Escrito por Inês Virgínia Prado Soares
Quarta, 14 de Março de 2012
Na primeira semana de março, a Globo News, canal de televisão paga, apresentou, em seu programa Sem Fronteiras, a discussão sobre o tratamento aos crimes cometidos durante regimes autoritários (ou em tempos de guerra) e a importância de conhecer, registrar e divulgar as atrocidades praticadas contra as pessoas que eram consideradas “inimigos” por aqueles que estavam no poder. O programa está disponível em http://g1.globo.com/globo-news/sem-fronteiras/videos/t/todos-os-videos/v/comissoes-da-verdade-discutem-tratamento-a-crimes-cometidos-durante-regimes-autoritarios/1848533/.
Na semana anterior, no mesmo canal, foi veiculada uma reportagem, com a jornalista Miriam Leitão, sobre o desaparecimento de Rubens Paiva, após sua detenção por agentes públicos. A sua morte foi presumida, mas as circunstâncias e causas não foram esclarecidas, tampouco seus restos mortais foram localizados e entregues à família. Caso isolado? Não. No Brasil, passamos por uma ditadura militar entre 1964 e 1985 e um dos legados dessa época são cerca de 500 mortos e desaparecidos.
A informação detalhada sobre esses e outros acontecimentos nefastos da ditadura militar é um dever estatal essencial para a consolidação da democracia. As histórias das circunstâncias e motivos das mortes das vítimas, a localização dos restos mortais dos desaparecidos políticos, a revelação do teor de documentos do período são demandas de VERDADE, que ainda precisam de uma resposta pública e oficial, para que nunca mais voltem a acontecer.
No plano internacional, as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) valorizam a VERDADE e repudiam a omissão dos países em relação aos desaparecimentos forçados e outras violações nos casos das ditaduras. O Conjunto de princípios atualizados para a proteção e a promoção dos direitos humanos na luta contra a impunidade produzido pela Comissão de Direitos Humanos da ONU (E/CN.4/2005/102, disponível em http://www.unhcr.org/refworld/docid/42d66e7a0.html ) considera o direito à verdade como direito inalienável dos povos, que somente se efetiva com o conhecimento da verdade a respeito dos crimes do passado, inclusive sobre circunstâncias e motivos envolvendo tais atos.
Como forma de garantir o direito à verdade, em 18 de novembro de 2011 foram promulgadas duas leis: a Lei de Acesso às Informações Públicas; e a Lei que cria a Comissão da Verdade no Brasil. Essas leis chegam um ano depois da condenação do Brasil pela Corte IDH, no caso conhecido como “Guerrilha do Araguaia”. Neste caso, cerca de 70 vítimas estão até hoje desaparecidas, não havendo uma explicação do governo brasileiro sobre o que realmente aconteceu. Certamente, as leis mencionadas não são a resposta direta para essa condenação, mas são importantes instrumentos para se exigir a apuração da verdade sobre os acontecimentos e atos de violência praticados, permitindo uma reparação imaterial às vítimas e, também, a prevenção contra novas violações aos direitos humanos.
As Comissões de Verdade (CV) “limitam a possibilidade de negar ou trivializar as experiências das vítimas. Transformam o que se sabe acerca de fatos violentos passados, conhecimento geral em um reconhecimento oficial. O reconhecimento oficial é importante tanto por seu valor simbólico, como por seus efeitos práticos.” (BICKFORD, Louis, Proyectos de verdad no oficiales, in Verdad, memoria y reconstrucción: Estudios de caso y análisis comparado, Mauricio Romero-Editor, Centro Internacional para la Justicia Transicional-ICTJ, 2008, p. 81).
Outras iniciativas não oficiais já trouxeram à tona atos nefastos da ditadura, com destaque para o Projeto Brasil Nunca Mais (1979-1985). No entanto, há traços típicos para as comissões de verdade, e a brasileira seguiu o padrão das CV que já funcionaram pelo mundo: é um órgão temporário de investigação, composto por sete membros escolhidos pelo presidente da República, cujo trabalho é o estabelecimento de uma outra versão igualmente oficial sobre os episódios de violência, repressão e outras situações que culminaram em violações de direitos humanos, inclusive a autoria de tortura, mortes, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres. A CV brasileira deve produzir um relatório final sobre suas investigações.
Estamos na fase de escolha, pela presidente Dilma, dos sete membros que integrarão a CV. Se tudo caminhar bem, com o funcionamento da Comissão teremos mais um espaço público e oficial para iluminar a violência silenciada, afastar o esquecimento, restaurar a dignidade das vítimas e até transformar a opinião pública em relação à tirania do Estado. Uma expectativa de avanço. Se tudo caminhar muito bem…claro!
Inês Virgínia Prado Soares é Procuradora da República em São Paulo. Mestre e Doutora em Direito pela PUC-SP. Pesquisadora do tema Justiça de Transição. (Pós-Doutorado) no Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP). Membro do IDEJUST.
Última atualização em Sexta, 23 de Março de 2012