Por Ricardo Alvarez
Recentemente as tarifas de ônibus urbanos em São Paulo foram majoradas em 11,11%, passando dos abusivos R$ 2,70, aos escorchantes R$ 3,00. Outras capitais também o fizeram, como Belo Horizonte e Recife. Como decorrência destas decisões em cidades maiores e em regiões metropolitanas, segue-se uma torrente de reajustes nos municípios de médio e pequeno porte.
De pronto o reajuste expressa o quanto é caro andar de ônibus em São Paulo. Um trabalhador que faz duas viagens por dia, vezes vinte e três dias uteis no mês, gasta R$ 138,00 de seu salário, o que representa cerca de 25% do novo salário mínimo de R$ 545,00 que tramita no Congresso Nacional.
Como se chegou ao cálculo? Planilhas de custos? Não. O prefeito Gilberto Kassab, após assumir o comando municipal (José Serra abandona o cargo por se eleger governador em São Paulo) não majora as tarifas para evitar desgaste político na eleição para prefeitura em 2008. Elege-se e vai recompor os valores em 2010, com 17% de reajuste. Celso Pitta em 2000 e Marta Suplicy em 2004 já o haviam feito pelos mesmos motivos.
Tal fato evidencia por si, que as tarifas dos transportes públicos não resultam de uma análise meticulosa do sistema de transportes urbanos e suas necessidades, muito menos do estudo pormenorizado das planilhas de custos dos empresários do setor e das demandas dos trabalhadores, mas sim do calendário eleitoral. Coincidentemente o final de ano para os que se reelegeram, e o início do ano para os novatos, são momentos de “acerto de contas” com o segmento empresarial. Obviamente não se trata de uma regra, pois nem todos eleitos se relacionam com os empresários do setor, mas de um comportamento freqüente em grandes centros urbanos.
A gestão dos transportes públicos de ônibus urbanos é de competência dos municípios, e interessa ao segmento econômico manter certa proximidade com alguns dos candidatos a prefeito e muita intimidade com o eleito. Alguns candidatos são premiados com farto apoio financeiro e material, embora normalmente estas contribuições de campanhas não apareçam registradas nas planilhas por motivos óbvios, e de interesse mútuo.
Apesar da carência dos registros legais, a dinâmica dos reajustes das tarifas obedece a uma lógica que denuncia a promiscuidade entre poder público e a gana dos empresários.
Raros são os municípios que contam com Conselhos Municipais de Transportes atuantes, cujo trabalho é ainda facilitado pelo poder público ao abrir os dados da gestão, da rentabilidade do sistema, dos custos de manutenção e a lucratividade do empresário. Normalmente ocorre o contrário: tais planilhas são guardadas em cofres fortes e a chave repousa sob o travesseiro do prefeito, as informações são sonegadas, os números apresentados (quando o são) mais parecem uma obra de ficção. O quadro real é de domínio de poucos.
Um serviço público essencial com uma gestão que deveria ser efetivamente pública, portanto transparente e de domínio da sociedade, que é a verdadeira interessada no assunto, se transforma numa trama indecifrável que se escuda no autoritarismo e na sonegação de informações da gestão pública municipal. Nada mais interessante e atraente aos empresários.
Somente a participação popular poderia reverter este quadro, mas interessa aos prefeitos vinculados a estes esquemas a abertura desta caixa preta? Para quem procura as razões de ônibus caros e linhas ineficientes, basta desnudar estes vínculos que as causas da “incompetência na gestão ” vão aparecer.
Outra característica do setor que interfere diretamente no bolso do usuário é sua intensa oligopolização, observada em duas frentes: A primeira resulta da relação entre as partes. A participação de empresários no setor se dá, normalmente, por interferência política. Pequenos grupos de grandes empresários e grande capacidade de articulação política abocanham fatias do sistema e retaliam as licitações e concessões entre si, garantindo a receita líquida e certa ao investimento. Em segundo lugar não há concorrência entre empresários, basta colocar o ônibus em circulação e a catraca gira desde a primeira viagem.
A rentabilidade dos empresários se amplia a partir da negligência deliberada por parte do poder público naquilo que é de sua competência: vistoriar e acompanhar o cumprimento das normas e regras do contrato. Estas são precárias, quando não inexistentes.
Atrasos de ônibus, veículos sujos e mal conservados, motoristas sem treinamento para lidar com o público, com jornadas de trabalho aviltantes, além de exercer por vezes o papel de cobradores, superlotação, microônibus que enlatam os usuários, enfim, desrespeitar o contrato é parte do processo de desídia planejada. Caberia ao poder público agir com isenção e rigor no cumprimento das normas estabelecidas, mas isto exigiria uma independência política pouco vista nas grandes cidades.
Observe-se, por exemplo, a inexistência de integração nos transportes em boa parte das regiões metropolitanas brasileiras, caracterizadas pela conurbação e concentração urbana. O que explica um usuário descer num terminal, ou mesmo numa parada de bairro, e pagar outra tarifa para o deslocamento dentro do próprio município? A explicação transcende o campo da razão humana e ganha sentido apenas na lógica do lucro fácil à custa de trabalhadores que dedicam boa parte de seu orçamento aos gastos com transportes.
De acordo com o portal Exame, a partir de um estudo do Ipea “Os gastos da população brasileira com transporte praticamente se igualam à despesa com a alimentação. Dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), citados pelo Ipea, mostram que em 2002/2003 o brasileiro gastava 18,7% de seu orçamento com locomoção e 21,1% eram utilizados para se alimentar. Em 2008/2009, a despesa com alimentação diminuiu para 20,2% enquanto o gasto com transporte aumentou para 20,1%”.
Gastamos com ônibus o mesmo que para se alimentar, um sinal evidente de que ambas as coisas pesam demais no orçamento doméstico dos trabalhadores brasileiros. Mas se os trabalhadores gastam muito com isso, outros segmentos ganham muito na outra ponta da linha.
A rentabilidade dos empresários dos transportes pode ser medida pela variação nos investimentos de uma família que opera ônibus em São Paulo: após décadas de ganhos significativos no transporte público municipal, montaram uma empresa área que já é a segunda maior do país. O salto e a diversidade dos investimentos os colocaram na Revista Forbes como uma das famílias mais ricas do mundo. Tudo à custa de trabalhadores que sofrem para comprar um bilhete de passagem. A lógica do lucro fala mais alto.
A dramaticidade do problema ganha ares mais cruéis quando se observa que os negros são o grupo social que mais gasta com transportes públicos (ônibus entre eles), conforme pesquisa do Ipea acima citada.
Sinais de descontentamento e repulsa deste quadro emergem pelo Brasil afora: jovens se mobilizam no Rio Grande do Sul, São Paulo tem manifestações seguidas e uma agenda de lutas, pipocam em outras partes do Brasil usuários revoltados com a exploração. Nada mais justo, necessário e oportuno para enfrentar esta pilhagem popular orquestrada justamente por aqueles que deveriam defender os interesses da população.
Ricardo Alvarez é geógrafo, professor e editor do site Controvérsia