Chico Alencar
Neste quadro de cartas embaralhadas, ideologia dominante da ‘desideologização’ e despolitização da política, a imagem pública do PSOL, partido ainda em processo de construção, é a de um grupamento marcado pela nitidez programática. Qualidade rara no atual momento político. Distinção não almejada que é, a um só tempo, patrimônio a ser preservado e responsabilidade acrescida. Há um leque de temas sobre os quais o sistema partidário, por conta de injunções concretas da ordem dominante, não pode ir além da retórica. Ao longo dos últimos anos, tal limitação ficou por demais clara nas questões relacionadas ao resgate da ética na política. É o mesmo pântano onde se encalacra a reforma política. No discurso, tudo jóia rara; na prática, poucos revelam condições de tomar iniciativas concretas.
As demandas por mudança sistêmica, e os instrumentos capazes de garanti-la, nascem nos conflitos, nas ruas, nos movimentos e no ativismo cidadão. Nenhuma mudança, no entanto, se realiza apenas na chamada sociedade civil. Pressupõe, para se completar, a existência de instituições políticas permeáveis ao dinamismo que vem da base, e capazes de suportar a transformação das maiorias sociais em maiorias políticas. Essa é a razão pela qual o PSOL, ainda mais nos termos que singularizam o atual momento, vai se empenhar pela reforma política com participação popular, sem o que ela será mero rearranjo da dominação das elites.
Em primeiro lugar, é bom salientar que a reforma política não deve ser tratada como panacéia universal. Por si só, ela não resolve nenhum dos nossos grandes problemas. Ao mesmo tempo, os conflitos relacionados a qualquer um dos nossos grandes problemas remetem, de alguma forma, para a necessidade da reforma política. É patente, e quase consensual, a existência de uma crise crônica na representação política. Uma crise que é expressão do desacerto estrutural de uma sociedade marcada pela exclusão e pela violência de um padrão brutal de desigualdade. É como tal, articulada com outras dimensões da luta social, que adquire sentido e concretude a bandeira da reforma política para um partido como o PSOL.
O tema da reforma não sai da pauta do Parlamento. Ao mesmo tempo, sempre que entra na pauta efetiva de votação, a proposta é derrotada e readquire a consistência dos fantasmas. Retorna sempre, e a cada nova aparição reproduz o mesmo ciclo vicioso. A reforma não sai, mas nunca se disputam duas eleições sob a mesma norma legal. Para contemplar o curto prazo dos interesses dominantes, os surtos de casuísmo também são recorrentes, fato que agrava a crise da representação e recoloca na pauta o velho tema: a necessidade imperiosa de uma reforma política.
Aparentemente, todos são a favor. Todos declaram lutar por ela, mas a reforma sempre empaca. A razão do paradoxo é simples. Na representação congressual – a chamada “classe política” – quem reúne forças para patrocinar a mudança, uma força adquirida por intermédio das regras em curso, não tem interesse em mudar. E quem tem interesse, não reúne forças. A cidadania, desencantada com a política, só se ocupa do tema no calor das disputas eleitorais, ocasião em que se espanta com as aberrações de uma legislação deformada a golpes de casuísmo continuado.
Daí porque o tema vira arroz de festa em campanha eleitoral, quando todos prometem prioridade para o assunto. Passado tal momento, a idéia de reforma hiberna. Não faltam propostas. Existem, engavetadas nas comissões e nas mesas das duas casas do parlamento brasileiro, projetos que envolvem quase todos os pontos da reforma. E boa parte nem depende de emenda constitucional e pode ser aprovado por maioria simples. A coisa não ata nem desata por conta de dificuldades políticas acumuladas desde o debate travado na Assembléia Constituinte, e que só fizeram se agravar com a chegada do PT ao governo federal em 2002.
Destacado pensador e militante político do nosso partido, o sociólogo Leo Lince relembra aspectos importantes da questão: “A reforma política é tarefa que só se realiza a partir de um projeto articulado, capaz de englobar as várias dimensões da proposta. Por outro lado, a história registra ser muito difícil, fora dos momentos de grandes rupturas, aprovar em bloco uma reforma política. A constatação desta disjuntiva, ao invés de diluir, só faz acentuar a necessidade do projeto global. Até para definir os pontos prioritários, ou o sentido geral de cada mudança parcial proposta, a visão de conjunto é fundamental. Qual reforma pela qual se luta? O conteúdo concreto da mudança proposta só se define no projeto global, indispensável para imprimir consistência no debate que, por hora, gira em falso como biruta de aeroporto. Todos são a favor não se sabe do quê.
