Reinaldo Guimarães
Publicado em Valor Econômico – 15/1/2010
Cerca de 40% do custo dos remédios correspondem a despesas de marketing
Quanto à pandemia de gripe, o que temos hoje? Boas vacinas, que são a principal ferramenta no combate às doenças virais de comportamento epidêmico explosivo (como as transmitidas de pessoa a pessoa). No Brasil, a partir de maio, o SUS estará vacinando os grupos populacionais sob maior risco de formas graves e de morte pela doença. Temos também uma grande mobilização de governos nacionais sob a coordenação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para enfrentá-la.
Mas há outras duas dimensões relevantes a serem destacadas. Em termos históricos, a atual pandemia é a primeira para cujo enfrentamento a humanidade possui uma ferramenta efetiva e segura de intervenção. Além disso, a indústria farmacêutica a colocou no centro de seus interesses. Talvez isso seja também original. Na história da humanidade, essa pandemia pode estar sendo a primeira pandemia "de mercado".
De um modo fortemente assimétrico, a indústria de vacinas e a indústria farmacêutica vêm se fundindo. A emergência das biotecnologias no horizonte da produção de medicamentos é a responsável por isso, pois boa parte da inteligência biotecnológica está na pesquisa, desenvolvimento e produção de vacinas. Tradicionalmente, por seus vínculos mais fortes com as políticas de saúde pública, os produtores de vacinas construíram "culturas" mais solidárias com as demandas de saúde pública em geral e dos países em desenvolvimento em particular. À medida que as farmacêuticas as absorvem, bem como as empresas que apenas desenvolvem biotecnologias (não fabricam produtos), a "cultura" das primeiras, muito mais agressiva e competitiva, vem se tornando a dominante no ambiente da pesquisa e da produção de vacinas.
Esse é o pano de fundo do comportamento da indústria nessa questão das vendas de vacina contra a gripe pandêmica. Uma meia dúzia de fabricantes pesos-pesados disputando uma imensa janela de oportunidades de negócio chancelada pelos governos nacionais e pela OMS. Negócios de custo relativamente baixo e de muito altas margens de lucro, por várias razões. Vamos a elas:
1) Em face da emergência da situação pandêmica e da experiência prévia com a produção de vacinas contra a gripe sazonal, houve simplificação das autoridades multilaterais e nacionais quanto aos protocolos de testes clínicos. Testes clínicos respondem por uma grande parte do custo final de medicamentos e vacinas.
2) Em torno de 40% do custo de produtos farmacêuticos na farmácia, no consultório ou no hospital correspondem a despesas de marketing (incluída aí uma parte mais avançada de testes clínicos) e as operações no varejo têm um peso muito importante. Neste caso, não houve varejo, pois as compras foram centralizadas pelos governos nacionais. A "economia" foi incorporada na margem do fabricante.
3) A cobertura midiática e a emergência objetiva estabeleceram um quadro de "pegar ou largar" que foi decisivo para uma fixação de preços difícil de ser justificada em termos de custos reais. Apenas para exemplificar, em média, o preço da dose das vacinas pandêmicas (todas as procedências) é o dobro do que tem sido pago pela dose da vacina sazonal. Difícil de explicar se considerarmos que a pandêmica possui apenas um antígeno, as sazonais possuem três e a tecnologia é a mesma, essencialmente.
4) Houve ainda um elemento que turbinou as vendas. Inicialmente foi anunciado que níveis adequados de proteção necessitariam de duas doses da vacina e várias ordens de compra no Hemisfério Norte seguiram essa norma. Não há evidências de dolo, mas objetivamente isso aumentou as vendas.
Ainda é cedo para termos um consolidado do valor das vendas mundiais de vacinas pandêmicas, mas se as estimativas da OMS para a capacidade mundial de produção – 3 bilhões de doses por ano – forem vendidas por um preço médio de US$ 9 por dose, tudo indica que a pandemia de 2009-2010 terá sido, nesse curto prazo, o maior negócio da indústria farmacêutica em toda a História.
Mas a história não acaba aqui. Por vários motivos, entre os quais não se deve desprezar a onda de irracionalismo que varre o planeta, a aceitação popular da vacina em muitos países – europeus e Japão em particular – foi menor do que a prevista. Neste momento, vários governos nacionais e a OMS vêm sendo acusados de terem entrado no jogo da indústria, adquirindo mais vacinas do que uma análise isenta recomendaria. Difícil aceitar essas acusações, na ausência de fatos mais concretos. Alguns desses governos estão revendendo vacinas com desconto ou negociando sua devolução aos fabricantes. Mas cabe um comentário final específico sobre a OMS.
Desde o final dos anos 80, um dos aspectos particulares que acompanharam a instituição da unipolaridade política e econômica no mundo foi o enfraquecimento dos organismos multilaterais de representação nacional. Historicamente, esses organismos tiveram importante papel no combate às assimetrias entre regiões e países.
No caso da saúde, observa-se uma relativa debilitação da OMS paralelamente à criação de órgãos que poderíamos chamar ad hoc, com forte participação de empresas privadas e de ONGs. Atualmente, dentre os US$ 4,5 bilhões do orçamento geral da OMS, quase 75% são constituídos por aportes dessas organizações, com objetivos e governança fortemente definidos pelos doadores. A despeito do excelente trabalho realizado pela atual diretora geral, esse quadro poderia sugerir que os pontos de vista das empresas possam estar mais presentes do que deveriam nas decisões dos comitês da OMS. Mais uma razão para reforçarmos as tratativas para a reinstituição de um saudável multilateralismo fundado numa governança de estados nacionais.
Reinaldo Guimarães é médico e secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde.
Valor Econômico – 15/1/2010