Pesquisas do Nepo fundamentadas em dados oficiais revelam tamanho da disparidade.
MARIA ALICE DA CRUZ
O histórico de iniquidade racial no Brasil ainda repercute no acesso de habitantes autodeclarados negros aos serviços de saúde, mais de 120 anos depois de abolida a escravatura. Hoje, entre os negros, o risco de morrer por tuberculose, por exemplo, é 70% maior em relação aos brancos, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Essa disparidade se revela também em indicadores de outros órgãos oficiais, entre os quais: a morte materna por hipertensão gravídica se mostra maior entre as mulheres negras; o índice de mulheres que passam por sete consultas no pré-natal, de acordo com relatório do Ministério da Saúde, é de 62% entre mães de nascidos vivos brancos e de 37% entre mães de nascidos vivos negros; as doenças infecciosas e a desnutrição matam mais crianças negras que brancas, sendo o risco de uma criança negra morrer por desnutrição 90% maior em relação às brancas; o risco de mortalidade antes dos 5 anos de vida por infecções e parasitoses é 60% maior entre crianças negras. Segundo a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS 2006), a mortalidade de crianças negras até 5 anos de vida é de 36 por mil, diminuindo para 28 por mil ao se tratar de crianças brancas. Esses dados compõem um conjunto de pesquisas levadas a cabo por estudiosos do Núcleo de Estudos da População (Nepo) da Unicamp.
Diante de dados como estes, fornecidos por órgãos oficiais, a professora Estela Maria Garcia Pinto da Cunha, do Núcleo de Estudos da População (Nepo), não vê outra resposta senão: “Tem diferencial social sim, mas a ele devemos adicionar diferenciais raciais”. De acordo com ela, existe na atualidade um consenso entre os estudiosos sobre as doenças que ocorrem com mais frequência na população negra que podem ser agrupadas em: doenças geneticamente determinadas, como anemia falciforme, deficiência de glicose-fosfato, foliculite; as adquiridas em condições desfavoráveis, entre as quais, desnutrição, anemia ferropriva, doenças do trabalho, DST/Aids, mortes violentas, mortalidade infantil elevada, abortos sépticos, sofrimento psíquico, tuberculose, transtornos psíquicos; e as de evolução agravada ou tratamento dificultado, como hipertensão arterial, diabetes mellitus, coronariopatias, insuficiência renal crônica, câncer e miomatoses, entre outras.
Referência internacional em estudos sobre a população negra, o Nepo iniciou em 1986 uma pesquisa abrangente, na qual foram analisadas as mais diversas dimensões da desigualdade racial. Na opinião de Estela, membro do Conselho Nacional de Saúde da População Negra do Ministério da Saúde, o Brasil trabalha para lograr a equidade racial na área de saúde, mas, apesar deste processo, ainda se faz necessário pesquisar diferenciais raciais que indiquem, por exemplo, por que um grupo tem maior e melhor acesso ao sistema de saúde quando comparado com outro. Os mapas da pobreza no país se superpõem aos mapas da distribuição por raça/cor, na análise da professora.
Os dados mostram que os negros têm níveis de instrução mais baixos, ocupam posições menos qualificadas no trabalho, residem em áreas menos equipadas com serviços de infraestrutura básica e acessam diferencialmente os serviços de saúde. “É verdade que o SUS trabalha com a filosofia de uma política universal, o que garante o direito de acesso a qualquer cidadão de forma igualitária, sendo um sistema exemplar na América Latina. O que se pretende é alertar para um olhar atento às especificidades da população negra, reconhecê-las, respeitá-las, estar atentos a elas e preparar os serviços de saúde para um melhor atendimento”, enfatiza.
Uma das dimensões estudadas pelos pesquisadores do Nepo, que tem grande impacto nas condições de saúde da população, é a disponibilidade de saneamento básico nos domicílios. Um levantamento feito pelo Ipea em 2007 mostra que 88% dos domicílios chefiados por bancos possuem esgoto sanitário, índice que cai para 76% no caso de domicílio chefiado por negros. “É uma diferença importante, já que esse serviço básico terá um impacto significativo principalmente na saúde das crianças”, comenta Estela. Na mesma fonte, observa-se que a diferença dobra entre os domicílios que abrigam várias pessoas no mesmo quarto (3% chefiados por bancos e 7% por negros). Nas favelas, 40% dos domicílios são chefiados por homens negros, enquanto 12% têm como chefe de domicílio mulheres brancas, segundo Estela.
“Se considerarmos conjuntamente indicadores da dimensão social e racial e acrescentarmos gênero, constatamos que são as mulheres, negras e pobres, as que sofrem as piores vulnerabilidades”, explica a professora. Ela acentua que os diferenciais raciais nas condições de saúde têm caráter estrutural de tudo o que envolve a desigualdade racial no Brasil, revelando a duplicidade da configuração racial e social da sociedade brasileira. A professora reforça a necessidade de realizar uma série de atividades paralelas como pesquisas que explorem as especificidades de saúde da população negra, aprofundar os estudos das doenças mais prevalentes neste grupo, a capacitação dos médicos para atuarem especialmente com as peculiaridades dos negros. “Se não for assim, não vamos avançar na promoção de equidade de saúde no Brasil”, conclui.
A vulnerabilidade na população negra é consequência da construção social de desigualdades que se arrasta desde o século 16, com a escravatura, segundo Estela. Mas, apesar de já ter sido aprovada a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, muito tem que ser feito ainda para lograr a equidade social. As disparidades nas condições de vida são evidentes nas estimativas obtidas ao analisar várias dimensões da desigualdade, as quais, na opinião da pesquisadora, servem para entender, em parte, a situação diferencial na saúde.
Aprovada desde 2006, a Política Nacional de Saúde da População Negra já orientou algumas iniciativas no Estado de São Paulo. A implementação conta com a participação de movimentos sociais, com a academia e os comitês nacional e estadual da população negra, além das iniciativas municipais. “A atuação dos movimentos sociais em parceria com a universidade tem sido importante no processo de busca pela equidade racial; a política já existe. Agora temos de trabalhar para implantar essa política em todo o País”.
Emprego e salário
Os indicadores mostram que, enquanto a população branca desempregada, residente nas seis maiores regiões metropolitanas do País, respondia por 19% dos homens e 26% das mulheres da população economicamente ativa (PEA) desempregada, no caso dos negros este indicador passa a 24% para os homens, sendo que para mulheres negras chega a quase 30%. “Temos um diferencial racial muito importante com relação ao emprego formal”, enfatiza.
“Quando falamos em remuneração referente ao trabalho principal, a última Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE – setembro 2009 – mostra que os brancos têm, em média, uma remuneração 90,7% superior em relação aos negros. E na relação de homens brancos e mulheres negras, o diferencial é de 162%. Estas informações nos permitem entender melhor o nível de discrepância”, enfatiza novamente.
“Temos que entender, também, que estas diferenças de renda não podem ser explicadas, somente, pelas desvantagens de escolaridade da população negra, pois se analisamos os valores dos rendimentos-hora segundo os anos de estudo, constatamos que em todos os casos, sem exceção, os brancos se encontram numa posição de vantagem comparativa. E não se pode negar o impacto que este diferencial terá nas condições de saúde de uma e
de outra subpopulação”, acrescenta Estela.
Fonte: Jornal da UNICAMP – http://www.unicamp.br/