Artigo de István Mészáros publicado no jornal O Estado de S. Paulo de 24 de maio de 2009, por ocasião do lançamento do seu livro no Brasil, A Crise Estrutural do Capital (Boitempo). Eis o artigo:
István Mészáros
Se a ocorrência de crises cíclicas periódicas foi a marca do desenvolvimento capitalista, na nossa época histórica, há um novo tipo de crise que afeta todas as formas concebíveis do sistema do capital enquanto tal, não somente o capitalismo. Em Para Além do Capital (Boitempo, 2002), escrevi que seu modo de desdobramento, “em contraste com as erupções e os colapsos mais espetaculares e dramáticos do passado, poderia ser chamado de rastejante, desde que acrescentemos a ressalva de que nem sequer as convulsões mais veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro”.
As manifestações dramáticas da crise atual – da multiplicação das chamadas “greves selvagens” nos mais avançados rincões do capitalismo no mundo aos “levantes por alimentos” em mais de 35 países, contabilizadas por ninguém menos que a revista londrina The Economist, uma autoridade do establishment – indicam que as respostas das grandes massas populares, fortemente prejudicadas pelo que tem sido descrito como uma gerenciável crise financeira, podem refutar de forma frontal a autocomplacente sabedoria apologética do capital do passado recente.
É verdade que algumas das piores manifestações da crise financeira global podem ser reduzidas, e até eventualmente serem postas sob controle, mas não a crise estrutural em si. E elas permanecerão para nos lembrar, e irromper outra e outra vez de forma mais ou menos dramática, que as determinações estruturais do sistema não foram transformadas radicalmente.
O fato de não estarmos submersos ainda em outra Guerra Mundial se deve à circunstância igualmente incorrigível de que tal guerra acabaria com a humanidade, deixando o planeta às baratas. Mas ninguém deve considerar como certa a inevitabilidade de uma guerra global devastadora se não superarmos e removermos do cenário as causas sistêmicas da eventualidade dessa guerra. Porque, à guisa de registro histórico, a humanidade nunca inventou nenhuma maquinaria destrutiva que não tenha sido utilizada em escala comparável a seu potencial.
De fato, algumas vozes nos círculos militares norte-americanos, combinadas com decretos governamentais, já se levantam abertamente em prol da necessidade – e o que eles chamam de “direito moral” – de usar as armas nucleares premonitoriamente e não só preventivamente, opondo-se à renúncia do suposto “direito de usar primeiro as armas nucleares” mesmo contra poderes não-nuclearizados e apesar do apelo maciço de 1.800 cientistas, alguns recebedores do Prêmio Nobel, dirigido à administração Bush no outono de 2005. E o presidente Obama não fez nenhuma declaração no sentido oposto. Hillary Clinton, sua secretária de Estado, afirmou durante a campanha pela candidatura democrata que não hesitaria em usar armas nucleares contra o Irã.
A forma potencialmente mortífera do imperialismo global hegemônico, que se afirma cruelmente em nosso tempo, é inseparável, no plano da reprodução material, da atual fase histórica de desenvolvimento monopólico hegemônico e de centralização do poder correspondentes. Essa impossibilidade de separar as duas dimensões ressalta mais uma vez que o antagonismo explosivo é sistêmico e não pode ser superado a não ser por uma mudança radical no sistema do capital.
AS ‘SOLUÇÕES’
A atual crise também se distingue das anteriores ao começar a produzir respostas radicais desafiadoras numa escala considerável. E esse processo está longe de ter atingido seu auge. Ao mesmo tempo, as medidas adotadas com resultados duvidosos pelos governos do capitalismo dominante – que chegam à nacionalização da falência capitalista mediante impressionantes somas de trilhões de dólares – são a prova evidente de que nada pode ser mais tolo do que ainda descrever a crise atual como aquelas tradicionais e cíclicas do capitalismo, um contratempo a ser suplantado em um ou dois anos, tal como continuam afirmando os “combatentes a soldo do capital” (palavras de Marx).
Mas essa grave crise é estrutural precisamente porque não pode ser superada nem com os muitos trilhões das operações de resgate dos Estados capitalistas. Ao contrário, aprofunda-se de maneira combinada ao fracasso comprovado de medidas paliativas sob a forma de aventureirismo militar em escala inimaginável e faz com que o perigo de autodestruição da humanidade seja ainda maior do que antes. Perigo esse que se multiplica conforme as formas e instrumentos tradicionais de controle à disposição do status quo fracassam em sua missão.
Assim, uma das ilusões mais compreensíveis – embora em última instância mais derrotista – da qual temos que nos precaver é qualquer forma de neokeynesianismo, incluindo o autodenominado neokeynesianismo de esquerda. Esses chamados a sua ressurreição equivalem à última linha de resistência em torno da qual as várias personificações do capital podem obter consenso provisório num momento de grande crise. Sob tais circunstâncias, as várias formas do capital pretendem lançar mão de medidas de intervenção estatal keynesianas para restabelecer seu sistema até que possam reverter suas concessões e retornar ao status quo anterior.
Os porta-vozes do capital pedem abertamente a nacionalização de alguns dos maiores bancos e se engajam na consecução desse propósito de forma que atenda a seus interesses. De fato, eles instituíram recentemente na Grã-Bretanha uma forma hiper-hipócrita de “nacionalização” dos bancos, todos falidos. Tais porta-vozes acrescentaram que “depois de publicamente recapitalizados esses bancos serão devolvidos ao setor privado”. Eles podem dizer isso porque já nacionalizaram a bancarrota capitalista em outra ocasião – na Grã-Bretanha, imediatamente depois da 2ª Guerra Mundial – e reprivatizaram as principais unidades das nacionalizações do pós-guerra, depois de revigorá-las com recursos públicos. E estão confiantes de que podem perpetrar o mesmo truque agora, quando a crise se intensifica.
É revelador que sob tais circunstâncias os trabalhadores sejam induzidos – por seus próprios sindicatos, na Grã-Bretanha – a “apertar os cintos” e “aceitar os sacrifícios necessários”, como congelamento salarial por dois anos e significativos cortes de salários, para reestabilizar o sistema, em troca da vaga promessa de alguma melhoria num futuro pós-crise.
Com essa linha defensiva do movimento sindical, as oportunidades para uma viável mudança estratégica são perdidas pela “força das circunstâncias”. Tudo fica, na melhor das hipóteses, para um futuro genericamente esperado, que pode nunca chegar se essas oportunidades concretas, mesmo as da atual e monumental crise social e econômica, forem desperdiçadas devido à acomodação.
A verdade, portanto, é que precisamos de uma mudança fundamental, estrutural, e não a fantasia neokeynesiana de “reposicionar as cadeiras reclináveis” no convés superior do Titanic.
*István Mészáros nasceu na Hungria e foi assistente do filósofo Georg Lukács. Vive na Inglaterra.
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