A divisão sexual do trabalho foi questão central para o movimento feminista de esquerda, desde os seus primórdios. E surge como tema de pesquisa e como pauta política num tom de denuncia da invisibilidade do trabalho realizado pelas mulheres nas sociedades modernas ocidentais organizadas a partir da lógica e dos interesses do capital.
Por Zilmar Alverita da Silva[1]
Entendida enquanto uma modalidade específica da divisão social do trabalho, esta tem como característica a imposição das atividades domésticas às mulheres enquanto atividade social fundamental. E a reserva dos espaços públicos e de poder aos homens, sobretudo aos homens brancos.
Esta forma determinada de divisão do trabalho varia de uma sociedade para outra, dos contextos social, econômico, cultural e político. Transforma-se com a expansão econômica, e também com as crises do capital. Altera-se com as invenções tecnológicas e também com as lutas políticas.
Todavia, nestes contextos de mudanças, permanecem, em tais sociedades, dois princípios organizadores da divisão sexual do trabalho: o da separação e o da hierarquização. Existem trabalhos “específicos” de mulheres: cuidar das crianças (nas creches, nas enfermarias, nos domicílios). Existem trabalhos “específicos” de homens: comandar a sociedade, o partido, a família. Desta separação, tem-se uma hierarquia entre as atividades masculinas e as femininas. O trabalho do homem “vale” mais do que o da mulher[2].
E, em certa medida, é por isso que uma maior incorporação das mulheres ao mundo do trabalho não tem significado nem mesmo mudanças significativas nas tradicionais hierarquias de gênero. Pesquisas envolvendo a França, o Japão e o Brasil[3] vêm apontando “novas fronteiras” da desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Estes estudos comparativos têm indicado:
1. Novas configurações para a divisão sexual do trabalho, com a permanência da hierarquia do masculino sobre o feminino nessa nova configuração. As atividades baseadas em capital intensivo, com tecnologias mais desenvolvidas, por exemplo, são realizadas pelos homens enquanto as mulheres são encarregadas do trabalho intensivo, manual.
2. A participação das mulheres vem aumentando no universo do trabalho remunerado. Porém, isso vem ocorrendo em trabalhos precários, no trabalho informal, a tempo parcial e temporário.
3. Que apesar de algumas mudanças, como uma maior escolaridade feminina, as desigualdades salariais entre os sexos se mantêm.
4. A ‘conciliação’ entre vida profissional e vida familiar permanece realizada quase exclusivamente pelas mulheres. Por isso mesmo, em quase todos os países do mundo, as mulheres trabalham mais que seus pares.
Pesquisas envolvendo vários ramos produtivos no Brasil têm indicado que as mulheres estão sendo contratadas por setores em precarização, como o bancário e telemarketing. No setor bancário, com a automatização e flexibilização, as mulheres foram incorporadas ao setor, mas sem ruptura com as desigualdades nem com as segmentações. No telemarketing, a contratação das mulheres, jovens no primeiro emprego, está relacionada à intensificação dos ritmos, às possibilidades de um maior controle e uma maior submissão à empresa em função da inexperiência profissional e política. Este último aspecto (inexperiência profissional) vem ganhando importância no atual contexto de precarização do trabalho[4].
As permanências indicadas acima precisam estar relacionadas às permanências no âmbito do trabalho doméstico, no qual a divisão sexual deita suas raízes. Aqui, infelizmente, o quadro é de mudanças tímidas e limitadas. Segundo Hirata (2002:24):
“NO Brasil […] houve modificação na divisão do trabalho doméstico nos grandes centros urbanos, devido á inserção crescente das mulheres no mercado de trabalho e à sua grande participação em atividades profissionais fora do domicílio. No entanto, essa mudança tem um caráter tópico e não atinge o âmbito das responsabilidades domésticas, que continuam a ser atribuídas, pela sociedade, exclusivamente ás mulheres[5].”
Ou seja, tanto no âmbito profissional quanto no âmbito doméstico, têm-se mais permanências que mudanças.
Hirata, em estudos mais recentes tem relacionado estas permanências a outro lócus da divisão sexual. Segundo ela “a divisão sexual do trabalho é indissociável da divisão sexual do saber e do poder” e que “estas são constitutivas da divisão sexual do trabalho”.
