Fumdação Lauro Campos
Os trabalhadores da Embraer e o Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos estão empreendendo uma daquelas batalhas que, de tempos em tempos, sintetizam dilemas gerais da sociedade. Lutam para reverter 4,2 mil demissões realizadas de forma truculenta pela empresa. Se vencerem, o debate sobre a crise ganhará interlocutores de peso: os trabalhadores. Se forem derrotados, outras empresas se sentirão animadas para debitar parte da conta da crise nas costas do lado fraco da sociedade. Vale a pena recapitularmos alguns passos dessa contenda.
Na quarta-feira de cinzas, o presidente Luís Inácio Lula da Silva deu um sinal ao empresariado. Admitiu que o governo não tomará nenhuma atitude diante de um quadro de demissões em massa. Nenhum financiamento ou crédito estatal será cortado. Esse foi o sentido de seu comportamento diante da diretoria da Embraer, convidada a explicar, no palácio do Planalto, as dispensas em massa. A revisão do ato, conforme alardeada dias antes pelo primeiro-mandatário, que se disse “indignado” com a situação, sequer fez parte das conversas.
Pelo que diz a imprensa, Lula teria conhecimento das demissões desde pelo menos a segunda-feira, 16. Nessa data, o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, comunicou a vários outros membros do governo a decisão da Embraer em demitir 20% do total de seus 21.362 funcionários. Estavam presentes, entre outros, o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, o ministro das Relações Institucionais, José Mucio, e o presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Arthur Henrique. É pouco provável que nenhum deles tivesse comunicado ao presidente a extensão do desastre. Ou seja, o núcleo fundamental do governo e a principal central sindical do país sabiam dos planos da empresa. Não fizeram a hora e esperaram acontecer.
Haveria como evitar as dispensas? Não é uma questão simples. Mas o caso da Embraer, por sua gravidade, tem condições de ser o marco inicial de uma política abrangente de preservação de empregos.
Estatal e privada
A Embraer foi fundada em 1969, pelo Estado brasileiro. Nenhuma empresa privada jamais ousou arriscar-se a construir uma fabrica de aviões com a pretensão de tornar-se dominante em vários segmentos. Ela só foi privatizada em dezembro de 1994, ainda no governo Itamar Franco, quando já tinha porte, escala de produção, conhecimento técnico acumulado, mercado e promessa de crédito estatal que sustentasse seu desenvolvimento. Na época, a União detinha 95,29% das ações ordinárias e o Banco do Brasil a parcela restante. O preço de venda foi de R$ 190 bilhões, quando a moeda brasileira tinha paridade cambial com o dólar estadunidense.
A empresa foi adquirida por um consórcio liderado pelo Banco Bozzano Simonsen, que envolvia a Previ, o fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, e outras entidades semelhantes. Juntos, passaram a deter cerca de 40% das ações da companhia. A União permaneceu com 20% do capital. O levantamento é de Aloysio Biondi em seu O Brasil privatizado, lançado há dez anos.
Hoje em dia, segundo o site da empresa, a composição societária envolve ações negociadas na Bolsa de Valores de Nova York (29,8%), ações na Bovespa (18,2%), a Previ (14,2%), a Janus Capital Management (10,5%), o Grupo Bozzano (10,4%), a BNDESPAR (5,2%), os Oppenheimmer Funds (6,2%), Thornburg Investment (5,2%). A União detém 0,3% do total, com direito a veto em decisões estratégicas.
Com 51,7% de capital externo, a Embraer não é mais uma empresa brasileira.
Financiamentos
Entre 1997 e 2008, a empresa foi beneficiada com R$ 19,7 bilhões (US$ 8,39 bilhões), por parte do BNDES, destinados ao financiamento à exportação de aviões, segundo dados do próprio banco. Se adotarmos uma conta generosa para com a Embraer, utilizando como métrica a paridade dólar/ real de 1 para 1, podemos dizer que a companhia foi agraciada com um valor total de financiamentos equivalente a 44 vezes seu valor de venda. Ou seja, apesar de ser privada, ela não sobreviveria sem o decidido apoio do Estado.