Em nossa história recente, no auge da resistência democrática ao autoritarismo militar, nos debates da Constituinte e na conjuntura que a ela se seguiu, a política brasileira conheceu um rico debate sobre o tema em pauta. Dois grandes projetos globais polarizavam, naquele período, as discussões, e emulavam a infinidade de propostas parciais que ainda hoje tramitam nos escaninhos do parlamento. Havia, no confronto, nitidez programática. De ambos os lados, titulares qualificados escreviam artigos, elaboravam propostas, estimulavam o debate cidadão.
De um lado, o projeto liberal-conservador, cuja melhor súmula é o relatório aprovado em comissão especial do Senado em 1988, de autoria do Senador Sérgio Machado, do PSDB-CE. Capitaneado pelos tucanos, definia com clareza o seu objetivo essencial: a busca de uma engenharia política voltada para garantir um tipo bem definido de governabilidade. Para tanto preconizava: voto distrital misto, cláusula de barreira, voto facultativo, manutenção das competências extrafederativas do Senado, entre outras coisas.
De outro lado, o projeto capitaneado pela bancada do PT. Como se sabe, até chegar ao governo central, o PT foi portador de um projeto de contraponto radical ao conservadorismo econômico e político. Aliás, o partido foi alçado à condição de titular da principal alavanca do poder político montado na promessa de mudar o modelo econômico, e de inaugurar uma nova “gramática do poder”. Sua proposta de reforma, voltada para a ampliação dos espaços da cidadania na política, preconizava: sistema proporcional com lista fechada, inexistência de cláusula de barreira, voto obrigatório, financiamento público de campanhas, entre outras coisas.
Com a troca de comando na principal alavanca do poder institucional, a lógica do poder estabelecido tomou conta do PT e o debate sobre a reforma política adquiriu feição nova. Os projetos globais que antes disputavam a hegemonia no emaranhado das propostas que tramitam no Congresso Nacional perderam nitidez, entraram no compasso de espera. No governo, o petismo se passou para o outro lado do balcão. Os tucanos por sua vez, desalojados da primazia na defesa dos interesses conservadores, tanto na macroeconomia como na micro-política, também se afastaram da nitidez anterior.
A encalacrada que aprisiona a reforma política decorre de tal quadro. O desencanto do cidadão com a política, o ceticismo e o conformismo entre muitos daqueles que, na academia, estudam o tema, o isolamento momentâneo das estruturas intermediárias (tipo OAB, AMB, CNBB e outras) que buscam recolocar o debate nos trilhos da participação cidadã, são dificuldades próprias do momento atual. Enfrentar tais dificuldades pressupõe a reapresentação de um projeto que defina pontos concretos e o sentido geral de uma proposta de reforma política digna deste nome”.
Em defesa do voto proporcional
Os procedimentos que traduzem o voto do eleitor em cadeiras no parlamento e postos no executivo, ou seja, em poder real, ocupam, não por acaso, um lugar central em qualquer debate sobre reformulação da legislação eleitoral, com destaque especial para a definição do tipo de voto. Neste particular, existe sempre uma disputa surda entre os que advogam uma engenharia eleitoral que privilegia a obtenção da governabilidade, que é o princípio do sistema do voto distrital ou majoritário, e os defensores do voto proporcional, que se define pela primazia da representação.
Tal confronto nunca se apresenta de forma aberta, mas está presente sempre, no mais das vezes dissimulado na miríade de questões efetivamente relacionadas ao tema. Aliás, é bom salientar que não existem no mundo dois países que tenham o mesmo sistema eleitoral. No entanto, cada arranjo particular desta imensa diversidade está atravessado pela prevalência de um destes dois tipos de representação: a majoritária ou a proporcional.
