Silvia Ferraro, candidata ao Senado pelo PSOL em São Paulo
Acredito que todas as feministas brasileiras que puderam acompanhar as manifestações pela legalização do aborto na Argentina ainda pensam na luta de nossas “hermanas” todos os dias.
No meu caso, desde que voltei de Buenos Aires não paro de pensar nessa experiência. No entanto, só agora consegui um tempinho para escrever sobre ela. A pauta da legalização do aborto não será a mesma depois da semana passada, tampouco nós que participarmos da mobilização seremos as mesmas.
Eu nunca imaginei como seriam duas milhões de pessoas nas ruas lutando pela legalização do aborto. No Brasil, os atos de que participei com essa pauta juntaram no máximo dez mil. Nas ruas de Buenos Aires, haviam feministas históricas com seus 80 anos, unidas com as jovens secundaristas. Eram famílias diversas com suas crianças engajadas, eram homens, na maioria jovens, solidários e aliados das mulheres levantando a mesma bandeira.
Na noite da votação fez muito frio e chuva. Mesmo assim, grupos de jovens continuavam suas batucadas com uma animação impressionante. Na madrugada, quando se concretizou o resultado, presenciei uma cena muito triste. Meninas chorando muito, enquanto do outro lado do Congresso os “grupos pró-morte de mulheres”, que eram muito minoritários, soltavam fogos comemorando o resultado.
Três conclusões iniciais da “onda verde”
A primeira conclusão é óbvia. O Senado não representou a vontade popular. 59% dos argentinos estavam a favor da legalização do aborto. Esse episódio só reafirma que o Senado é uma das instituições mais conservadoras, muito mais sujeita à pressão das cúpulas do que das ruas. Neste caso, a cúpula do Vaticano falou muito mais alto do que a voz das duas milhões de pessoas. O papa Francisco, argentino, agiu pessoalmente para evitar que a lei fosse aprovada no seu próprio país.
A segunda reflexão a se fazer é como o movimento de mulheres na Argentina conseguiu transformar uma pauta considerada “tabu” em uma reivindicação popular. O movimento de mulheres na Argentina há treze anos, em um de seus encontros anuais, lançou uma Campanha Nacional pela Legalização do aborto, que envolveu amplamente todos os agrupamentos de mulheres e foi ganhando com argumentos contundentes a maioria da sociedade. Isso se potencializou com o movimento Ni Una a Menos, que há três anos ganhou muita força a partir de casos bárbaros de feminicídios. As pautas se unificaram. Nenhuma mulher a menos por causa de aborto ilegal! Além disso, a campanha na Argentina teve um tripé: educação sexual para decidir, anticoncepcionais para não engravidar e aborto legal e seguro para não morrer. O tema do aborto, tratado como uma questão de saúde pública e de defesa da vida das mulheres, foi essencial para mudar a opinião pública e mobilizar multidões.
O terceiro pensamento que provoca a todas nós brasileiras que estivemos lá é como fazer no Brasil um movimento similar; não igual, pois não dá pra transferir as características específicas do movimento de mulheres argentino para o Brasil. Contudo, é possível inspirar-se nessa experiência para a construir nossa própria trajetória.
Em primeiro lugar, temos que ter consciência de que aqui no Brasil estamos muito atrás. Vivemos um tempo de golpes e retrocessos, no qual as duas últimas lutas que fizemos foram para barrar o PL do Cunha, que queria proibir a pílula do dia seguinte, e o PL 181, que pretendia acabar com a permissão para os três casos em que o aborto é legal no Brasil.
Saber em que patamar estamos é importante para medir nossos passos, mas não deve servir para nos paralisarmos.
Nesse sentido, foi muito importante a iniciativa do PSOL e da ANIS de entrar com a ADPF 442 no STF. As duas audiências públicas que houve colocaram o debate em pauta, e fomos para a ofensiva contra os grupos chamados pró-vida, mas que, na prática, defendem a morte de mulheres. A defesa de Débora Diniz no STF nos encheu de esperança, foram argumentos contundentes e continuaremos nesta luta por Ingriane Barbosa e por tantas outras irmãs que morreram.
Em segundo lugar, é preciso ir além. Para derrotar os fundamentalistas e ganhar a maioria da sociedade brasileira, precisamos costurar uma unidade ampla com todos os movimentos de mulheres. Não há espaço para a divisão. É a vida das mulheres que está em jogo. Por isso, acho que o mote do festival que construímos em Brasília, “Pela vida das mulheres”, é o que tem mais capacidade de amplificar nossas vozes.
Com certeza, a pauta da legalização do aborto veio para ficar. Depois do que ocorreu na Argentina, nada mais será como antes e nem nós seremos mais as mesmas. A derrota no Senado não é capaz de fazer retroceder o movimento. Os “panuelos” verdes vão continuar tremulando nas mochilas, nos pescoços e nas mãos, na Argentina, no Brasil e em toda a América Latina.