e racista de controle – principalmente – da população negra, e conta com o sistema penal como instrumento histórico [3] para esses fins.
É importante destacar que tecnologias digitais adentram o sistema penal e acirram a vigilância de grupos já perseguidos e estigmatizados – como é o caso da juventude negra, de pessoas em situação de rua, de ambulantes, de profissinais do sexo. A racialização da vigilância, por exemplo, ganha novos contornos com técnicas de policiamento preditivo – as quais fazem uso de bases de dados historicamente marcadas pelo racismo e que não proverão outro resultado senão a sua intensificação datificada.
Um tema que tem sido objeto de nossas discussões enquanto setorial é o uso de câmeras corporais por efetivos policiais – um assunto que, não raramente, está atrelado ao discurso de maior controle sobre a polícia. Ocorre que, junto à desmistificação dessa expectativa, há elementos que não podem deixar de ser problematizados para uma posição que pondere nossos pressupostos de luta:
- a) A expectativa de que a tecnologia potencialmente promova soluções a instituições marcadas pela militarização e pelo autoritarismo, enquanto confere maior controle da população a essas entidades (que passam a coletar dados pessoais biométricos de comunidades inteiras e eventualmente contam com a possiblidade de as câmeras incorporarem tecnologias de reconhecimento facial, promotoras de vigilância em massa), esconde o fato de não haver controle popular sobre o uso das câmeras – que se fossem pensadas para dar transparência, de fato, para a atuação das polícias, deveriam ficar sob o controle de um órgão independente [4]. Ainda, quando há investimentos públicos nesse sentido, observa-se destinações monetárias vultuosas às polícias ao invés do desinvestimento necessário ao abolicionismo penal.
- b) Muitos entes federativos têm recebido doaçõs de tecnologias voltadas ao policiamento por instituições privadas, que promovem não apenas o uso de novos dispositivos, mas podem – inclusive – operar a infraestrutura tecnológica disponibilizada. É importante ressaltar a sensibilidade do compartilhamento de dados advindos de uma atividade já marcada pelo controle – como é o caso da segurança pública – com a iniciativa privada, por meio da referência a episódios como o do treinamento de inteligência artificial por empresas através dos dados coletados no contexto do processamento que advém dessas doações [5].
- c) Mesmo que a tecnologia fosse implementada com recursos e esforços apenas públicos, não se pode ignorar o perigo da vigilância em massa da população – especialmente no exercício de protestos legítimos, por exemplo, que podem ser filmados (levando ao registro de imagens de manifestantes em vastas bases de dados que reforçam a natureza das instituições voltadas à segurança pública e à persecução penal).
- d) Projetos de lei a favor das câmeras, inclusive propostos pelo próprio PSOL, mencionam a possibilidade de as filmagens serem interrompidas em situações específicas – o que pode se converter em regra para a ocultação de inadequações das corporações no trato com a população. O que se observa por parte das polícias é, para além de uma suposta transparência, a produção de provas que pode ser convertida no ajuizamento de processos contra civis – ao invés da devida prestação de contas (hoje muito comprometidas no que diz respeito ao processamento de dados pessoais, especialmente biométricos, tratados pelas instituições que compõem o sistema penal – e que compartilham bancos de dados para propósitos que não fogem do reforço ao racismo).
Por fim, é necessário referenciar que o caso emblemático de George Floyd não foi solucionado pela filmagem policial e sim pela contravigilância operada por uma cidadã estadunidense.
Deveríamos ter muito cuidado em apontar expectativas por soluções mediadas pela tecnologia sem um balanço sério dos perigos e potenciais danos que apresentam. É necessário fazer uma discussão profunda sobre as câmeras corporais para que o PSOL não se alinhe a projetos potencialmente punitivistas e racistas, por exemplo.
Não se trata de banalizar a suposta redução da letalidade policial, senão entender as minúcias de seus parâmetros para além das reportagens da grande mídia, bem como apontar para uma direção radical que não se configure em mais uma reforma de acomodação institucional.
Nesse sentido, o setorial conduziu a tradução de um texto interessante sobre o tema para fins de sua maior circulação – por estar redigido em português. Ainda, o setorial aproveita para se posiciocar pelo banimento do reconhecimento facial em locais públicos e reforça sua abertura para diálogo, especialmente dentro do partido.
Agradecemos, de maneira especial, a companheirada intersetorial (Setoriais de Negros e Negras e de Segurança Pública) que debateu esse tema conosco no dia 15/02/2022. Saudações, compas!
Para entrar em contato consoco, envie uma mensagem para [email protected].
Referências
[3] FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado Brasileiro. Dissertação de Mestrado. 2006. Universidade de Brasília. Disponível em: http://www.cddh.org.br/assets/docs/2006_AnaLuizaPinheiroFlauzina.pdf.
[4] VITALE, Alex. Fim do Policiamento. São Paulo: Autonomia Literária, 2021, p. 56.