Em geral, a proposta conservadora, que aspira consolidar o já dominante, busca o aumento da “eficiência governamental” à custa da redução da representatividade. E assim tem sido, também, na história brasileira recente. O mote é o mesmo desde, pelo menos, a Comissão Afonso Arinos, que antecedeu o processo constituinte, passando por proposta de autoria do então deputado José Serra e do famoso relatório do senador tucano Sérgio Machado. Aliás, muito bem definido pelo último no relatório em pauta: “governabilidade, portanto, é o que importa neste debate sobre reforma política e partidária. Se estamos começando um processo de mudanças econômicas e sociais, por meio da estabilidade da moeda, da modernização do Estado e da abertura para o mercado mundial devemos avançar também em nossa estrutura política”.
Os que advogam o princípio da governabilidade, por suposto, não descuram da representação, mas adotam para ela uma visão controladora e aspiram bloquear as formas de cidadania não controladas diretamente pelo Estado. Eles temem o alargamento dos espaços de participação política e, a partir dos interesses estabelecidos como dominantes, buscam travar o processo de transformação das maiorias sociais em maiorias políticas. Por outro lado, os que advogam o princípio da representação não devem descurar da governabilidade, mas precisam situá-la no contexto mais amplo, não como sinônimo de capacidade estatal de governar, mas como esforço de adequação das estruturas institucionais ao dinamismo dos movimentos sociais.
Quem defende a democracia participativa, a presença plena da cidadania no processo político, o pluralismo da livre manifestação das diferenças, em um país de dimensões continentais e marcado por tantas desigualdades sociais e regionais como é o nosso, deve cerrar fileiras em defesa do voto proporcional.
É necessário, entretanto, corrigir distorções para garantir a proporcionalidade do voto, pois ele se define pela busca da equidade na relação entre os votos recebidos e as cadeiras conquistadas. Nele, um partido que receba 10% dos votos deverá ocupar 10% das cadeiras no parlamento. Ou seja, representação parlamentar deve espelhar, o mais fielmente possível, a composição política do eleitorado. Ao contrário do voto distrital, que premia o eleito no distrito e esteriliza os demais votos, ele assegura a presença plural de todas as correntes políticas organizadas na constituição da representação política.
Sem dúvida, é o sistema mais adequado para incorporar o povo no processo político e institucionalizar normas democráticas de competição eleitoral. Para que o voto proporcional possa cumprir sua função, o primeiro passo é reconhecer e propor formas de superação das profundas distorções que fragilizam e desqualificam a sua feição atual.
A distorção mais perversa do voto proporcional no Brasil é a distribuição desigual das cadeiras entre os Estados da Federação. Como os distritos eleitorais, em nossa legislação, são os Estados, com população e eleitorado extremamente desiguais, o que resulta em voto com peso distinto dependendo da região. Exemplo: o voto em Roraima vale 15.2 vezes mais do que o voto em São Paulo. E, dado que a força eleitoral relativa dos partidos se distribui de maneira desigual entre as diferentes regiões, tal fato desequilibra a proporcionalidade da representação no parlamento, em geral prejudicando os centros mais populosos.
Essa distorção não decorre da natureza do sistema proporcional. Pelo contrário, agride a sua base essencial, pois viola o princípio da igualdade do voto, além de distorcer a distribuição dos postos legislativos entre os Estados da Federação. Na origem desta distorção está a norma constitucional (parágrafo do Art. 45 da Constituição) que definiu o número mínimo (8) e o máximo (70) de cadeiras para os Estados no Congresso Nacional. A defesa do voto proporcional passa pela adoção de fórmulas que corrijam tal distorção, decorrente da magnitude diferenciada do distrito eleitoral.
Conservando as unidades da Federação como distritos eleitorais e o tamanho absoluto do Congresso (513 deputados), o problema pode ser atacado com a redução do número mínimo e aumento do máximo, redistribuindo as cadeiras. Há, no entanto, limites para a redução do mínimo. No caso de alguns estados menos populosos, que pela regra proporcional rigorosa só poderiam eleger um parlamentar, a mudança resultaria em paradoxo: a eleição em tal distrito seria majoritária.
