Miguel Urbano Rodrigues
Há meses que me sento diante do computador para escrever este artigo. Mas o projecto foi adiado dia após dia.
Quando Domenico Losurdo me ofereceu Stalin -Storia e critica de una leggenda nera*, já lera criticas sobre a obra. Mas não a imaginava.
Qualquer texto sobre pessoas que deixaram marcas profundas na história, quando escrito sem o suficiente distanciamento temporal, cria sempre grandes problemas ao autor.
Vivi essa situação este ano ao publicar um desambicioso artigo –Sobre Trotsky – Do Mito à Realidade (odiario.info). Em Portugal, alguns camaradas que admiro acusaram-me de trotskista; no Brasil, onde o artigo, mais divulgado, desencadeou polémicas, professores das Universidades de Campinas e do Rio Grande do Sul dedicaram-me trabalhos académicos, definindo-me como stalinista ortodoxo.
Domenico Losurdo aborda no seu Stalin aspectos muito polémicos da intervenção na História do homem que na prática dirigiu a União Soviética durante quase três décadas. Não conheço obra comparável pela ausência de paixão e pela densidade e profundidade da reflexão sobre o tema.
Stalin foi um revolucionário que liderou a luta épica da União Soviética contra a barbárie nazi. Por si só esse combate em defesa do seu povo e da humanidade garante-lhe um lugar no panteão da História.
Sinto, contudo, a necessidade de acrescentar que nunca senti atracção por Stalin. Não admiro o homem. A sua personalidade aparece-me inseparável de actos e comportamentos sociais que reprovo e repudio.
A contradição não me impede de escrever este artigo, estimula-me a assumir o desafio.
A DEMONIZAÇÃO DE STALIN
A demonização de Stalin principiou nos anos 20, adquiriu proporções mundiais com o XX Congresso do PCUS, foi retomada durant e a Perestroika e prosseguiu após o desaparecimento da União Soviética, embora com características diferentes. Ao proclamar "o fim do comunismo", a intelligentsia burguesa, empenhada em demonstrar a inviabilidade do socialismo, diversificou a ofensiva, atribuindo a Marx, Engels e Lenine grandes responsabilidades pelo "fracasso inevitável da utopia socialista". Stalin foi sobretudo visado como criador e executor de uma técnica de governação ditatorial, monstruosa. A palavra stalinismo entrou no léxico político como sinónimo de um sistema de poder absoluto que teria negado o marxismo ao impor «o socialismo real» mediante métodos criminosos.
]Não são apenas académicos anticomunistas que satanizam Stalin. Dirigentes de partidos comunistas e historiadores marxistas, alguns de prestígio mundial, emprestaram credibilidade à condenação sem apelo de Stalin.
Eric Hobsbawm, o grande historiador britânico que foi, na juventude, membro do Partido Comunista inglês, esboça no seu livro A Era dos Extremos – Breve História do Século XX um retrato totalmente negativo do estadista que anos antes fora por ele elogiado como revolucionário merecedor da admiração da humanidade.
O peso do anátema é tão forte que a Fundação Rosa Luxemburgo atribuiu em Janeiro passado um prémio ao historiador alemão Christoph Junke pelo seu livro Der lange Schatten des Stalinismus, uma catilinária impiedosa sobre um «fenómeno histórico» que é também «uma teoria e uma prática política» que exorciza.
DA ESPERANÇA À REALIDADE
Sobre Stalin e a sua época foram escritos centenas de livros. Dos que li nenhum me impressionou tanto como este. A esmagadora maioria condena o homem e a obra; uma minoria de incondicionais faz a apologia do dirigente comunista e defende sem restrições a sua intervenção na história. Um abi smo separa os críticos como o polaco Isaac Deutscher (trotskista) dos epígonos como o belga Ludo Martens (maoista), dois autores cujos livros foram publicados em português, no Brasil.
Losurdo, filósofo e historiador, ao iluminar uma época e o homem que foi o timoneiro da URSS durante quase trinta anos encaminha o leitor para uma reflexão complexa, inesperada e difícil. Não assume o papel de juiz.
O conhecimento profundo da história da Revolução Russa e das lutas que lhe marcaram o rumo após a morte de Lenine permitiram-lhe situar Stalin nesse vendaval sob uma perspectiva inovadora. Procura, como filósofo, compreender. Não absolve nem condena.
Acompanhando a trajectória de Stalin pela mão de Losurdo, o leitor é levado a conclusões incompatíveis com a lenda negra criada em torno da personagem. Mas Losurdo não reescreve a história, não tenta interpretá-la. Como investigador, fixa a atenção em períodos decisivos, procede a uma selecção de factos e acontecimentos e situa Stalin nos cenários em que actuou.
Quase todas as revoluções devoram os seus filhos. A que se impôs em Outubro de 1917 não foi excepção à regra. Mas quando ela triunfou eram inimagináveis as crises e conflitos que desembocaram na execução da maioria das personagens mais brilhantes da grande geração de bolcheviques que se propunha a construir o socialismo na Rússia atrasada e famélica.
O tempo era de esperança. Ao encerrar o I Congresso da Internacional Comunista, Lenine, sintetizou a sua confiança no futuro numa frase: "A vitória da revolução comunista em todo o mundo está assegurada. Aproxima-se a fundação da Republica soviética internacional".
A previsão foi rapidamente desmentida pela História.
O dissipar das ilusões e a sua superação quase coincidiram com a doença e a morte de Lenine. Após a derrota da revolução alemã, o autor de "O Estado e a Revolução" teve a percepção de que o capitalismo iria sobreviver por muito tempo e que era necessário defender a todo o custo a jovem revolução russa. Trotsky não acreditava na viabilidade do "socialismo num só pais" e, desaparecido Lenine, acusou de cobardia e oportunismo quantos tinham renunciado à ideia da revolução mundial.
Losurdo lembra que Stalin foi o primeiro dirigente soviético a afirmar que por um longo período histórico a humanidade continuaria dividida não somente em diferentes sistemas sociais, mas também em diferentes identidades linguísticas, culturais e nacionais.
Enquanto Trotsky dirigia ainda apelos à insurreição ao proletariado da Finlândia, da Polónia, das repúblicas bálticas, e das grandes potencias capitalistas, Stalin criticava as teses sobre a exportação da revolução. Na sua opinião, a correlação de forças na Europa justificava a defesa do princípio da coexistência pacífica entre países com diferentes sistemas sociais.
Numa época em que muitos comunistas continuavam a sonhar com "o ascetismo universal", Stalin lembrava que o marxismo é inimigo do igualitarismo e insistia num ponto central: "seria estúpido pensar que o socialismo pode ser construído com base na miséria e em privações, com base na redução das necessidades pessoais e na queda do padrão de vida dos homens ao nível dos pobres."
Nos capítulos em que estuda as divergências de fundo que opuseram Trotsky e Stalin, Domenico Losurdo abstém-se mais uma vez de críticas e elogios. Situa o choque no grande painel da URSS post Lenine, e resume as posições de ambos, recorrendo a múltiplas citações.
São particularmente interessantes as páginas em que são confrontadas as posições de Trotsky e Stalin sobre os temas da organização jurídica da sociedade, da família, da propriedade e sobretudo do Estado.
A questão central da extinç