Marco Aurélio Nogueira – Novembro 2002
A época não anda nada boa para as organizações.
Elas sofrem de modo generalizado, constrangidas pelas imposições da globalização, da informacionalização e do neoliberalismo. Não há campo que não registre o fato: do econômico e do político ao cultural, passando pelo vasto universo das entidades associativas e de representação de interesses, toda a vida organizada encontra-se literalmente de pernas para o ar. As empresas são desafiadas pelos processos quase incontroláveis da reestruturação produtiva e da concorrência exacerbada: destroem-se reciprocamente com grande rapidez. Os sindicatos oscilam diante da violência com que estão sendo alterados o modo de trabalhar e os empregos. As organizações culturais — sejam elas escolas, centros de pesquisa ou entidades artísticas — são cortadas pela mercantilização e por interesses que lhes impõem uma dinâmica estranha, desajustada. Sequer o futebol escapa da tendência: os grandes clubes exibem taxas absurdas de incompetência administrativa, as equipes já não parecem capazes de jogar futebol com competência, a Seleção é frágil, e tem a CBF, com seus escândalos e sua equipe de direção.
Passa-se o mesmo no Estado. O momento histórico lhe é francamente hostil e desfavorável. Os institutos de representação são bombardeados pela velocidade, pela força dos particularismos, pela indiferença social, pela crise da política. Passam a contar menos. Os partidos se embaralham uns nos outros, sem se distinguir. A pequena política prevalece sobre a grande política. O espetáculo a que assistimos hoje no Brasil, de um revezamento alucinante na presidência do Senado e de denúncias que explodem como nuvens de gafanhotos, é a imagem perfeita do sofrimento organizacional. Os Estados nacionais estão em crise, a ONU não consegue se impor, os fóruns de negociação são inoperantes, a família não vai muito bem. A violência política, religiosa ou passional nunca foi tão intensa e difusa. O mundo todo parece doente. A vida organizada, em conseqüência, fraqueja.
Os órgãos do aparato técnico-burocrático público se desgastam a olhos vistos, pressionados seja pelo desinteresse ou despreparo de seus dirigentes, seja pela concorrência dos congêneres privados. Nunca foi tão ruim a elite chamada para dirigir as organizações públicas. Ainda que não se possa generalizar, é difícil contestar que, à privatização oligárquica de antes, contrapôs-se uma privatização movida a ajuste fiscal: em nome da idéia de que é preciso tornar tudo mais barato, sanear até a última gota e promover todas as “adaptações” requeridas pelo novo ambiente global, uma casta de novos mandarins assenhoreou-se de muitos órgãos públicos e se dedica a liquidá-los sumariamente. Dissolvem identidades institucionais duramente construídas, instauram um clima de insegurança generalizada, protegem amigos e perseguem os que não se submetem. É uma privatização meio “à francesa”, discreta, envergonhada, mas muito mais ferina que a anterior. No horizonte, o vazio. Pode-se ouvir o silêncio que emana de uma situação onde não há qualquer projeto consistente. Quando muito, ouve-se o gemido distante de uma fé obstinadamente reduzida ao plano fiscal, ou ao burocrático.
Embalados pela rotina formal de seus cargos e protegidos por esquemas políticos ocultos e acordos inconfessos, tais dirigentes agem com frieza e rispidez. A fantasia deles é a completa ausência de fantasia: a racionalização plena, absoluta, gélida. São seres desencantados, como diria Weber, que se apresentam como “desinteressados”, “neutros”, preocupados exclusivamente com o saneamento organizacional. Vão deste modo sangrando as organizações e disseminando o desencantamento dentro delas. Matam as organizações, esterilizando seus integrantes.
Ainda que nem sempre em posição de força, os novos mandarins estão em toda parte. Nos últimos anos, dedicaram-se incansavelmente a “ajustar” as fundações públicas, as empresas estatais, os institutos de pesquisa. Em São Paulo, por exemplo, nenhum órgão escapou: o Seade, o Cepam, o Instituto Florestal, a FDE, a Emplasa, a Cetesb, a Fundap. Em outros estados da federação passou-se o mesmo. Os estragos são irreparáveis. A irresponsabilidade pública, incomensurável.
Políticos, trabalhadores, empresários, intelectuais, homens e mulheres assistem a tudo sem saber como interferir. O credo dos novos mandarins é impelido pela força dos ventos. Encontra respaldo na cultura prevalecente e nas cúpulas governamentais, que não parecem perceber as conseqüências da operação.
