A universidade é para estudantes, funcionários e professores. A polícia nada tem o que fazer lá, a não ser agravar os conflitos e substituir as negociações que devem mediar os conflitos. A universidade tem que dar o exemplo nisso. É esse o seu papel formador, e não o de se curvar à tradição das armas e do autoritarismo.
Por Flávio Aguiar
Assisti chocado às cenas de barbárie provocadas pela presença da Polícia Militar no campus da USP. Li os relatos de meus colegas que estavam presentes a uma Assembléia da Adusp, no prédio da História e Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Muitos desses colegas tentaram mediar a situação, e também foram agredidos com bombas de “efeito moral” – leia-se gás lacrimogênio e gás pimenta – além de outras agressões. Vi as cenas, por linques da internete, da PM invadindo o campus universitário com carros, tropas, motos, helicópteros, uma verdadeira “blietzkrieg” contra estudantes, funcionários, professores, contra a autonomia universitária, contra a universidade pública e crítica, cuja sobrevivência é vital para a inteligência do país.
As cenas têm antecedentes: lembram a invasão do prédio da Faculdade de Filosofia, na Rua Maria Antonia, no centro de São Paulo, em 1968. Além de tantas outras invasões e agressões contra a universidade, pelo país a fora, durante a ditadura e também antes e depois.
Em 1968 foram a polícia e o CCC (Comando de Caça aos Comunistas), sediados na Universidade Mackenzie, em frente, que promoveram a agressão, resultando no saque e na depredação do prédio da Faculdade, além de – mais grave ainda – na morte de um estudante, baleado por um dos membros daquela organização fascista.
Agora, fica a perplexidade: não há mais CCC, e dentro das regras constitucionais, a ação da polícia dentro do campus só é permitida de respaldada por um pedido da reitoria, salvo em casos como assalto, incêndio ou outras catástrofes, o que, evidentemente, não é o caso.
A reitoria chamou a polícia, alegando necessidade de garantir acesso aos prédios, diante de piquetes de funcionários em greve. Tomada essa medida completamente inoportuna e equivocada, as conseqüências são imprevisíveis. Como dirigente da Adusp que fui, tive de interferir em situações análogas no passado (que me parecia remoto, mas se fez presente de súbito, de novo). Invariavelmente essas situações entravam numa escalada sem fim, até a instalação da pancadaria como “forma de diálogo”, se me permitem a ironia. “Pancadaria” em termos, porque é claro que se tratava mais de um espancamento, uma vez que a desproporção entre as partes não deixa dúvidas. Daí, ao invés das palavras, rolam cassetetes, balas de borracha e as tais bombas “de efeito moral”, e a fumaceira dos disparos das balas e bombas impregna o ar com sua cortina de vandalismo onde deveria prevalecer o diálogo.
As cenas, vistas na internete (imagino para quem estava lá), são revoltantes, e tanto a presença da polícia como a atitude de quem a chamou, merecem repúdio completo. Dirigir uma universidade – qualquer universidade – não é coisa para principiantes. Há uma história por detrás disso tudo, e quem se abaliza para essa direção tem obrigação de conhece-la e obrigações para com essa história. Polícia no campus ou contra manifestações de estudantes só deu baderna e agressão contra a universidade, essa é a regra desde sempre – acho que desde a fundação das primeiras universidades na Europa, no século XIII, quando já havia conflitos entre estudantes e autoridades em nome da autonomia universitária (as primeiras foram em Bolonha e em Paris). Na América Latina sempre foi assim, e no Brasil assim aconteceu desde as históricas lutas pela abolição da escravatura e pela república. É famoso o episódio da pancadaria em Recife entre a guarda policial e os estudantes que reivindicavam a abolição e a república em setembro de 1866, o que levou o então jovem Castro Alves a declamar, da sacada de um jornal, de improviso, seu poema “O povo ao poder”, com os célebres versos: “A praça, a praça é do povo/como o céu é do condor”.
O tempo passou e o condor hoje é uma ave ameaçada de extinção a que cabe proteger. A liberdade, essa é uma ave sempre ameaçada de extinção, em qualquer canto do globo onde o autoritarismo obtuso e rombudo, mas também pontiagudo como a baioneta em riste, contra ela invista, ou onde a autoridade por detrás delas se esconda.
A universidade é para estudantes, funcionários e professores. A polícia nada tem o que fazer lá, a não ser agravar os conflitos e substituir as negociações que devem mediar os conflitos. A universidade tem que dar o exemplo nisso. É esse o seu papel formador, e não o de se curvar à tradição das armas e do autoritarismo que tanto marcaram a vida brasileira. À polícia, portanto, só resta a retirada. À autoridade que a chamou, ou que consentiu em sua presença, só resta voltar atrás e reabrir as negociações. Se alguma razão tivesse em se mostrar reticente quanto a negociar – agora a perdeu completamente, e por suas ações ou omissões.
O que cabe agora é a responsabilidade histórica de, por sobre as razões particulares, chamar à voz da razão, que manda negociar e parlamentar. Aos professores, funcionários e estudantes, da USP, solidariedade total, essa deve ser a consigna dos democratas que lutaram e lutam pela liberdade de expressão neste nosso país de violências inesgotáveis.
Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior.