A proposta da ofensiva socialista, de que fala Mészáros, exige, dos interessados na superação do sistema, esforços para a efetivação progressiva, já no presente, de um tipo de organização diverso do que está posto pela realidade alienante do capital.
Demetrio Cherobini
“Todo mandato é minucioso e cruel, eu gosto das frugais transgressões” Mario Benedetti
Um dos pontos culminantes da teorização política desenvolvida por István Mészáros em Para além do capital [1]é quando o filósofo estabelece a atualidade histórica da ofensiva socialista. Essa atualidade nada tem a ver com a ideia de que o capitalismo esteja em vias de acabar ou de que o sucesso da ação socialista seja hoje assegurado por alguma condição objetivamente dada na história. O que Mészáros, na verdade, afirma é que, em virtude da profunda crise estrutural do sistema do capital, na qual estamos inseridos, “a necessidade de instituir algumas mudanças fundamentais na organização e a orientação do movimento socialista se apresentou na agenda histórica” [2]. Para podermos delinear o sentido dessas mudanças fundamentais, devemos compreender as contradições que compõem o ser do capital na presente etapa histórica da humanidade.
A crise estrutural de que fala o filósofo – que de modo algum começou com as complicações no setor financeiro da economia, nos países de centro, em 2007 – foi o produto do fim da chamada “fase ascendente do desenvolvimento do capital” e da consequente confrontação desse sistema com algumas contradições que se lhe afiguraram insolúveis. Em razão disso, o capital se viu obrigado a se reestruturar de uma maneira em que a produção destrutiva passou a ser o elemento predominante de seu movimento autoconstitutivo.
Tal produção destrutiva – com seu correspondente consumo destrutivo – é que dá a forma da crise estrutural e faz com que a atual dinâmica sociometabólica da humanidade se assemelhe, no dizer de Mészáros, a um câncer em progressão [3].
O aprofundamento dessa crise estrutural – uma crise que é rastejante e não cíclica, e que é visível, por exemplo, na preponderância imperialista do Complexo Militar-Industrial e na sua incessante necessidade de guerras e conflitos, que arrastam atrás de si o conjunto da economia mundial – apresenta-se, segundo o filósofo húngaro, como a tendência fundamental de nossa época. Como tal, esse fenômeno não pode ser combatido lançando-se mão simplesmente de reformas, por mais engenhosas que estas venham a ser, e sim por intermédio de uma reestruturação completa e radical das relações de produção e dos processos de tomada de decisão política vigentes em nossa sociedade.
É, portanto, por generalizar a destrutividade a uma escala jamais vista – a escala planetária – e torná-la o “motor” da produção que a crise estrutural do capital se constitui no elemento fundante da atualidade histórica de um projeto alternativo, qualitativamente superior, de regulação do metabolismo social humano.
Aqui, é preciso esclarecer um ponto: afirmar a atualidade histórica da ofensiva socialista, como o faz Mészáros, não significa que a revolução possa ser feita a qualquer momento ou de qualquer modo. Significa apenas que ela, a revolução, é a perspectiva da qual se parte para se analisar a realidade concreta e, consequentemente, para se tomar as decisões nas questões estratégicas referentes à práxis socialista. Somente a partir desse parâmetro – a atualidade da revolução, e não o reformismo -, é que os proletários podem organizar coerentemente suas ações emancipatórias e aspirar ter êxito na realização de um projeto societário alternativo.
A perspectiva da atualidade da revolução é a que nos faz colocar, sempre, diante dos olhos, a superação do capital, e não apenas de alguma de suas partes constituintes ou expressões fenomênicas, como princípio orientador último e determinante de nossa estratégia política. O capital, como assinala Mészáros, é um sistema de controle do metabolismo social, composto por certo número de mediações [4], que se realiza no sentido de explorar a maior quantidade possível de trabalho excedente, num movimento sempre acumulativo e expansivo. A tarefa premente dos revolucionários, nesse contexto, é a de eliminar a totalidade desse conjunto de mediações e instaurar uma nova forma de organização social que restitua aos produtores associados aquilo que o capital lhes cerceia: o poder de determinar autonomamente os rumos da atividade produtiva.