Mas as organizações não estão mortas. A dinâmica organizacional é cheia de surpresas, e a política — que ninguém consegue liquidar — é uma mistura efervescente demais, onde a fortuna costuma ser implacável. Os ventos não sopram sempre na mesma direção. E hoje, no mundo da velocidade, das redes e da incerteza, costumam mudar com grande rapidez e de modo imprevisível.
Os indivíduos e as organizações
Uma das grandes vitórias do mundo moderno, e particularmente da fase histórica que se iniciou na metade do século XX, foi o aprofundamento radical das margens de liberdade individual.
Emergindo das sombras do tradicionalismo, os indivíduos foram se soltando e se afirmando sobre grupos, normas e convenções. Tornaram-se mais autônomos e independentes, e passaram a explorar as frestas que se foram abrindo na vida social e institucional. Ganharam espaço e começaram a ser vistos não só como portadores de direitos inalienáveis, mas também como entes singulares, dotados de ritmos, idiossincrasias, preferências e valores próprios, que não deveriam ser sufocados.
Evidentemente, os governos policialescos e o autoritarismo não desapareceram e o tradicionalismo — em todas as suas múltiplas formas — continuou a se reproduzir. O embate entre o individual e o coletivo não cessou de se repor. Em muitos casos, deu-se até mesmo uma ruptura do indivíduo com o institucional ou com o social: isolamento, rebaixamento cívico, indiferença, egoísmo, vontade de se voltar contra tudo e todos, ser dono do próprio nariz, e assim por diante. Deste modo, aumentou a dificuldade de compor a liberdade e a ordem, a pulsão criativa e a disciplina, a diferença e a norma. O avanço da individualidade se confundindo com o individualismo possessivo e o niilismo, e sendo por eles deformado. Por trás de tudo, o mercado, a concorrência, a acumulação.
Um paradoxo então se estabeleceu: quanto mais se glorificou o indivíduo, mais se desagregou o coletivo e mais se teve de recuperar o controle sobre as pessoas. O individualismo, deste modo, ficou travado.
Veja-se a atual situação no campo organizacional. No plano do discurso, são fartos os elogios à diferenciação, à criatividade, ao empreendedorismo, ao respeito pelas peculiaridades de cada um. Diz-se que as normas burocráticas precisam ser flexibilizadas e que a burocracia deve ser substituída pela “administração gerencial”. Aparentemente, sobram incentivos para que as pessoas sejam tratadas como individualidades singulares, para que os controles se tornem suaves, discretos e inteligentes, tanto quanto possível controláveis pelos funcionários. Todos dizem que a gestão, em suma, precisa ser estratégica, democrática, participativa.
Tudo isto integra a retórica que hoje prevalece e está na boca de todo executivo, de qualquer gerente ou superintendente, dos consultores em geral. No entanto, há um abismo entre esta retórica e o dia-a-dia das organizações. As rotinas continuam emperradas, os controles ainda são violentos e arbitrários, a espionagem eletrônica dos funcionários é usual, quase todas as decisões são unilaterais e, acima de tudo, ainda há doses cavalares de desrespeito pelas pessoas, que são muitas vezes tratadas como mero numerário, g
ado a ser tangido ou suportado. Demitem-se trabalhadores com a mesma facilidade com que se deleta um arquivo do computador.
Isto é assim sobretudo nas organizações menos dinâmicas ou mais submetidas a crises de identidade. Diversos órgãos da administração pública, por exemplo, fornecem exemplos cabais desta situação. Como enfrentam seguidos problemas orçamentários, sofrem o cerco do mercado e tendem a ser submissas às orientações neoliberais de seus governos, tais organizações mergulham na confusão e no sofrimento. Ficam expostas à ação de dirigentes pouco sensíveis ao quadro geral, que aprofundam a quebra de lealdades, pisoteiam a auto-estima dos funcionários e embaralham a cultural organizacional. Movidos por uma fé fanática na “racionalização” e no ajuste, os novos chefes exacerbam suas funções e em vez de ajudar as organizações a sair da crise, agem para liquidá-las.
Este estilo de chefia não enxerga indivíduos nem singularidades, por mais que fale uma língua moderna. Para ele, a independência, o mérito e a distinção pessoal são perigosos, pois criam espaços subversivos, fora do alcance normativo. Agindo em nome do que julgam ser “racional”, os novos chefes esmagam os que estão a eles submetidos, traindo a lógica de sua própria retórica. A “reengenharia” a que submetem as organizações quebra a espinha dorsal delas, retira seu oxigênio e rouba-lhes a memória.
