Luciana Genro
Uma contribuição ao debate do PSOL
A “Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político” é uma importante contribuição de diferentes organizações sociais para o debate da Reforma Política. Em vários aspectos, mas particularmente no que diz respeito ao fortalecimento dos mecanismos de democracia direta, as propostas são bastante avançadas e devem ser incorporadas pelo PSOL. Também muito importante, a contribuição do companheiro Chico Alencar sistematiza várias propostas que refletem um acúmulo de debates partidários, sendo que alguns pontos são ainda objeto de polêmica, como a extinção ou não do Senado. No mesmo sentido vai a contribuição do companheiro Edilson Silva. Não pretendo, neste texto, fazer uma apreciação global dos temas que envolvem a reforma política, mas sim contribuir em alguns pontos que julgo ainda pouco debatidos.
O objetivo das classes dominantes e dos partidos da ordem com a reforma política é restringir a democracia, fortalecendo os mecanismos de controle para que as eleições proporcionem apenas uma alternância entre as grandes siglas e não coloquem o risco de uma alternância real de projetos políticos estratégicos. Neste sentido a cooptação completa do PT para o status quo dominante foi um ganho fundamental do regime. Agora eles necessitam ir adiante fortalecendo os (seus) partidos políticos e criando um forte sistema partidário que garanta esta estratégia. Os apelos enfáticos e quase unânimes pela cláusula de barreira são uma demonstração cabal desta preocupação.
Nosso partido precisa intervir neste debate com o objetivo inverso: lutando por democracia, uma verdadeira e portanto radical democracia. Se o regime necessita fechar os espaços democráticos garantindo estabilidade política para que as decisões tomadas pelo povo nas eleições não ameacem a dominação de classe, nós precisamos garantir que estes espaços estejam abertos para que tenhamos condições de seguir dialogando com o povo, ganhando as vanguardas e preparando o futuro. A estabilidade política das classes dominantes de hoje não vai durar para sempre. Eles sabem disso, por isso a reforma política é uma preparação para o futuro, uma garantia estratégica para o regime. Nosso papel neste enfrentamento será lutar contra todas as medidas que signifiquem maiores garantias de estabilidade política para o regime e menores brechas democráticas para nossa atuação. Temos que empurrar na contramão dos interesses dominantes.
São muitos os problemas do nosso sistema político eleitoral e muitas são as mudanças necessárias para que se possa, eventualmente, afirmar que ele é verdadeiramente democrático e que o resultado da eleição é uma expressão real da vontade do povo, consciente e livremente construída. Para intervir de forma conseqüente no debate da reforma política temos que defender bandeiras que signifiquem uma democratização real do processo eleitoral.
O primeiro e maior problema a enfrentar é a absoluta subordinação do sistema político-eleitoral ao poder econômico. Sabemos que acabar com a influência do poder econômico dentro de um sistema capitalista seria uma utopia. Mas é preciso enfrentar o problema, propondo mudanças profundas nas normas que regulamentam as campanhas eleitorais. A primeira medida é acabar com o financiamento privado das campanhas.
Não preciso argumentar sobre isso pois todos nós vivemos na pele as consequências do poder econômico nas campanhas. É unânime, creio, a definição pela defesa do financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais. Esta é uma medida fundamental para uma mínima democratização do processo eleitoral. Neste ponto esbarramos no tema da lista fechada. Explicar às pessoas a necessidade do Estado investir recursos que faltam em tantas esferas de interesse do povo já não é uma tarefa fácil, mas absolutamente necessária. Mas defender a lista fechada é ainda mais difícil e, do meu ponto de vista, totalmente equivocado do ponto de vista estratégico.
A rejeição popular não é uma razão suficiente para que sejamos contra a lista fechada. Muitas vezes é dever da vanguarda da sociedade – na qual se encontra nosso partido – enfrentar debates espinhosos e impopulares. Um exemplo disso é a questão da maioridade penal ou o próprio financiamento público. Mas os argumentos que defendem o sistema de lista fechada não se sustentam se o nosso objetivo for a luta por mais, e não menos, democracia. Não tenho dúvida que o primeiro resultado da adoção da lista fechada será uma diminuição brutal no nível de renovação dos parlamentos, facilitando a vida dos velhos caciques partidários que sequer precisarão pedir votos e terão sua eleição garantida.
A alegação de que é preciso fortalecer o sistema partidário pois no nosso modelo os partido são frágeis, desideologizados e fisiológicos não me convence. De que serve aos propósitos democráticos e socialistas a defesa do fortalecimento deste sistema partidário? Não serve para nada. Ao contrário, só teremos mais democracia à medida que estes partidos forem cada vez mais fracos, que a sociedade se liberte dos seus grilhões e construa outras formas de representação política. Não será através do fortalecimento deste sistema partidário, e muito menos através da adoção da lista fechada, que garantiremos mais debate ideológico nas campanhas, menos fisiologismo e mais democracia. A lista fechada só serve aos grandes partidos, principalmente ao PT, PMDB e PSDB que querem garantir o seu futuro de dominação de classe.
É ilusão imaginar que a partir da adoção da lista fechada teremos debates mais programáticos no processo eleitoral, partidos com mais ideologia e menos fisiologismo ou que o foco dos eleitores vai, como num passe de mágica, deslocar-se das pessoas para os programas partidários. Estas mudanças podem ocorrer por um processo de politização da sociedade, no qual a adoção da lista fechada poderá até ser parte de uma etapa final, mas jamais o primeiro passo. No atual estágio das coisas, o único resultado concreto será o maior poder das burocracias partidárias e mais força para os já grandes partidos.