Nessa luta encarniçada contra o inimigo visceral, é preciso que os sujeitos interessados na construção de um mundo novo não tenham ilusões a respeito de uma das mediações essenciais da composição do sistema: o Estado.
O Estado, diz Mészáros, não pode ser identificado e confundido com os indivíduos – ou com os cargos ocupados por esses indivíduos – que preenchem sua intrincada estrutura. Ele é, em realidade, um conjunto de relações sociais, com uma correspondente base material, que está atrelado a um conjunto mais amplo, o sistema do capital, que o determina e o faz retroagir sobre sua dinâmica sociorreprodutiva. Por ser, portanto, mera parte dessa totalidade, o Estado não pode controlá-la. Ao contrário, é pelo sistema controlado, como bem explica o filósofo húngaro.
O Estado recebe do capital a incumbência de realizar a harmonização dos conflitos que frequentemente irrompem de seu bojo, frutos dos processos fetichistas de exploração e acumulação de trabalho excedente. Imbuído dessa exigência, o Estado é até capaz de atender, aqui e acolá, algumas das demandas feitas por grupos oprimidos da sociedade, mas ele assim procede, única e exclusivamente, a fim de evitar mudanças que atentem contra a condição fundamental de existência do sistema: o controle hierárquico absoluto estabelecido pelo capital sobre o trabalho.
Essa constatação tem implicações políticas importantes para as lutas dos trabalhadores, pois mostra que não se pode pretender “encilhar” o capital por meio de reformas feitas a partir do Estado. O capital é, como explica Mészáros, uma força material que, para ser batida, precisa ser golpeada, sem vacilações, em suas raízes extraparlamentares [5].
Por consequência, o desafio central, para os proletários, passa a ser o de, sem dispensar as batalhas no interior do Estado – batalhas defensivas, por definição, mas extremamente importantes na medida em que buscam oferecer resguardo contra os ataques perpetrados pelo capital -, conseguir compor uma força material que seja, também, extraparlamentar, crítica e radical, capaz de promover a reestruturação completa das mediações antagônicas vigentes nas múltiplas esferas da sociedade.
Isso significa, em outras palavras, que as lutas no interior das instituições estatais, além de precisarem ser feitas com a maior firmeza possível, devem estar articuladas com as disputas extraestatais que visam à formação das associações coletivas capazes de regular, de maneira autônoma e horizontal, a atividade produtiva humana. A ofensiva socialista de que fala Mészáros é, justamente, o projeto que objetiva combinar dialeticamente essas modalidades de combate a fim de trazer à luz tais associações e fazer com que estas sirvam de base às grandes transformações a serem implementadas nos âmbitos da economia e da política.
É preciso, então, nesse contexto, forjar as ferramentas de luta proletária em conformidade com essa orientação estratégica geral, de coadunar negação e afirmação, combate defensivo e ofensivo, no sentido da efetivação da transição socialista.
Ora, como é sabido, nos últimos anos, com as manifestações mais explosivas da crise estrutural do capital, muitas foram as tentativas de construção de mediações de combate que possibilitassem aos trabalhadores do mundo realizar reivindicações de variados tipos. Diversos foram os países em que homens e mulheres saíram organizadamente às ruas para questionar uma multiplicidade de acontecimentos, entre eles o fato de que as decisões fundamentais, de cunho político, econômico e social, que afetavam diretamente suas vidas, estavam sendo tomadas à revelia de suas vontades[6]. Até mesmo o Brasil, guardadas as devidas proporções, foi palco para o pronunciamento de numerosas vozes, que, descontentes, clamavam por melhores condições de existência [7].
Essas organizações desempenham uma tarefa verdadeiramente árdua e indispensável: tomam ruas, ocupam praças, elaboram modos criativos de protesto, montam piquetes, pressionam, fazem agitação, enfrentam a repressão violenta do Estado, executam princípios de uma ação que se pode considerar como negativa em relação a essa ordem na qual a dinâmica sociometabólica se desenvolve sem que os sujeitos que a sustentam tenham a possibilidade de dar a ela um rumo consciente e coletivamente planejado.
A grande limitação de tais movimentos – e este é o seu calcanhar de Aquiles – é que são incapazes de transcender a ação meramente negativa (ou defensiva) e avançar no sentido de afirmar, na prática e em escala de massa, uma nova forma de regulação do metabolismo social que aponte para a superação definitiva do complexo contraditório do capital enquanto controlador fetichista e destrutivo da atividade produtiva humana.