[5] https://www.cnet.com/news/police-free-body-cameras-artificial-intelligence-taser-axon-vievu/
AS CÂMERAS CORPORAIS VÃO AJUDAR A ACABAR COM A VIOLÊNCIA POLICIAL?
[Tradução* de texto disponível em https://www.aclu-wa.org/story/%C2%A0will-body-cameras-help-end-police-violence%C2%A0]
Na esteira dos assassinatos de George Floyd, Breonna Taylor e incontáveis outras vidas negras nas mãos da polícia, famílias afetadas e grupos comunitários, defensories da reforma da polícia, legisladories e até mesmo departamentos de polícia têm pedido que as agências de aplicação da lei adotem e expandam os programas de câmeras corporais.
Esta apelo não é novo. Câmeras corporais foram propostas como uma ferramenta de responsabilização policial após as mortes de Michael Brown e Eric Garner, em 2014. Elas foram exigidas após o assassinato policial de Philando Castile, em 2017, e estão sendo evocadas novamente hoje, conforme a polícia continua a brutalizar vidas negras e usar força excessiva sobre es manifestantes que defendem a justiça racial.
Quem pede pelas câmeras corporais vê a tecnologia como uma ferramenta para melhor monitorar a conduta da polícia. Alguns dos seus defensories esperam que as câmeras reduzam a má conduta e aumentem a responsabilidade da polícia. Em alguns casos, as imagens da câmera corporal lançaram luz sobre a má conduta policial, que não teria sido testemunhada de outra forma. No entanto, é importante observar que, mesmo quando as filmagens da câmera corporal demonstram claramente a má conduta policial, muitas vezes essas filmagens não ajudam a responsabilizar a polícia.
Contra o cenário de algumas vozes que defendem mais câmeras corporais, outras vozes ainda estão pedindo o desinvestimento de recursos da polícia e o reinvestimento nas comunidades. Elas nos advertem a considerar se faz sentido aumentar os orçamentos da polícia para gastar milhões de dólares construindo e mantendo programas de câmeras corporais que expandam os poderes de vigilância policial e representem preocupações conhecidas com relação às liberdades civis.
Embora seja claro que as imagens de vídeo, incluindo imagens de câmeras corporais, têm desempenhado um papel importante em impulsionar a conversa sobre a responsabilização policial, as evidências sobre as câmeras corporais serem uma ferramenta realmente eficaz para a responsabilização policial são, na melhor das hipóteses, controversas. Antes de mais nada, é igualmente controverso saber se as câmeras corporais previnem má conduta e violência policial. Uma revisão abrangente de 70 estudos empíricos de câmeras corporais descobriu que as câmeras corporais não tiveram efeitos estatisticamente significativos ou consistentes na redução do uso da força policial. Enquanto alguns estudos sugerem que as câmeras corporais podem oferecer benefícios, outros não mostram nenhum impacto ou até mesmo possíveis efeitos negativos.
Em 2017, pesquisadories conduziram um dos maiores testes de controle randomizado com câmeras corporais que incluiu mais de 2.000 policiais em Washington, DC, e descobriram que as câmeras corporais não tiveram impacto estatisticamente significativo no uso da força por oficiais, nas reclamações de civis ou nas prisões de oficiais por má conduta. Em outras palavras, as câmeras corporais não reduziram a má conduta policial. Uma meta-análise de 2020 também encontrou uma incerteza substancial sobre se as câmeras corporais podem reduzir o uso da força pelos policiais.
Um estudo recente de 2021 descobriu que, em média, as câmeras corporais reduziram o uso da força em quase 10%, mas es autories do estudo observaram que seus resultados podem ter sido inflados pelo viés de seleção do local. Es autories também reconheceram que as câmeras corporais não são uma solução para a violência policial.
Embora em alguns casos de grande repercussão as filmagens das câmeras corporais tenham sido usadas em julgamentos que levaram à condenação de policiais, as filmagens das câmeras corporais são desproporcionalmente usadas para processar civis em vez de policiais. Um estudo de 2016 descobriu que 92,6 por cento das promotorias em jurisdições com câmeras corporais usaram essas imagens como evidência para processar civis, enquanto apenas 8,3 por cento usaram-nas para processar policiais. Da mesma forma, um relatório investigatório da Fusion descobriu que as câmeras corporais são mais prováveis de serem usadas para inocentar os policiais de transgressões e reduzir os custos do litígio, em vez de responsabilizar os policiais. A falta de evidências claras sobre a eficácia das câmeras corporais indica que, no mínimo, mais pesquisas são necessárias.
A ideia de que as câmeras corporais podem ter pouco ou nenhum impacto sobre o policiamento – seja na prevenção da violência policial ou na responsabilização da polícia após o fato – pode parecer contraintuitiva, mas talvez não devesse ser tão surpreendente.
Em primeiro lugar, ao contrário das filmagens de espectadories que ajudam as comunidades a vigiar a polícia, as câmeras corporais e as filmagens coletadas por eles são gravadas do ponto de vista dos policiais e controladas pelas autoridades policiais.