A solução para o problema não é simples, mas existe no debate político e acadêmico um farto estoque de sugestões. Alguns exemplos: estabelecer um colégio eleitoral nacional único para a eleição da Câmara dos Deputados; manter os distritos eleitorais estaduais, mas com quociente nacional único para efeito de distribuição das cadeiras entre os partidos; redistritalização geral; alguma redistrilização localizada, juntando estados vizinhos de eleitorado rarefeito; reduzir o número mínimo para um patamar aceitável e localizar a sub-representação apenas no maior distrito (São Paulo), que ainda assim aumentaria sua representação. Em qualquer caso, a mudança deve perseguir o mesmo valor para o voto do cidadão, esteja ele em qualquer ponto do território nacional e garantir ao eleito a condição de representante do povo brasileiro e não a de despachante distrital.
A lista partidária pré-ordenada e flexível
Existe largo consenso entre os estudiosos: o mecanismo da “lista fechada” é o formato mais adequado ao sistema do voto proporcional. Nele, os partidos apresentam a lista dos seus candidatos antes das eleições, cabendo ao eleitor apenas votar na legenda. O eleitor vota no partido, que hierarquiza e ordena a lista dos candidatos. O foco da escolha do eleitor se desloca da pessoa do candidato para os programas partidários.
O efeito dominó provocado por esta alteração substancial se propaga pelo conjunto do sistema eleitoral: simplifica a apuração, desaparece a competição entre os candidatos da mesma agremiação, fortalece o sistema partidário, amplia a força e a responsabilidade dos partidos na seleção da lista de candidatos.
O perfil da campanha eleitoral também sofre o impacto radical da mudança. Ao invés de escolher entre milhares de candidatos individuais, o eleitorado escolherá entre dezenas de programas partidários. Além de estimular uma maior nitidez programática na disputa, é o mecanismo mais adequado para a obtenção da proporcionalidade na transformação de votos em cadeiras no parlamento.
No entanto, dois argumentos fortes se contrapõem à adoção do sistema das listas fechadas. Um deles é o peso que passariam a ter as burocracias partidárias no ordenamento das listas, fato que leva ao receio, justificado, da cristalização ainda maior do domínio oligárquico sobre os partidos. O outro é a tradição do eleitorado brasileiro, que não faz fé em partido e prefere votar na pessoa do candidato. A primeira objeção pode ser atenuada com uma regulamentação que determine a realização de eleições primárias para o ordenamento das listas. A segunda é mais complicada do ponto de vista político e talvez recomende a adoção de alternativa que, produzindo alterações substantivas no processo, não retire do eleitor a possibilidade de interferir na ordem da lista.
A proposta, por exemplo, do sistema de “lista flexível”, onde o partido estabelece a ordem dos candidatos, mas seria dada ao eleitor a oportunidade de votar em um determinado nome da lista. O modelo adotado na Bélgica é assim. A embocadura da campanha segue o mesmo perfil da “lista fechada”. Mas, como acontece entre nós, o eleitor ao votar pode escolher um candidato ou votar na legenda, que no caso será uma lista ordenada pelo partido. Para se saber quem foi eleito, divide-se o número de votos conseguidos pelo número de cadeiras conquistadas pelo partido, obtendo um quociente interno. Todos os candidatos que superarem este número, independente do lugar ocupado na lista partidária, estarão eleitos e, na seqüência, vale a ordem da lista até completar o número de cadeiras obtido.
O modelo belga de lista flexível tem a vantagem de não agredir da tradição do eleitor brasileiro, que continuará podendo votar no candidato ou na legenda, ao mesmo tempo em que altera profundamente os termos da disputa: campanhas centradas na disputa entre partidos e cultura do voto se deslocando da lealdade pessoal para o compromisso com valores, idéias e projetos partidários.
O financiamento público exclusivo de campanha
O formato atual de financiamento das campanhas eleitorais é um fator incontrolável de corrupção. Além de atropelar a ética, esse tipo de financiamento é uma fonte de aberrações que colocam as eleições no Brasil entre as mais caras do mundo. Além de caras, as campanhas se organizam de tal forma que torna impossível a fiscalização efetiva sobre elas.
Os dados sobre financiamento de campanha são um mistério profundo. A ferocidade da competição entre milhares de candidaturas individuais, que arrecadam e gastam fora de qualquer controle, criam um quadro caótico. A justiça eleitoral só acompanha e mal fiscaliza os gastos declarados. Do “caixa dois”, os famosos “recursos não contabilizados” (uma pálida expressão na política da sonegação fiscal que grassa na vida econômica das empresas que contribuem), só se sabe quando estouram os escândalos.
