Escrito por Gabriel Brito, da Redação do Correio da Cidadania
Um dos principais assuntos do verão paulistano desta temporada foi o constante alagamento da região do Jardim Pantanal, extremo leste da cidade de São Paulo. Abandonados por políticas públicas, os moradores foram vítimas de mais um capítulo das remoções forçadas, nova praxe das metrópoles nacionais, com o objetivo de se limpar a área para a construção do Parque Linear do Tietê.
Após a repercussão momentânea do assunto, a rotina desses paulistanos não mudou. Continuam vivendo em ruas e casas alagadas, sofrendo com a truculência dos órgãos públicos. Em entrevista ao Correio da Cidadania, o integrante do movimento Terra Livre Marzeni Pereira nos conta como se deu a ocupação de um terreno da Vila Curuçá por ex-moradores do Pantanal, desesperados por novas e dignas moradias.
Na conversa, Marzeni nos fala sobre convicção que esses cidadãos têm em relação à má fé do poder público em sua atuação na área, sem oferecer moradias e sem cumprir com o famigerado bolsa-aluguel. Ele, que também é professor de Geopolítica e Cidadania de um cursinho oferecido aos habitantes da região, lista as exigências das famílias vitimadas pela chuva e pela falta de planejamento urbano reinante na cidade. De quebra, lamenta que as eleições deste ano não ofereçam perspectivas de políticas efetivas para a solução de mais este drama social.
A entrevista completa pode ser conferida a seguir.
Correio da Cidadania: Os moradores da Vila Curuçá são os mesmos atingidos pelos alagamentos da várzea do Tietê, correto? Como essas famílias se organizaram para ocupar o terreno?
Marzeni Pereira: São os mesmos, sim. São cerca de 100 famílias e todas da região.
Há um movimento local, o MULP (Movimento Urbano pela Legalização do Pantanal), que foi procurado pelas famílias no sentido de se encontrar uma saída para a situação, pois a prefeitura não providenciava nada e não oferecia alternativa.
O objetivo dessas famílias é conseguir uma moradia, o que não é possível com o bolsa-aluguel, até porque muitos dos cheques dados voltaram. Além disso, outras perderam a casa sem indenização e a ocupação acabou sendo a alternativa.
CC: Depois da alta repercussão à época das chuvas, como ficou a rotina desses moradores, inclusive os que permaneceram? Persistem os alagamentos?
MP: Sim, continuam, já que o rio está assoreado e a água não desce. Agora o rio fica cheio quase que o tempo todo, qualquer chuva já faz a água voltar às casas das pessoas. Portanto, continua um drama.
Tem casa que está com água desde dezembro. Hoje não é a mesma coisa daquele mês, mas várias moradias continuam com água dentro.
CC: A prefeitura garantiu ações após a reunião que fez com esses moradores em 12 de fevereiro? Houve outros encontros?
MP: Não. Na verdade, ela só propõe uma alternativa, o bolsa-aluguel, de 300 reais por mês. Porém, esse valor é totalmente insuficiente, ninguém consegue aluguel a esse preço em São Paulo. E derrubaram as casas das pessoas que aceitaram o cheque sem que elas recebessem indenização.
Depois daquele encontro de 12/02 não tivemos nenhum outro, já que o prefeito não fala com a gente.
CC: E houve ajuda de órgãos oficiais, como a Defesa Civil, no sentido de auxiliar os moradores a lidarem com as chuvas e resolver um pouco de seus problemas naqueles bairros?
MP: A Defesa Civil só vem ajudar a arrancar as pessoas da casa. O chefe da Defesa Civil sempre está nas ações de remoção. Eles não vêm para amenizar a dor das pessoas, vêm apenas para expulsá-las.
CC: Acredita que, com a construção do Parque Linear do Tietê, os governos permitirão a continuidade de moradias perto dali ou se confirmará a higienização social, a fim de favorecer a especulação imobiliária através da valorização da área?
MP: No local onde farão o parque, não se podem construir residências. Mas percebemos que, no limite, no entorno do parque, existem muitas indústrias e empresas dos aparelhos governamentais. E elas vão permanecer, só sairão as atuais residências.
Por enquanto, a idéia da higienização é só um prognóstico. Mas sabemos que a região fica perto do Aeroporto de Cumbica e há o interesse em se fazer algum projeto por aqui. Ainda não temos certeza, mas poderia ser algo como uma Vila Olímpica, para abrigar turistas ou delegações que venham à Copa do Mundo, por exemplo.
CC: Que exigências fazem os moradores da Vila Curuçá? A prefeitura está negociando?
MP: Tem uma lista boa de exigências, mas existem cinco que são mais primordiais.
A primeira é o fim das remoções forçadas. A prefeitura não pode forçar a derrubada das casas. Nós achamos que o governo tem o direito de projetar um parque desses, mas antes deve dar uma destinação correta às famílias que moram lá. Já derrubaram 3000 casas, sem conceder o bolsa-aluguel e novas moradias na mesma proporção. Sendo assim, o primeiro ponto é o fim imediato das ações de derrubada.
O segundo é o fim do terrorismo e do desrespeito aos direitos humanos dos moradores em ações nas áreas inundadas. Eles chegam lá sem qualquer mandado judicial dizendo para as pessoas que vão derrubar as casas e derrubam mesmo. Às vezes a pessoa sai de casa e, quando volta do trabalho, a casa está no chão. Em outros casos, a pessoa volta pra casa e seus móveis estão colocados na frente de outra casa.