Portanto, por mais valorosas que possamos considerar essas mediações, devemos forçosamente concluir que elas precisam, para levar suas batalhas adiante, até as últimas consequências, orientar-se de maneira ofensiva contra o capital. E esse salto programático só pode ser efetuado se os trabalhadores souberem fazer bom uso do instrumento cuja tarefa essencial é a de organizar as lutas de classes de uma forma em que se consiga ir além das reivindicações concernentes aos interesses parciais (econômicos) dos diversos setores da classe e, consequentemente, colocar em questão a própria relação antagônica – uma relação que é política, isto é, que envolve poder – existente entre capital e trabalho, que permeia a classe como um todo.
Esse instrumento de que estamos falando é o partido [8]. A atribuição específica do partido é a de, justamente,politizar as lutas econômicas dos trabalhadores, ou seja, tornar-se veículo para que a consciência proletária ultrapasse o nível da particularidade e atinja o da totalidade concreta acerca do ser da sociedade na qual estão inseridos e que atualmente é controlada pelo sistema do capital. Numa palavra: o partido deve servir de mediação entre a classe revolucionária e a consciência revolucionária [9].
Para tanto, o partido necessita ter a melhor preparação teórica e política possível – profissionalizar-se, em todos os âmbitos da práxis revolucionária -, ao mesmo tempo em que se mantém organicamente vinculado às fileiras proletárias. Ele não é, nesse contexto, o causador da revolução, mas a ferramenta dialética que ensina e aprende com os trabalhadores e que lhes possibilita apreender concretamente as múltiplas determinações sociometabólicas que afetam as suas existências.
Comprando diariamente as lutas da classe trabalhadora, inserindo-se em seu interior, realizando denúncias sobre as arbitrariedades do capital, fazendo agitação político-ideológica, usando as palavras de ordem adequadas, educando e preparando material, tática e estrategicamente as massas para a atividade revolucionária – as batalhas ofensivas com o fim de formar mediações alternativas de regulação da produção -, o partido se converte em elemento efetivo de emancipação.
O partido não pode, portanto, em hipótese alguma, permanecer a reboque das causas economicistas dos trabalhadores, mas sim buscar a elevação da consciência das massas a partir da conjugação de ações negativas e afirmativas em todos os espaços passíveis de intervenção política.
Sua própria forma de constituição interna, nesse contexto, precisa ser prenunciadora de uma formação social qualitativamente superior. Organização e orientação estratégica são, aqui, duas faces de uma mesma moeda. Isso quer dizer, em outras palavras, que as mediações alternativas da luta proletária – partido incluso – não podem se estruturar de uma maneira que reproduza a lógica de funcionamento sociometabólico do capital – um modo de controle hierárquico e fetichista da atividade produtiva. A proposta da ofensiva socialista, de que fala Mészáros, exige, dos interessados na superação do sistema, esforços para a efetivação progressiva, já no presente, de um tipo de organização diverso do que está posto pela realidade alienante do capital.
Conclusão: o desafio histórico de construir uma política socialista para além do capital
As tarefas dos trabalhadores são, portanto, imensas e urgentes. A crise estrutural que se aprofunda empurra-os cada vez mais para uma encruzilhada: seguir na trilha da produção e consumo destrutivos do capital, que perpassa e contamina negativamente as várias esferas da vida, ou estabelecer um modo alternativo de regulação do metabolismo social humano, não perdulário, não barbarizante, verdadeiramente sustentável, isento de hierarquias estruturais e fetiches e sob a responsabilidade autogestora dos produtores associados?
Se optarem pelo segundo caminho, deverão enfrentar o problema da construção das ferramentas de luta, da articulação das mediações de combate que lhes possibilitarão enfrentar e tentar superar, de uma vez por todas, o complexo do capital. Tais mediações precisarão ter um caráter ofensivo em relação ao atual sistema, isto é, orientar-se e organizar-se de uma maneira em que se possa combatê-lo a partir de suas raízes e visando ir além de sua lógica de processualidade interna. A atuação extraestatal, articulada com e dando sustentação às batalhas no interior do Estado, necessitará ser o princípio orientador indispensável do processo de transição revolucionária socialista.