A combinação entre a lista não ordenada com o financiamento privado estimula a competição individual entre os candidatos e inviabiliza o controle coletivo sobre os gastos de campanha, pano de fundo para uma fieira interminável de escândalos. São pouquíssimos os países que permitem aos candidatos arrecadar e despender fundos de campanha, na maioria dos casos uma competência exclusiva das organizações partidárias. Aqui é a regra. Partidos fracos e sem programa nítido, os candidatos montam máquinas pessoais voltadas para a distribuição de bens, compra de votos e formação de clientela.
Os dados sobre os financiadores de campanha, precários, pois se limitam aos gastos declarados, revelam que no Brasil, mais do que em qualquer outro país do mundo, há um peso desmedido das fontes empresariais. A contribuição cidadã, de pessoas físicas, é diminuta. Um pequeno número de grandes empresas domina o mercado de financiamento de campanha, particularmente, o setor financeiro, as grandes empreiteiras da construção, a indústria pesada e, mais recentemente, os novos barões do setor privatizado.
Tal formato de financiamento perpetua o “status quo”, estreita os vínculos entre as máquinas eleitorais e os interesses empresariais das grandes corporações, criando obstáculos intransponíveis para que novos valores e interesses sociais conquistem espaços nas instituições representativas. As últimas eleições confirmam: campanhas cada vez mais caras, formação escancarada de bancadas das grandes corporações, espaço menor para os candidatos de opinião. Ademais, por trás de cada obra superfaturada haverá sempre um tesoureiro de campanha: expressão concreta do financiamento privado como fator incontrolável de corrupção.
Por conta de tal quadro, a proposta de financiamento público de campanha ocupa um lugar central na luta por reforma política. Para garantir a independência e a viabilidade dos candidatos e dos eleitos ante o poder econômico, alem de salvaguardar o principio da igualdade na disputa, o financiamento publico precisa ser exclusivo, com pesadas punições para quem violá-lo. Para funcionar de maneira justa, é necessário que se estabeleça um teto de gastos para cada cargo em disputa, além da montagem de um rigoroso aparato de fiscalização sobre o uso do fundo público eleitoral. O direito de voto assegurado de maneira igualitária ao cidadão requer que o direito de “ser votado” não sofra a interferência indevida do poder econômico. Esse é o sentido maior da luta em defesa do financiamento público.
O voto obrigatório
Existe um mal-estar no senso comum em relação ao voto obrigatório. Toda obrigação incomoda. Este fato, indiscutível, favorece os defensores do voto facultativo, que ademais apresentam sua proposta como fator de desmonte da praga dos currais eleitorais. Falso. Na República Velha, o voto era facultativo e os currais proliferavam. O voto obrigatório foi implantado na década de 30 e os curais continuam a operar até hoje. Ou seja, sendo obrigatório ou facultativo, o voto pode se tornar mercadoria: a coerção que encurrala eleitores é de outra natureza.
A desmoralização da política em geral e a descrença no voto como instrumento efetivo de mudança, elementos que favorecem a cristalização do poder de quem já está por cima, também joga água no moinho dos que defendem o voto facultativo, apresentado como uma vitória da liberdade individual. Desobrigado de votar, o indivíduo fica mais “livre” ao deixar de “perder” aquele pedaço do dia em que, de dois em dois anos, comparece na sessão eleitoral. Falsa conquista, e perigoso conceito de liberdade individual, que compromete a realização do princípio republicano da soberania popular.
O voto, além de um direito duramente conquistado, deve ser considerado um dever cívico, sem o exercício do qual aquele direito se descaracteriza ou se perde, afinal, liberdade e democracia são fins e não apenas meios. Quem vive numa comunidade política não pode estar desobrigado de opinar sobre os seus rumos. Nada contra a desobediência civil, recurso legítimo para o protesto cidadão que, no caso eleitoral, pode se expressar no voto nulo (cuja tecla deveria constar na máquina de votar).
