Por Bruno Mandelli e Daniela Alarcon
A cobertura televisiva da mobilização na USP – em especial, do ataque da Polícia Militar a estudantes, funcionários e professores ocorrido na terça-feira (9/6) – é exemplo de uma prática jornalística que se resume à reprodução de “aspas”, em que os jornalistas abdicam de apurar e ser testemunhas mesmo havendo estado lá.
Essa tendência não é exclusiva da mídia eletrônica. Verifica-se um fenômeno semelhante na imprensa. Porém, na televisão, em que as imagens cumprem um papel central, a ausência de apuração causa uma espécie de curto-circuito: os apresentadores e repórteres não são capazes de dar conta das cenas transmitidas em seus próprios programas. Satisfazem-se em veicular “versões” (muitas vezes de um só dos “lados”), mesmo quando essas são desmentidas pelo que se vê.
Abdicando de informar
Em depoimento ao SPTV 2ª edição (9/6), da Rede Globo (ver aqui), o comandante da operação da PM, Cláudio Longo, afirma: “Existe uma ordem pra prender alguns lideres que estão incitando essa greve”.
A frase chama a atenção por dois motivos. Por um lado, indica que a ação da PM foi premeditada. Por outro, revela que não se visava garantir o propalado direito de ir e vir ou o cumprimento de mandato de reintegração de posse, como sustentam, em uníssono, a reitora e o governador do estado. Tratou-se, sim, de repressão ao direito constitucional à greve. O repórter, contudo, não compartilha do assombro; Longo não é interpelado a respeito do que dissera e a declaração não recebe o devido destaque. Posteriormente, a Globo passa a aceitar outras versões da PM, em clara contradição com essa. Apurar para quê?
Nos programas veiculados nas diferentes emissoras da TV aberta, há confusão generalizada sobre o grau de adesão à greve, as datas em que cada categoria ou unidade aderiu à mobilização e, especialmente, em relação à pauta. A edição do Jornal Nacional de segunda-feira (15/6) se esforça por apresentar de modo “didático” as reivindicações, que, segundo o telejornal, “incluem até o fim do ensino à distância”. Ora, ao que saibamos, a Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp) sequer começou a funcionar.
O tratamento conferido pela mídia a essa pauta específica torna evidente a abdicação do papel de informar. Os veículos afirmam, em coro, que os estudantes são contra “a criação de cursos à distância pela universidade”.
Essa simplificação torna a informação incorreta. Os estudantes não são contra o ensino à distância em todas as suas manifestações, mas sim contra um projeto específico, com características específicas. O projeto que os estudantes colocam em questão, porém, foi escondido, pelas emissoras, do telespectador. O termo Univesp sequer é citado.
Tal expediente abre espaço para estigmatizar o movimento estudantil como elitista e contrário a ampliação de vagas da universidade, ao mesmo tempo em que poupa os veículos de apresentarem ao público as críticas concretas formuladas pelos estudantes ao projeto do governo do estado de São Paulo.
Ao mesmo tempo, proliferam erros pontuais: no SPTV 2ª edição, o comandante Cláudio Longo vira Cláudio Lobo; no Em cima da hora, também da Rede Globo, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas se transforma em Instituto de Filosofia e Ciências Humanas… Para evitar o enfado, nos furtamos de elencar um a um.
YouTube x televisão
Nenhum canal de televisão foi capaz de mostrar ao telespectador uma das cenas mais importantes dos acontecimentos da terça-feira (9/6): o momento exato em que teve início a repressão policial contra os estudantes. Só tiveram acesso a essas imagens aqueles que assistiram, no YouTube ou em outros espaços semelhantes na internet, aos vídeos produzidos pelos próprios estudantes.
Os cinegrafistas das emissoras de TV que estavam no local não captaram esse momento? Se esse tiver sido o caso, não era possível reproduzir as imagens independentes? Ao não fazê-lo, as emissoras deixaram de transmitir uma informação relevante a sua audiência.
As imagens mostram com clareza que o início do “confronto” foi, na verdade, uma ação unilateral da força policial. No momento em que a polícia jogou a primeira granada contra os manifestantes (como registrado aqui), não havia policiais cercados ou sob ameaça – e, muito menos, qualquer agressão dos estudantes contra eles.
Na falta de imagens, os veículos da grande imprensa abdicaram da busca pelos fatos, optando por apresentar como possíveis as diferentes versões sobre o início – ainda que algumas delas, como a apresentada por Longo, pudessem ser postas abaixo pelas imagens que a televisão deixou de exibir.