O partido, como ferramenta de combate, há de ter, nesse contexto, tremenda importância, visto que será o encarregado de executar tarefas incontornáveis: interligar dialeticamente os diversos setores da classe trabalhadora; orientar seus embates contra o inimigo comum; politizar as variegadas lutas que, em razão das circunstâncias, se apresentam; conscientizar os proletários acerca da forma como se constituem e agem as mediações a serviço do capital; e dinamizar sua ação crítico-prática na direção da realização de novos modos de mediar o metabolismo social humano.
Tal é o sentido, lucidamente apontado por Mészáros, das modificações fundamentais a serem feitas no movimento socialista de nossa época histórica.
NOTAS [1] István Mészáros, Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (São Paulo, Boitempo, 2002).
[2] Ibidem, p. 858.
[3] Infelizmente, não é possível, dentro dos marcos deste artigo, detalharmos a explicação sobre o choque do capital com essas contradições – a ativação dos seus assim chamados “limites absolutos”, ocorrida por volta de 1970 – e o surgimento da produção destrutiva. Remetemos os interessados no assunto à leitura de Para além do capital, cit.
[4] Essas mediações – os meios alienados e os objetivos fetichistas de produção, o trabalho “estruturalmente separado da possibilidade de controle”, o dinheiro, a família nuclear, o mercado mundial e as várias formas de Estado do capital -, juntamente com as mediações que compõem a atividade produtiva humana, são analisadas por Mészáros em sua teorização sobre a crise estrutural do capital. Não é possível, aqui, entrarmos em minúcias a respeito de tais temas. Mais uma vez, remetemos os interessados à leitura de Para além do capital, cit.
[5] Mészáros afirma que o capital é uma força extraparlamentar par excellence. O termo extraparlamentar tem, groso modo, na sua argumentação, o significado de algo que está além do Estado, ao mesmo tempo em que o incorpora. Ou seja, o capital, para realizar seus propósitos, age dentro do Estado (isto é, por seu intermédio) e fora dele. É um sistema, portanto, que engloba as instituições estatais e as transcende. Para ser vencido, precisa ser confrontado, a partir dos seus fundamentos, em todos os espaços onde exerce sua ação.
[6] O ano de 2011 foi marcante nesse sentido. Para uma boa leitura acerca de tais acontecimentos, vale a pena conferir a entrevista de Ricardo Antunes para Valéria Nader e Gabriel Brito, “Luta pelos direitos do trabalho é hoje vital diante da crise cabal do capitalismo”, Correio da Cidadania, 08/09/2011. Como explica o sociólogo brasileiro, ainda que cada uma dessas manifestações tenha tido a sua singularidade, todas elas revelam um traço comum: expressar um profundo descontentamento em relação à ordem em que se inserem – ordem esta marcada, de uma forma ou de outra, pela grave crise do capital.
[7] Sobre esse ponto, é útil ler o bom artigo de Fernando Marcelino “Quatro lições sobre a nova dinâmica da luta de classes no Brasil”, Correio da Cidadania, 17/02/2012. Ressalte-se, ainda, nesse contexto, o fato de que, entre os anos de 2009 e 2010, houve 964 greves no Brasil.
[8] Apesar de não ser um tema central de sua vasta obra, Mészáros afirma que os partidos podem ser mediações efetivas nas lutas de classes a favor dos trabalhadores. Apresentamos algumas de suas concepções a respeito num pequeno artigo, “Por um partido socialista de orientação estratégica ofensiva: notas a partir de István Mészáros”, Correio da Cidadania, 18/11/2011, disponível em.
[9] Mészáros usa o termo – retirado d’A ideologia alemã – consciência socialista de massa para se referir à consciência revolucionária dos trabalhadores. Esse tipo de consciência deve dar conta de compreender não somente o que precisa ser negado pela práxis transformadora – o sistema de mediações do capital -, mas, também, fundamentalmente, aquilo que necessita ser afirmado em seu lugar, a comunidade dos homens e mulheres que regulam, de forma consciente e autônoma, o metabolismo social humano.
(*) Cientista social, mestre em Educação (Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil)
Artigo publicado originalmente no site da Agência Carta Maior