Revista Debate Socialista
Nesta edição, Debate Socialista, traz uma entrevista exclusiva concedida por e-mail pelo filósofo húngaro István Mészáros. Entre os mais importantes intelectuais marxistas da atualidade, Mészáros – cuja obra é muito influenciada também por Rosa de Luxemburgo e Georg Luckács (de quem foi sucessor na Universidade de Budapeste, até ser forçado a sair da Hungria quando da invasão soviética de 1956) – refuta as hipóteses de um novo keynesianismo ou saídas à la Breton Woods como possibilidades de solução para o atual momento de profunda crise estrutural vivido pelo sistema do capital. Para ele, a única saída efetivamente viável para a humanidade é recompor a luta pela construção de uma sociedade que rompa com a lógica destrutiva do capital, baseada num novo modo de produção e de vida que dê sentido à humanidade. Confira um trecho da entrevista.
Em seu livro Para além do Capital, o senhor analisa o permanente aprofundamento da crise estrutural do sistema de capital, com a consequente possibilidade real de destruição da humanidade. A atual crise econômica global sinaliza uma mudança qualitativa nesse aprofundamento?
István Mészáros – A crise hoje em curso é com certeza muito grave e sensivelmente diferente daquela das últimas décadas. Continua sendo a mesma crise estrutural que vimos experimentando desde fins da década de 60, início dos 70 do século XX, mas é diferente porque irrompeu globalmente com grande veemência. Eu sempre acreditei que os acontecimentos do Maio de 1968 na França foram parte intrínseca do necessário surgimento dessa crise estrutural. Em fins de 1967 – em diálogo com meu querido amigo Lucien Goldman, que naquele momento, como Marcuse, ainda acreditava que um “capitalismo organizado” estava conseguindo resolver os problemas do “capitalismo em crise” – eu expressei minha convicção de que o mais grave da crise ainda estava por vir. Que o assim chamado “capitalismo organizado” não havia resolvido crise alguma. Que, ao contrário – argumentava eu naquele momento – a crise ainda seria incomparavelmente mais severa, mais grave até que a grande crise econômica mundial de 1929-1933, tendo em vista o seu caráter verdadeiramente global, pela primeira vez na História.
Para tanto, nesse debate eu comparava, já naquele momento, a natureza de época da crise estrutural do sistema de capital em curso com o caráter cíclico e conjuntural das crises econômicas do passado. A ocorrência de crises cíclicas periódicas continua sendo marca do desenvolvimento capitalista conjuntural, e continuará sendo enquanto o capitalismo sobreviver. Mas na nossa época histórica, há um tipo muito mais fundamental de crise, que se combina com crises capitalistas cíclicas, que afeta todas as formas concebíveis do sistema do capital enquanto tal, não somente o capitalismo. A crise estrutural se faz valer ativando os limites absolutos do capital como modo de reprodução social metabólica. Esta é a razão pela qual o sistema de tipo soviético do capital – que não deve ser confundido com a extração meramente econômica de sobre-trabalho como mais-valia sob o capitalismo, uma vez que ele opera sobre a base de uma esmagadora extração política de sobre-trabalho – tinha que implodir diante da intensificação global das contradições do desenvolvimento. Isto precisa ser enfatizado com firmeza hoje em dia precisamente para evitar muitas das dolorosas ilusões do passado e seus consequentes atalhos equivocados, diante dos grandes desafios do nosso futuro.
Em Para Além do Capital eu escrevi que o “modo de desdobramento” da crise estrutural, “em contraste com as erupções e os colapsos mais espetaculares e dramáticos do passado, poderia ser considerado furtivo, desde que acrescentemos a ressalva de que nem sequer as convulsões mais veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro: a saber, quando perderem sua energia a complexa maquinaria agora ativamente empenhada na ‘administração da crise’, e no ‘deslocamento’ mais ou menos temporário das crescentes contradições” (Capítulo 18, Seção 2, p.796).
As manifestações dramáticas da crise atual – desde a multiplicação das chamadas “greves selvagens” nos mais avançados rincões do capitalismo no mundo aos “levantes por comida” em mais de 35 países, contabilizadas por nada menos que o jornal londrino ‘The Economist’, uma autoridade do establishment –, indicam que as respostas das grandes massas de pessoas gravemente afetadas pelo que tem sido descrito como uma crise financeira facilmente gerenciável, podem refutar frontalmente a autocomplacente sabedoria apologética do capital do passado recente. Esperava-se dos trabalhadores, engessados pelos limites de acomodação de suas organizações defensivas (seus sindicatos e partidos voltados para as reformas salariais), que se comportassem como gatinhos carentes e não como animais selvagens. As chamadas greves selvagens (e as greves de solidariedade a elas) foram postas fora da lei na Inglaterra pela selvagem legislação thatcherista e, de forma reveladora, estas leis antissindicais não somente se mantiveram (apesar das promessas eleitorais em contrário) como ficaram ainda piores sob o governo do Novo Trabalhismo.
Assim, a crise atual é diferente no sentido de que começa a produzir respostas radicais desafiadoras numa escala considerável. E esse processo está longe de ter atingido seu auge. Ao mesmo tempo, as medidas adotadas com resultados duvidosos pelos governos do capitalismo dominante – que chegam à nacionalização da falência capitalista mediante impressionantes somas de muitos trilhões de dólares – são prova evidente de que nada pode ser mais tolo do que ainda descrever a crise atual como outra tradicional crise cíclica do insuperável e produtivo capitalismo, crise a ser superada em um ou dois anos, tal como continuam afirmando os “combatentes a soldo do capital” (nas palavras de Marx).
A grave crise em curso de nossa época histórica é estrutural no sentido preciso de que não pode ser superada nem mesmo com os muitos trilhões das operações de resgate dos estados capitalistas.
Assim, a crise estrutural do sistema que se aprofunda, combinada ao fracasso comprovado de medidas paliativas sob a forma de aventureirismo militar em escala inimaginável, torna o perigo de autodestruição da humanidade ainda maior do que antes. E esses perigos só se multiplicam quando as formas e os instrumentos tradicionais de controle à disposição do status quo fracassam em sua missão.
Não é surpreendente, então, que os Estados Unidos, o atual imperialismo dominante, reivindiquem “direito moral” para o uso de armas nucleares a qualquer momento, mesmo contra nações não nucleares.