Exigimos também a construção sem custos de moradias para abrigar as famílias atingidas. Ou seja, trocar a casa da qual a pessoa foi removida por outra. Isso porque a prefeitura fala que vai construir novos apartamentos para as pessoas afetadas, mas irá vendê-los ao invés de concedê-los em troca da casa derrubada. E as famílias que já tinham sua casa querem outra em troca sem ter de comprar nada. O terreno da Vila Curuçá, declarado zona de interesse social e local onde a prefeitura pretendia construir apartamentos para essas famílias, é um desses casos em que a prefeitura quer vender as casas para as pessoas, que ainda ficariam sem indenização.
O quarto ponto é exatamente o da indenização, no caso em relação aos prejuízos causados pelas chuvas e enchentes do verão. Tanto morais como materiais. Morreram pessoas, centenas adoeceram… Ficou uma seqüela muito grande disso tudo, principalmente nas crianças. E tudo se deve à ação governamental, que comprovadamente fechou as comportas no dia 8 e só as reabriu no dia 10, além de ter permitido a abertura da barragem. O governo poderia abrir a barragem? Sim, poderia, mas com planejamento. E mesmo que não houvesse qualquer possibilidade de evitar a inundação, era obrigação ter um planejamento preventivo, um plano de evacuação, além de também avisar as pessoas para que deixassem as áreas antes do pior.
Outra exigência é um plano habitacional. Não só nessa região como também em outras, em áreas de risco, de encostas… É da responsabilidade do governo fiscalizar as áreas que não devem ser ocupadas, e o governo foi omisso em exercer tal papel. Quem tem todo o conhecimento e mapeamento das áreas de risco não é a população, e sim as instâncias governamentais. Obviamente, as chuvas realmente foram problemáticas, mas não havia políticas de habitação, prevenção, evacuação de áreas… Portanto, todos esses pontos somados fazem do governo o grande culpado.
O quinto ponto se refere à ocupação do terreno. As famílias da vila Curuçá, acampamento que deve se chamar ‘Ocupação Alagados do Pantanal’, têm o entendimento de que o governo age de má fé, pois não indeniza as famílias pelas moradias derrubadas. Como dito, os apartamentos a serem construídos serão vendidos, e não entregues em troca da casa que as famílias perderam. E as famílias também reivindicam linha de crédito para que possam tocar as construções das casas por conta própria.
CC: Essas famílias que ocuparam o terreno da Vila Curuçá já sofreram algum tipo de repressão dos órgãos públicos?
MP: Já. A área foi ocupada entre o sábado, 17, e o domingo, 18, por volta de meia noite, e no dia seguinte a polícia apareceu por volta de meio-dia. Não fizeram nada nessa primeira ocasião, apenas perguntaram quem eram as lideranças e foram embora. Respondemos que não há lideranças, e sim comissões, que tomam decisões em assembléias.
Na segunda-feira, foram aparecendo três, quatro, cinco viaturas, e ficaram lá, não permitindo a entrada de materiais, como madeira e outros que serviriam para as barracas. De quinta para sexta, não deixaram entrar nem água e nem comida. Nessa hora, o deputado Raul Marcelo ligou para o coronel da área, que deu uma relaxada nas ações e disse não se tratar de orientação sua. A partir disso, aliviou a situação.
Uma coisa interessante que o movimento fez foi uma carta aos moradores do entorno, explicando o que acontecia e quem eram, de modo a tranqüilizar essa vizinhança. E o apoio foi muito grande, várias das famílias que moram por ali se solidarizaram e prestaram apoio aos moradores da ocupação.
CC: Outros moradores da várzea do Tietê estão se organizando para a mesma ação de ocupar terrenos livres?
MP: Houve uma outra ocupação em Suzano, não sei o local exato, mas foi mais desorganizada. Mas de fato eram moradores do Jardim Pantanal também, e ocorreu alguns dias antes da Vila Curuçá.
Não há novas ocupações agendadas, mas depende da ação do governo. Se não houver nenhuma ação para minimizar os problemas da região, obviamente vai acontecer alguma coisa. É natural, o ser humano vai procurar saída para viver um pouco melhor.
CC: Como avalia a política habitacional dos governos municipal e estadual?
MP: Não existe! O que existe é somente propaganda. Qual é a política desses caras? São milhões de famílias sem moradia e qual a política de habitação deles? Há alguns apartamentos da CDHU, alguma coisa nas Cohabs, mas numa quantidade muito insuficiente, não cobre nada da demanda. É uma política que existe só pra fazer propaganda.
Na realidade, não são políticas que visam cobrir a real necessidade. Servem apenas para dizer em propaganda que existem.
CC: Quais as perspectivas dos moradores da região do Pantanal e também das organizações de luta pela terra com este ano eleitoral?
MP: Bom, vai ter muita promessa. Os dois projetos que se apresentam com chances de ganhar são a mesma coisa. Têm maneiras diferentes de agir, mas no final das contas é o mesmo projeto e serão aplicadas as mesmas políticas. Tanto Serra quanto Dilma têm o mesmo projeto, de garantir que uma mesma elite continue ganhando muita grana, com o mesmo modelo de sociedade, de política, de economia de mercado.
De fato, existem diferenças no trato, mas no fim dá no mesmo. O Serra tem uma política de confronto, de ir pra cima, jogar a polícia e criminalizar diretamente os movimentos sociais. Já o governo Lula-Dilma tem uma política mais de cooptação das lideranças dos movimentos. Mas praticam criminalização dos movimentos também, com o judiciário tratando-os como quadrilhas, com as multas aos sindicatos, com a perseguição ao MST… São a mesma coisa.