É evidente também que obrigar os partidos a realizarem prévias para montar as listas não mudaria a lógica do caciquismo. Com certeza estes processos reproduziriam em escala menor o que já acontece no processo eleitoral atual: o poder econômico e político é o decisivo.
O modelo Belga, proposto pelo companheiro deputado Chico Alencar, pode ser uma boa opção. É preciso, entretanto, ir além no debate pois se o eleitor pode votar nas pessoas, além das listas, como será a campanha eleitoral?
O sistema de financiamento público, por si só não garante um aprofundamento real da democracia. Se os caminhos por onde passa o dinheiro seguirem legalizados, o abuso seguirá. Hoje já existem leis que punem os “abusos” do poder econômico, mas elas são totalmente insuficientes pois os verdadeiros abusos acontecem dentro da lei. Temos, então que restringir os caminhos pelos quais o dinheiro é gasto nas campanhas, tentando assim restringir também o peso do poder econômico nos seus resultados.
As campanhas eleitorais tem que ser restritas à televisão e aos materiais impressos. Proibir a pintura de muros, colagem de cartazes, carros de som, placas e etc seriam medidas profiláticas básicas. Uma medida muito importante seria proibir os cabos eleitorais pagos. No primeiro debate sobre reforma política que participamos na Câmara enquanto PSOL, em 2005 se não me engano, defendemos esta proposta.
É preciso dar a esta prática o mesmo tratamento dado às formas mais diretas de compra de votos. E não podemos aceitar o argumento de que não adianta proibir pois vai continuar acontecendo. É claro que vai, assim como a compra de votos escancarada, na sua forma ilegal, acontece, mas ninguém ousa propor que se legalize a compra de votos simplesmente por que ela existe. O crime eleitoral é um fato, como é qualquer tipo de crime, e as leis servem para tentar inibi-los e puni-los.
Tornar crime qualquer tipo de negociação política que envolva remuneração em troca de apoio não baniria esta prática por completo mas daria a ela um status ilegal, com todas as consequências daí decorrentes. Seria necessário, inclusive, endurecer a legislação que pune os crimes eleitorais, tornando esta prática mais arriscada para os seus adeptos. A própria sociedade seria instada a fiscalizar. Este seria um verdadeiro exercício de cidadania: zelar para que ninguém troque apoio político por dinheiro. O que hoje é dito e encarado com naturalidade – apóio este candidato por que ele está me pagando – se tornaria crime eleitoral.
Quando falo em proibir os cabos eleitorais pagos não me refiro só aos carregadores de bandeira e entregadores de panfletos. Eles são o de menos. Me refiro fundamentalmente à compra de lideranças políticas, comunitárias, sindicais, estudantis. Uma compra que no atual modelo é encarada com a maior naturalidade e, na verdade, constitui-se na forma mais grave e danosa de compra de votos. Quando um candidato a deputado estadual faz um “acordo” que envolve recurso financeiros para um vereador para lhe apoiar, este vai para a sua comunidade pedir votos à um candidato no qual ele não necessariamente confia mas que o está remunerando para tal. O mesmo vale para o candidato a vereador que “contrata” o líder comunitário para apoiá-lo. O mesmo mecanismo repete-se. Entretanto as pessoas acabam votando nestes candidatos graças ao pedido feito por alguém no qual elas tem uma referência e algum tipo de confiança. Mas esta pessoa que lhe pediu o voto não fez por convicção, mas por dinheiro!O resultado disso é uma distorção completa da vontade popular.
Então temos que defender o financiamento público com lista aberta, ou flexível, junto com mudanças nas regras da campanha que restrinjam os caminhos pelos quais o abuso do poder econômico acontece. Os partidos receberiam os recursos e pagariam os programas de televisão e os panfletos para os seus candidatos na forma da lei. Seria necessário, portanto, uma legislação básica que impeça os partidos de concentrar dinheiro só nos candidatos da máquina, assegurando um mínimo de estrutura para todos.
Nossa luta na reforma política tem que ser para que as forças vivas da sociedade possam se expressar nos processos eleitorais, atuando sem ter que, necessariamente, subordinar-se aos partidos que são estruturas podres e viciadas. A permissão de candidaturas avulsas, com representação social mas sem filiação partidária, vai neste mesmo sentido. Democratizar o exercício da política passa longe do fortalecimento deste sistema partidário corrompido, vazio de representação real e de ideologia.
Não menos importante é regrar de forma democrática a distribuição dos recursos públicos que serão entregues aos partidos e o tempo de televisão, assegurando em ambos uma menor desigualdade e a todos a garantia de participação nos debates. Temos que combater ferozmente qualquer proposta de cláusula de barreira, demonstrando que o fim dos partidos nanicos fisiológicos vai acontecer quando a política eleitoral deixar de ser um negócio onde os donos dos partidos cartoriais vendem o seu apoio e o seu tempo de televisão. O fim das coligações proporcionais também me parece um bom começo neste caminho, nunca a cláusula de desempenho. Esta tem como objetivo central tirar da televisão os partidos que estão fora do sistema que serve aos grandes.
Resistir ao retrocesso e lutar por democracia. Esta é a tarefa central do PSOL no embate da reforma política. Um embate que pode ser decisivo para garantir condições mínimas de sobrevivência eleitoral aos que não estão a serviço do capital.
*Luciana Genro foi uma das fundadoras e primeira líder da bancada federal do PSOL