Para militantes e apoiadores do movimento grevista, a veiculação de vídeos pela internet converteu-se em valioso instrumento informativo e de disputa da opinião. Celulares, câmeras fotográficas e de vídeo foram amplamente utilizados. As imagens, que se proliferaram rapidamente, constituem um registro muito mais abrangente e diversificado que o veiculado pela televisão comercial (a não ser, é claro, pelas imagens aéreas, uma exclusividade da grande mídia).
A televisão parece perder o bonde em meio a tal efervescência. Crescem os acessos aos vídeos de imagens por vezes desfocadas, trêmulas, reveladoras. Que formalmente trazem as marcas de sua fatura: imagens feitas entre golpes. Quando a câmera repentinamente aponta para o chão é o cinegrafista-estudante a apanhar da polícia. “Ô, louco, pra que isso irmão?! Cobertura [jonalística]!”
“A verdade é que, ao que parece…, né?”
Cabe especial atenção à cobertura dada aos acontecimentos pelo programa Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes, conduzido por José Luiz Datena (disponível no site da Bandeirantes).
O apresentador reservou mais de 20 minutos de seu programa (9/6) para cobrir, ao vivo, a ação policial na USP, e contou para tanto com um helicóptero, que sobrevoava o campus Butantã, e uma equipe de reportagem no solo. O aparato permitia uma visão privilegiada da movimentação no campus, possibilitando um acompanhamento dinâmico e detalhado da situação. Ainda assim, Datena foi incapaz de transmitir aos espectadores as informações básicas sobre o ocorrido.
O que se revela é a completa dissociação entre a rua e o estúdio; o comentário do apresentador e as imagens colhidas ao vivo não se concatenam.
Enquanto as imagens aéreas mostram as fileiras da Força Tática posicionadas na Cidade Universitária, em um longo e repetitivo monólogo Datena vaza suas opiniões pessoais, alternando momentos exaltados (“o pau vai comer”, “vai ter porrada” etc.), com aconselhamentos conciliatórios, em tom paternalista, aos estudantes.
Ao lembrar a ocupação da reitoria da USP ocorrida em 2007, Datena comenta: “Da outra vez até que o governador Serra demorou demais pra intervir”. Para ele, Serra “teve até paciência extrema”, foi “condescendente demais”. Com a linguagem que lhe é peculiar, Datena afirma que, violado o direito de ir e vir, os “princípios democráticos são arranhados” e “o couro come”.
A falação é interrompida apenas quando novas imagens surgem na tela, captadas pela equipe no solo. Um homem caído. Por quê? Datena especula: teria ele desmaiado, nervoso com o clima de tensão? Em uma passagem símbolo da extrema dissociação entre os fatos e o comentário, vemos uma mulher que, ao lado do homem caído, gesticula e grita diante da câmera. Uma imagem muda. Em lugar de suas palavras, que poderiam trazer elementos sobre as circunstâncias nas quais o homem passou mal, ouvimos o falar de Datena, que segue aventando hipóteses.
Ora, o homem era uma vítima visível de spray de pimenta. Contudo, até esse momento, Datena não se dera conta de que a ação da polícia já acontecera. A cobertura tivera início quanto o “confronto” já estava em sua fase final, isso é, quando estudantes e funcionários estavam refugiados no prédio da História e Geografia, depois de terem sido perseguidos pela polícia por mais de 1 quilômetro.
“Parece que a PM até agora não agiu”, diz Datena. Ele fala em “desobstruir ruas”, quando o que se vê é um grande vazio. Por mais surreal que possa parecer, Datena – apresentador de um telejornal, ou seja, aquele na posição de informar – simplesmente desconhece o que acabara de ocorrer.
Quando, em seguida, surge a imagem de um estudante com a perna ferida por uma bala de borracha, Datena se dá conta, no ar, de que a polícia já agira. Aos 8 minutos de reportagem, conclui: “A verdade é que, ao que parece, o local já foi desobstruído, né?”. A altura da coluna de fumaça focalizada na sequência apenas reafirma o atraso da cobertura.
Uma vez constatado que a operação já ocorrera, vão ao ar imagens frias, de horas antes, que Datena identifica como “o momento em que o pau quebrou”. As imagens, contudo, se referem ao início do ato pacífico diante do portão da USP, que ocorrera mais de uma hora antes do “confronto”.
Em meio a esses tropeços, amplo espaço para a versão da PM, uma ode ao “Estado de direito” e o encampar irrestrito da tese de que a polícia só agiu porque foi provocada com pedras.
(Colaboraram Guilherme Balza Corrêa Neto, Lucas Rodrigues de Campos e Tatiane Klein, estudantes de Jornalismo da ECA-USP)