Diante destes novos chefes, o avanço da liberdade individual retrocede ainda mais. E a teoria administrativa de vanguarda — tão generosa em elogios aos recursos humanos e à criatividade pessoal — treme e se ruboriza, envergonhada perante os estragos que são feitos em seu nome.
Chefes e estadistas
A nova estrutura globalizada do mundo e da vida — com a dinâmica e os desafios a ela inerentes — complica e perturba as organizações. Sobre esta base, operam os que são chamados a desempenhar funções de direção.
Os mais talentosos deles atuam como estadistas: aproximam e animam as pessoas, buscam fixar novas perspectivas de ação e integração, trabalham para valorizar identidades coletivas e atar os pedaços que a vida foi separando. São construtores organizacionais, fundadores de novos pactos de convivência e atuação. Sob seu comando, as organizações renascem e se lançam com ousadia no mar revolto da concorrência ou da crise. Conseguem escapar das verdades únicas e rejeitam os gargalos orçamentários, hoje onipresentes, contrapondo a eles não a subserviência, mas a altivez: no lugar de cortes e compressões, buscam aproveitar oportunidades, aumentar o leque de serviços e gerar receita própria de novo tipo. Em suma: em vez de promover adaptações erráticas nas finalidades organizacionais, os dirigentes-estadistas sedimentam e reforçam estas finalidades. Descobrem formas de preservar, atualizar e valorizar as instituições. Governam, não só administram.
Mas estes não são o único tipo de dirigente. Em nossos dias, sequer são os predominantes. Fazendo sombra a eles, estão os dirigentes menores: os chefes. Têm pouco amor pelas idéias, mas muita arrogância. Julgam-se predestinados a realizar aquilo que a realidade estaria impondo como “inevitável”. Não dirigem nem desejam fundar nada: apenas ajustam e promovem adaptações. Suspeitam de visões abrangentes, posturas intelectuais e perspectivas estratégicas, já que se concentram exclusivamente em números e resultados. Seu maior recurso é o poder, sua fé é o mercado, sua grande meta é o ajuste fiscal.
Nas mãos dos chefes, as organizações sofrem ainda mais. Algumas agonizam e chegam mesmo a perecer. Vão sendo usadas, espremidas, maltratadas. Esvaziam-se de sentido, de clareza, de fantasia. Tudo sai do eixo: a estrutura organizacional, seus integrantes, sua cultura. Vê-se, com facilidade, que por sobre o discurso “racionalizador” continuam a ser praticados atos inteiramente irracionais, movidos a loteamentos, acertos pessoais, gastos descabidos. As organizações passam a viver de modo esquizofrênico, sem saber se devem seguir suas melhores tradições, as portarias dos superiores ou os descalabros que se sucedem no cotidiano. Perdem a confiança em si mesmas. Os que nelas trabalham entregam-se às novas regras do jogo: começam a ridicularizar os que deveriam dirigi-las mas não o fazem, boicotam a instituição e buscam se viabilizar fora dela. Instaura-se o caos.
Trata-se de um estilo de gestão que alça vôo embalado pela força das coisas. O mundo do futuro pede dirigentes que ajam como estadistas, mas o mundo do presente faz com que os chefes preponderem. É uma vitória da burocracia sobre a política, da razão instrumental sobre a razão crítica. A partir dela, estabelece-se que a adaptação passiva ao que existe fornece a melhor defesa possível contra os azares e as fatalidades da história. Retira-se assim, da gestão, todo o impulso vital que lhe deveria ser constitutivo. Em vez de empreendedorismo e audácia, tem-se apenas submissão a normas, a ordens vindas de cima, ao estatuto, à prudência. Desaparecem a utopia, a vontade e a paixão. O horizonte fica embaçado.
Com a preponderância dos chefes sobre os estadistas, legitima-se um discurso gerencial. Seu léxico é codificado, o estilo é paupérrimo. O discurso não existe para convencer, instigar o intelecto ou emocionar, mas apenas para comunicar decisões, determinar e dar ordens. Precisa ser frio, calculadamente feio, sem graça. Afinal, ele é decisionista, e não pode alimentar especulações ou muitas reflexões. Com o tempo, acaba caindo em contradição, pois se vê obrigado a recuperar retoricamente algumas promessas não cumpridas: a do valor das individualidades, a da criatividade, a da ousadia, a da flexibilização. Fica desconjuntado. Neste ponto, desfazem-se todas as máscaras e sobra apenas a face triste da racionalização.
Governar a universidade
Um terreno onde a discussão a respeito de direção e organização se mostra decisiva é o do sistema educacional, e particularmente da universidade.