No Brasil, a divisão sexual do poder tem expressão, por exemplo, na baixíssima participação das mulheres no parlamento brasileiro: somos 9% na Câmara dos Deputados e apenas 12% no Senado. Aqui cabe um questionamento: o que o trabalho doméstico tem a ver com esta sub-representação das mulheres na política formal?
Aquelas permanências devem estar associadas ainda ao modo de produção capitalista e à sua ordem social voltada para o lucro. Afinal, a divisão sexual tem sido reforçada diariamente dentro das empresas. E diante da redução do papel do Estado e de suas políticas neoliberais, tem-se uma pressão cada vez maior sobre as mulheres no que diz respeito ao trabalho no âmbito doméstico, o que se expressa nos discursos, recorrentes, que responsabilizam estas pela “desestruturação da família” resultante do trabalho extra-lar, supostamente.
Mudanças neste sentido poderiam vir da inserção das mulheres no trabalho remunerado enquanto possibilidade de engajamento político. Mas, no Brasil as mulheres predominam no trabalho informal, sem organização sindical. Além disso, sua maior inserção no mundo do trabalho formal tem sido acompanhada pelos processos de reestruturação produtiva e de forte ofensiva do capital sobre as organizações sindicais. A dupla jornada e a desestruturação sindical têm limitado as possibilidades de um engajamento das mulheres na política pela via do trabalho extra doméstico.
Partindo da idéia de que a política é a esfera na qual se tem maior possibilidade de mudanças nas tradicionais relações de gênero, o movimento feminista tem defendido cotas para as mulheres na política (nas direções partidárias e sindicais, cotas para candidaturas, nas direções dos movimentos sociais, etc). E isso é importante. Mas, seu alcance é ainda muito limitado. Alcança um numero reduzido de mulheres: aquelas que já estão de alguma forma na política. Para elevar seu número na sociedade, faz-se necessário ampliar os instrumentos de participação popular, no contexto da reforma política, como os plebiscitos e referendos, tendo em vista a ampliação da participação política das mulheres nas questões de bairros, locais e nacionais, decidindo sobre as situações que dizem respeito a toda a sociedade, inclusive sobre a maior parcela que a compõe: nós, mulheres!
Através de plebiscitos sobre temas de interesse da coletividade como “A transposição do Rio São Francisco”, sobre “Hidrelétrica de Belo Monte”, Reforma Agrária e Habitacional, entre outros, deve-se buscar envolver as mulheres na luta social e política, na agitação política, e com isso, levar a uma maior familiarização com o publico e uma maior politização nas relações no âmbito privado.
E através destes espaços de luta, ir além do questionamento das relações de gênero, questionar a ordem do capital. Isto porque a superação da divisão sexual do trabalho, enquanto parte da divisão social do trabalho, só pode acontecer de forma substancial a partir de mudanças estruturais nas sociedades. Sem ir “além do capital” não temos como ir além da divisão sexual do trabalho porque este a reforça, a renova, a fortalece, ou seja, utiliza-a em causa própria como faz com o racismo e com outras formas de opressão.
Do que foi exposto, decorre que a reflexão teórica e a luta política pela superação da divisão sexual do trabalho e pelo socialismo continuam na nossa agenda enquanto militantes feministas socialistas. A luta por um homem novo e por uma nova mulher permanece urgente! A utopia de que outro mundo é possível permanece acesa!
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[1] Militante feminista, membro da Executiva e da Secretaria Estadual de Mulheres do PSOL-Bahia.
[2] Ver Daniele Kergoat. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. Dicionário Critico do Feminismo. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
[3] HIRATA, Helena e MARUANI, Margaret (orgs). As Novas Fronteiras da Desigualdade entre Homens e Mulheres no Mercado de Trabalho. SENAC. 2003, pp. 111-123.
[4] ANTUNES, Ricardo. Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil; São Paulo: Boitempo, 2006.
[5] Nova Divisão Sexual do Trabalho? Um olhar voltado para a empresa e a sociedade. São Paulo. Boitempo, 2002.