As propostas recentes para um novo processo de representação institucional podem não trazer as mudanças pretendidas pela população
Por Gilberto Maringoni
A proposta de reforma política, apontada em entrevistas recentes da presidenta Dilma Rousseff, pode embutir uma armadilha para quem deseja mudanças reais nos processos de representação institucional.
A ideia foi ventilada pela primeira vez em pronunciamento da mandatária no dia 24 de junho de 2013, em rede nacional de rádio e TV. Estávamos em plena efervescência nas ruas. Na ocasião, ela disse o seguinte:
“É necessário que nós […] tenhamos a iniciativa de romper um impasse. Quero neste momento propor um debate sobre a convocação de um plebiscito popular que autorize o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma política que o país tanto necessita”.
A iniciativa não prosperou no Congresso e nem no governo. Mas sensibilizou centenas de entidades populares que, após competente campanha, realizaram um plebiscito não-oficial na primeira semana de setembro último. Cerca de 7,5 milhões de brasileiros tiveram a opção de responder “sim” ou “não” à seguinte pergunta:
“Você é a favor de uma constituinte exclusiva e soberana sobre o sistema político?”
Contabilizados os sufrágios, constatou-se que 97% dos votantes responderam afirmativamente à questão.
Rumos pouco definidos
Embora louvável e importante tal consulta não define rumos para a mudança pretendida.
Em sã consciência, nem a direita e nem a esquerda são contra uma reforma política.
Boa parte da esquerda tem como principal demanda a alteração do financiamento privado de campanha. As eleições presidenciais de 2014 foram as mais caras da história do Brasil. Juntos, os três principais candidatos – Dilma Rousseff, Aécio Neves e Marina Silva – arrecadaram mais de meio bilhão de reais de bancos e empreiteiras.
Como se sabe, tal numerário não sai de graça. Representa uma operação casada, na qual o possível eleito devolverá, multiplicado, o montante às empresas doadoras. Na forma de obras e serviços contratados nem sempre de forma transparente.
Estaria aí boa parte das fontes de corrupção e do desequilíbrio entre as várias campanhas. O quadro se desdobra nas disputas majoritárias estaduais e municipais e em todos os níveis dos pleitos proporcionais.
Outros pontos relevantes podem ser arrolados para uma reforma, como o voto em listas e mudanças na proporcionalidade entre os estados na composição da Câmara dos Deputados.
A direita também tem sua pauta. Ela envolve, entre outros tópicos, o voto facultativo, o distrital, a cláusula de barreira – que impede o acesso de partidos menores à televisão – e a possibilidade de se lançarem candidaturas avulsas. Essa última medida levaria ao panteão das inutilidades a existência de partidos políticos e campanhas minimamente programáticas.
Assim, a reforma política em si não parece ser a panacéia para todos os males da Nação.
Dois caminhos
A reforma pode ser realizada de duas maneiras:
1. Através de emenda constitucional, que seguiria tramitação normal na Câmara e no Senado e demandaria quórum qualificado para sua aprovação (3/5 dos membros).
2. Através de uma Constituinte exclusiva. Aqui há um nó a ser desatado. Como seriam eleitos os membros da assembléia? Que legislação regularia o pleito? Como seriam financiadas as campanhas? Em 1986, apesar de toda a força do movimento social em tempos de fim de ditadura, não se conseguiu eleger uma Constituinte exclusiva. Os setores conservadores impediram. Parlamentares eleitos naquele ano trabalharam em dupla jornada. Num período davam curso à ação congressual e em outro elaboravam e debatiam a Carta que seria promulgada dois anos depois.
A primeira possibilidade seguramente trituraria qualquer veleidade democratizante da iniciativa. O Congresso que toma posse no início de 2015, o mais conservador desde a redemocratização nos anos 1980, poderia levar a legislação atual a um retrocesso brutal. A derrota do governo na terça (28), na votação da Política Nacional de Participação Social, é um aperitivo do que está por vir.
A segunda opção também transita no perigoso terreno dos riscos não calculados. Todas as regras da disputa seriam decididas também no Congresso. O que não é lá muito estimulante.
Assim, em qualquer uma das duas hipóteses, a possibilidade de termos uma piora na legislação seria enorme.
Resultados e não causas
Processos constituintes resultam de processos de mudanças profundas na sociedade e não o contrário.
Assim foi na Constituinte de 1891, acontecida logo após a proclamação da República, assim se deu em 1946, precedida pela queda do Estado Novo, e assim aconteceu depois do fim da ditadura, em 1988.
Se olharmos para nossos vizinhos, as Constituintes da Venezuela (1999), Bolívia (2007-2009) e Equador (2008) aconteceram quando as gestões de Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa estavam em franca ofensiva política, após formidáveis processos sociais que tiraram a legitimidade do chamado modelo neoliberal.
No Brasil, talvez tenhamos perdido melhor período para rediscutir profundamente a institucionalidade. Se o debate acontecesse a partir de 2003-2004, no embalo da primeira eleição de Lula, teríamos a possibilidade de alargar conquistas democráticas.
Mas a opção governista, à época, foi promover a reforma da Previdência e a Lei de Falências, medidas ao gosto do mercado.
Opções possíveis
Diante desse quadro, qual a saída?
Primeiro, é lutar para que a Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela OAB em 2011 e já aprovada pelo Supremo Tribunal Federal entre em vigor para as próximas eleições. A entidade demanda a proibição do financiamento empresarial de campanhas, com base na Constituição.
Trata-se de um avanço considerável.
No mais, trata-se de criar na sociedade condições melhores para que uma reforma política possa ser apresentada ao Congresso em uma correlação de forças mais favorável para quem busca mudanças reais.
Isso implica lutar previamente por outras reformas, entre elas a regulação da mídia. E, no mais, investir na mobilização social. Não há atalhos.
Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC e ex-candidato do PSOL ao governo do estado de São Paulo.