A questão, no caso, é outra. Com o voto facultativo, o direito de votar e o de não votar ficam inscritos, em pé de igualdade, no corpo legal. Uma parte do eleitorado deixará voluntariamente de opinar sobre a constituição do poder político. O desinteresse pela política e a descrença no voto serão registrados como mera “escolha”, sequer como desobediência civil ou protesto.
A consagração da alienação ou alheamento político como um direito legal interessa aos conservadores. Reduz o peso da soberania popular e desconstitui o sufrágio como universal. Ganha com a mudança quem deseja o povo como “maioria silenciosa”, gigante adormecido, aglomerado de consumidores, nunca como titular soberano e organizado do poder político. A redução da universalidade do sufrágio se expressa como exclusão social, e elemento efetivo de cristalização do poder nas mãos da chamada “classe política”. A investida liberal no “estado mínimo” se associa à teoria da representação mínima, que articula voto facultativo, cláusula de barreira e sistema distrital misto. Querem reduzir a participação política, eliminar partidos e esterilizar o voto de oposição.
Para o cidadão ativo, que além de votar se organiza para garantir os direitos civis, políticos e sociais, o enfoque é inteiramente outro. O tempo dedicado ao acompanhamento da política não se apresenta como restritivo da liberdade individual. Pelo contrário. A idéia de que a democracia se constrói nas lutas do dia-a-dia se contrapõe, na essência, ao modelo liberal. O cidadão escolado na disputa política sabe que a liberdade de não ir votar é uma armadilha. Para que o sufrágio continue universal, para que todo poder emane do povo e não dos donos do poder econômico, o voto, além de um direito, deve conservar a sua condição de dever cívico.
O Senado e a questão federativa
O papel que cumpre o Senado Federal no processo legislativo brasileiro deve ser incluído no roteiro de debates da reforma política. Como está estabelecido hoje, ele beneficia o conservadorismo político, complica e torna mais moroso o processo de deliberação legislativa, alem de ser um dos elementos de desequilíbrio na representação proporcional da cidadania no parlamento brasileiro.
Os mandatos excessivamente longos, oito anos, e o fato de a representação no Senado não se renovar por inteiro numa mesma eleição, um terço e dois terços a cada quatro anos, reforçam a sua imagem pública de uma casa conservadora. Dizem até que a arquitetura de Niemayer cravou tal simbolismo no concreto do Palácio do Congresso Nacional. A cuia voltada para cima, onde está o plenário da Câmara, objetiva difundir os clamores do povo na casa que deveria representá-lo. A cuia voltada para baixo, onde está o plenário do Senado, visa abafar tais clamores.
A concepção dual da representação que norteia a idéia do federalismo democrático é o pressuposto para a existência de duas câmaras. A representação nacional dos cidadãos, com seus conflitos de interesses, valores e ideologias, se dirige para a “casa do povo”, a Câmara dos Deputados. E ao Senado, a “casa dos Estados”, se reservaria o papel de representação territorial desta mesma cidadania. Representação que só pode ser igualitária, ou seja, o mesmo número de senadores para cada Estado, independente do tamanho do seu eleitorado ou importância econômica. Um princípio justo, desde que as atribuições do Senado fossem limitadas à questão federativa.
Ao acumular prerrogativas estranhas à sua função específica, o Senado viola ao mesmo tempo a representação proporcional e os princípios do federalismo democrático. A possibilidade de iniciativa de legislação em qualquer tema, o poder de veto sobre as leis aprovadas na Câmara dos Deputados, mesmo que tais decisões nada tenham a ver com o equilíbrio federativo, são demasias que criam funções sobrepostas: extrapolam o objetivo clássico da “casa dos Estados” e, ao mesmo tempo, tornam o processo legislativo mais moroso e complexo.
Ao funcionar como casa revisora em matérias da agenda geral do parlamento, o Senado se descuida da sua função específica e, de pauta cheia, deixa de cumprir seu papel de instrumento de superação das graves desigualdades regionais. Opera menos para garantir o equilíbrio federativo e mais para fortalecer as oligarquias regionais, quase sempre mancomunadas com o titular de turno no Executivo central. O manancial inesgotável de escândalos que se sucedem tem nesta distorção uma de suas fontes.