A Embraer afirmou, em matéria publicada na Folha de S. Paulo de 20 de fevereiro, ter revisto sua previsão de entregas em 2009. De iniciais 270 aeronaves, somente se concretizará a venda de 242 unidades. Mesmo assim, é um aumento expressivo em relação a 2007 (169 aviões) e 2008 (204), conforme informa a página eletrônica da empresa.
Depois de anos de vultosos lucros, a companhia teve um prejuízo de 48,4 milhões no terceiro trimestre de 2008. Apesar do sucesso dos últimos anos, a retração no mercado mundial impõe perdas reais. Mas até agora não se sabe se o prejuízo da Embraer se deve apenas à diminuição da demanda.
Se a crise persistir, as demissões prosseguirão. Seu efeito multiplicador na cadeia produtiva do setor será dramático. Demissões na indústria têm a característica de se espalharem pela economia de maneira muito maior que as de outros ramos, como o agrícola ou o de serviços. Detê-las ou eliminá-las é tarefa urgente. Não está ao alcance – ou nos planos – da iniciativa privada realizar esta tarefa. A experiência mostra que nem sempre injeções de dinheiro público resolvem o problema. Em muitos casos, pela falta de contrapartidas definidas pelos órgãos oficiais, tais financiamentos serviram para cobrir rombos internos ou posições de acionistas. O dinheiro ficou empoçado e não circulou pela economia.
Principal problema
O desemprego está se tornando rapidamente no principal problema econômico do país, com dramáticas conseqüências sociais. As demissões da Embraer são emblemáticas. Concretizadas, elas servirão de exemplo para outras empresas, que passarão a dispensar sumariamente seus funcionários, sem compromisso algum com o esforço coletivo que lhes foi concedido através de juros subsidiados de bancos estatais e de incentivos fiscais por parte do governo. Se evitadas, podem se tornar o primeiro passo efetivo do governo em direção a uma profunda reversão das expectativas da crise.
Há duas possibilidades na mesa. A primeira seria impor uma série de contrapartidas à Embraer para qualquer financiamento estatal, direto ou indireto, concedido. Demissões cortam créditos, deveria ser a consigna oficial. A segunda alternativa seria o Estado assumir o controle acionário da empresa. Assim haveria condições de se readequar a produção e de se absorver redução de lucros, evitando-se penalizar trabalhadores. O objetivo iria além de salvar os empregos. Estaria em curso um projeto de país e a definição de que empresas seriam estratégicas para o desenvolvimento. Sem isso, trabalhadores e a própria empresa correm o risco de irem pelo ralo.
O site da Embraer diz o seguinte sobre seus trabalhadores: “A busca incessante por maiores e melhores resultados pressupõe que as pessoas trabalhem de forma harmoniosa, felizes, motivadas, e sempre compreendendo que o seu crescimento virá naturalmente com o crescimento da Empresa”. A direção da firma já mandou tais afirmações para o terreno da ficção.
Não interferência
Os motivos que levaram o presidente Lula a não interferir nas demissões não são claros. Pode ser a necessidade de mostrar que o Estado não se imiscui em ações da iniciativa privada ou coisa semelhante, para não “assustar o mercado”. O certo é que as relações do presidente com a empresa são próximas. Em 2006, a Embraer compôs o seleto grupo dos 12 maiores doadores de recursos para a campanha presidencial do PT, contribuindo com R$ 1,3 milhão. Os números estão no site Contas Abertas, que se baseia em dados do TSE (http://contasabertas.uol.com.br/noticias/imagens/Comite_Fin_Nac_Pres_Rep_PT_RESUMO.xls). É de se esperar que tal fato não tenha pesado no comportamento do chefe do executivo brasileiro.
Os trabalhadores estão se mobilizando, apesar de todas as dificuldades. Disputa-se ali quem pagará a conta da crise. Ganhando ou perdendo, esta é uma batalha heróica.
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