Por uma série de aspectos — entre os quais ressaltam-se as greves sucessivas, a dificuldade de entendimento entre governos e professores, as tensões recorrentes entre alunos e professores, a insatisfação de muitas pessoas com o reduzido número de vagas existentes no ensino superior, a reiteração de um discurso oficial banalizador e agressivo —, passamos a viver, no Brasil, nos últimos tempos, com a sensação de que a universidade pública está sofrendo, mergulhada numa crise interminável e autodestrutiva.
Atacada sem trégua pelo mercado, a universidade sente também, numa escala inédita, os efeitos das orientações governamentais dos últimos anos, concentradas no ajuste fiscal, na privatização, na reformulação das práticas gerenciais e administrativas, no constrangimento do Estado e das suas possibilidades de intervenção na vida nacional. Nunca como hoje a universidade pública foi tão amesquinhada pelos governantes, ou seja, por aqueles que deveriam ser os primeiros a defendê-la e valorizá-la. Virou um item das despesas públicas: gasto, não investimento.
A universidade pública se encontra na berlinda. É criticada por todos os lados e parece estar sendo abandonada pela sociedade, que, instigada por uma visão instrumental da formação superior (que deveria apenas preparar os jovens para o mercado), tende a olhar sempre com maior desconfiança para a universidade pública, onde haveria funcionários demais, ociosidade demais, “filosofia” demais.
Em decorrência, muitas pessoas dizem ter passado a época do ensino superior público, pois este não se mostra capacitado para se adaptar aos novos contextos, seria dispendioso, pouco produtivo e injusto. O melhor seria privatizar tudo ou, no mínimo, fazer a gestão universitária ser guiada pelo mercado.
É preciso desmontar esta arapuca. Não dá mais para continuar falando de universidade em termos co
ntábeis ou a partir de preconceitos e visões impressionistas. Não faz sentido abordá-la como se fosse uma organização qualquer, parecida com um supermercado ou uma fábrica. Deveríamos estar dizendo dizer bem alto, por todos os meios possíveis, que a universidade pública não morreu: que ela, apesar das oscilações, continua viva, cumprindo uma função precípua para o desenvolvimento do país e formando profissionais e cidadãos de qualidade. Não é verdade, por exemplo, que os estudantes pioraram ou que os professores de hoje são menos produtivos que os de antes. Afirmar isso é elitismo ou falta de visão histórica, algo que desrespeita a realidade e ofende as pessoas envolvidas.
O que se passa, e nem sempre se reconhece, é que a universidade pública virou um fenômeno de massa e ainda não conseguiu se ajustar inteiramente a isso. Está imersa numa longa e difícil transição, que transcorre num ambiente complicado, efervescente, pouco organizacional.
Muitos dos problemas universitários derivam daí. São problemas internos, que nascem das mudanças estruturais, da quebra de paradigmas e culturas, da suspensão de pactos de convivência e rotinas administrativas. Tanto quanto os ataques que vêm de fora (dos governos ou dos mercados), tais problemas complicam terrivelmente a reação da universidade aos novos contextos.
Mais que de boa administração, a universidade pública necessita hoje de bom governo. Não basta melhorar as habilidades técnico-administrativas em sentido estrito, nem muito menos incorporar novas “tecnologias gerenciais” ou implementar novos desenhos organizacionais. Tudo isso pode ser útil, mas é seguramente insuficiente. Sem valorização profissional e sem uma política de recursos humanos que se concentre nas pessoas como sujeitos capazes de deliberar e agir, inseridos em espaços repletos de idéias e orientações de sentido — ou seja, que estejam sendo constantemente formados e capacitados —, os avanços serão inexpressivos. Em vez de chefes, precisamos de líderes e dirigentes. Em vez de subordinados, precisamos de dirigidos capazes de dirigir.
Em suma, para ser efetivamente governada como instituição inteligente, voltada para a educação e a pesquisa, a universidade pública precisa se recolocar plenamente como instituição.
Na base deste movimento, deverá estar a prevalência do mérito acadêmico, mas também a proposição consistente de um pacto democrático de convivência e a assimilação de um padrão superior de gestão. Pela via da reposição do mérito, a universidade se reencontrará com seu sentido originário e poderá deslanchar como instituição dedicada à produção e difusão de conhecimentos. Pela via da democracia, terá como construir um pacto que solidarize os interesses, respeite as individualidades e incentive a participação de todos. E pela via da gestão renovada, aprenderá a dar conta das rotinas sem se deixar rotinizar, inventando-se permanentemente como organização.
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Marco Aurélio Nogueira é professor de Teoria Política da Unesp/Araraquara.
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.