Aliás, por conta de tais escândalos, tem prosperado, inclusive em setores da esquerda, a tese do fim do Senado. Uma tese que ainda não se ocupou de analisar todas as conseqüências da proposta. O regime unicameral é próprio das repúblicas unitárias, assim como o regime federativo demanda o formato bicameral. Sugerir o fim do Senado implica, por suposto, na supressão do regime federativo. O que, como sugeriu o sociólogo Chico de Oliveira, beneficiaria os paulistas. Até como agitação e propaganda a tese é perigosa e irresponsável, pois a indignação popular com os escândalos no Senado, a bola da vez, se estende ao conjunto do Congresso. Neste quadro, além de pontos ligados à redução do mandato dos senadores para quatro anos e da supressão do suplente sem voto, a questão central é a redefinição do papel do Senado Federal, que deve deixar de ser casa revisora e ter sua competência concentrada nas questões federativas.
Alargar os espaços para o debate e destravar os instrumentos da democracia direta
As marchas e contramarchas da história recente mostram que a reforma política é uma questão tão importante que seria uma temeridade deixá-la entregue ao reduzido círculo do debate parlamentar ou na competência exclusiva dos partidos políticos. O parlamento aprova, os partidos são os veículos finais das propostas, mas a sociedade precisa fazer pressão e fornecer régua e compasso, sob pena de continuarmos no patamar de impasse. Impasse que se agrava pela conjunção de vários fatores: agenda parlamentar dominada pela pequena política, superposição de casuísmos na legislação eleitoral, desvirtuamento e desprestigio dos partidos, hoje impossibilitados de cumprir a função essencial de organizar a política como ação coletiva.
Felizmente, há indícios de que o debate começa a migrar para espaços mais arejados. Exemplos? A AMB, Associação dos Magistrados Brasileiros, editou cartilha e promove uma campanha de esclarecimento sobre os diferentes pontos da reforma. A OAB, Ordem dos Advogados do Brasil, em movimento articulado pelo Professor Fábio Konder Comparato, opera no mesmo sentido, bem como a CNBB, Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil. São as chamadas “estruturas intermediárias de poder” que começam a entrar em campo. Como aconteceu no tempo da luta contra a ditadura, essa é uma carta que pode desembaralhar o debate e transferi-lo para o leito mais amplo da participação cidadã.
A “Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político”, documento apoiado por dezenas de diferentes organizações sociais, abre uma vertente nova. Além do apoio ao financiamento público exclusivo, ao voto de lista e ao fim da cláusula de barreira, trata de outros temas: o fim do estatuto da reeleição, a limitação do número de mandatos e a possibilidade da constituição de federação de partidos. Querem também que seja instituída a revogação popular dos mandados eletivos, além de advogar que a própria reforma política em debate, depois de aprovada no Congresso, seja submetida a um referendo popular.
• A grande novidade do documento, que constitui o eixo da proposta, é o fortalecimento da democracia direta e participativa: a regulamentação menos restritiva dos plebiscitos, referendos e da iniciativa popular de leis. Ao enfatizar o princípio da soberania popular ativa, a proposta retoma o que está escrito na Constituição de 1988, que incorporou essa segunda forma de exercício da cidadania. Está lá, em letras de forma: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos destas Constituição”. A inexistência de regulamentação ou a regulamentação extremamente restritiva, num quadro marcado pelo refluxo dos movimentos sociais, deixaram tal conquista na condição de letra morta.
A entrada dos movimentos sociais no debate da reforma política, não por acaso, recoloca o tema da democracia direta na ordem do dia. A democracia avançada, que incorpora direitos civis, políticos e sociais, só se realiza na combinação da democracia representativa com a democracia direta. Trata-se de uma aspiração permanente dos movimentos sociais que, agora, se recoloca na luta pela reforma política.
O Lula declarou que, fora do governo, será um leão na defesa da reforma política. A nova presidenta colocou a reforma entre os pontos centrais de seu discurso de posse. A experiência pregressa indica que sem uma nova rearticulação de forças, que possa envolver setores de partidos, estudiosos que se dedicam ao tema no universo acadêmico, movimentos sociais e as chamadas “estruturas intermediárias de poder” a reforma não sairá do atual patamar de impasse. O PSOL deve contribuir para alargar os espaços de debate e para construir nexos de articulação entre os buscam definir um novo projeto global de reforma política.
Chico Alencar – Deputado Federal – PSOL/RJ