Embora, em alguns casos, a filmagem da câmera corporal tenha sido crítica na captura da violência policial onde não havia espectadores, é importante notar que a filmagem da câmera corporal pode ser incompleta e, em muitos casos, é manipulada ou editada para reforçar as narrativas policiais do que ocorreu durante um incidente, em vez de retratar a imagem completa. Como os policiais têm o poder de controlar as câmeras e as filmagens coletadas, as filmagens da câmera corporal podem distorcer a realidade, ao mesmo tempo que fornecem uma ilusão de precisão. Por exemplo, em 2014, agentes da Flórida perseguiram e espancaram um suposto traficante de drogas chamado Derrick Price. Enquanto as imagens da câmera corporal pareciam confirmar o que es policiais escreveram em seus relatórios de incidentes – que o Sr. Price estava resistindo à prisão – uma câmera de vigilância de um prédio próximo contradizia completamente esses relatos e mostrou que o Sr. Price havia claramente tentado se render voluntariamente, mas ainda assim havia sido espancado brutalmente.
Em segundo lugar, as câmeras corporais podem servir mais como uma ferramenta para monitorar civis e violar os direitos das pessoas do que para responsabilizar os policiais. Como as câmeras corporais podem circular por espaços públicos e privados, elas capturam uma enorme quantidade de dados sobre as pessoas, para além dos dados daquelas que interagem com a polícia em uso das câmeras.
As câmeras corporais e as filmagens que coletam representam riscos imensos à privacidade para indivíduos e comunidades, especialmente porque muitas vezes não há transparência ou responsabilidade sobre como os dados coletados são usados, mantidos ou compartilhados com terceiros, incluindo empresas e outras instituições estatais, como a de controle de imigração.
Os riscos de privacidade impostos pelas câmeras corporais são amplificados quando a polícia as usa em conjunto com outras ferramentas poderosas de vigilância, como reconhecimento facial e ferramentas de monitoramento de mídia social, as quais estão sendo cada vez mais usadas para identificação de manifestantes. De forma alarmante, as empresas já desenvolveram câmeras corporais integradas ao reconhecimento facial, uma tecnologia comprovadamente imprecisa e eivada de viés racial. Apenas no ano passado, o público soube de pelo menos três homens negros injustamente presos e encarcerados devido à tecnologia de reconhecimento facial racialmente tendenciosa. O uso dessas ferramentas de vigilância pode não apenas refrear o exercício do direito de protesto decorrente da Primeira Emenda, seu uso pode levar a prisões ilegais que violem o direito de não ser objeto de buscas e apreensões desarrazoadas.
Por último, uma longa história de vigilância / o longo histórico da vigilância estabelece uma conexão estreita entre o aumento da infraestrutura de vigilância e o agravamento do preconceito racial no policiamento. As ferramentas de vigilância sempre prejudicaram desproporcionalmente as comunidades mais marginalizadas em nossa sociedade, tenham ou não sido projetadas para isso. Desde o uso da máquina de tabulação do censo da IBM para rastrear e encarcerar nipo-americanos durante a Segunda Guerra Mundial até o uso de leitores automatizados de placas para vigiar a comunidade muçulmana após o 11 de setembro, as ferramentas de vigilância nas mãos da polícia sempre fortaleceram racismo e injustiça. As raízes racistas de nosso sistema de policiamento estão inextricavelmente ligadas às ferramentas de vigilância que alimentaram e continuam a alimentar a violência policial e a supremacia branca.
Se nosso objetivo é acabar com a violência policial, devemos questionar se as câmeras corporais são um bom investimento, uma vez que as pesquisas mostram que elas não param ou restringem a brutalidade policial, ao mesmo tempo que apresentam preocupações conhecidas com relação à privacidade e às liberdades civis. Além disso, as raízes profundas do policiamento na supremacia branca devem nos dar uma pausa na noção de que câmeras corporais podem limitar ou prevenir a violência policial, particularmente contra comunidades negras. Se a história do policiamento na América torna o policiamento inerentemente inclinado para a violência contra comunidades negras, então precisamos de menos polícia e menos policiamento para conter a violência policial – não mais recursos de policiamento, incluindo câmeras corporais.
Antes de gastar milhões de dólares em mais tecnologia de câmeras corporais que aumentarão significativamente os já excessivos orçamentos da polícia, devemos primeiro examinar se esse dinheiro é melhor gasto em outros serviços com um impacto mais significativo na segurança pública. Quando tantas pessoas – desproporcionalmente negras – estão sem casa, não têm assistência médica e lutam para receber educação adequada, vale a pena perguntar se investir recursos municipais limitados em câmeras corporais resolverá os problemas básicos que alimentam a violência policial e a supremacia branca, ou se esse dinheiro poderia ser investido em estratégias mais promissoras para tornar nossas comunidades mais seguras.
*apesar de o texto original não usar linguagem neutra, fizemos adaptações nesse sentido.