“Eu não sabia que para a gente ter jogos, pra gente ter Olimpíadas, a Copa aqui, precisaria remover todas as comunidades, limpar a fachada do Rio de Janeiro. Afinal de contas, essa Copa e essa Olimpíadas é pra mim ou pra gringo?”. Moradora da Estradinha. [1].
A poucos dias da Copa do Mundo se intensifica um debate nas ruas e nas redes sociais sobre este grande evento. Vai ou não ter Copa? Contra ou a favor da Copa? Como não poderia deixar de ser, os argumentos de um ou do outro lado muitas vezes isolam seus argumentos sem dimensionar este evento como deve ser dimensionado. Ou seja, como indutor de uma política em escala nacional, sendo, para o bem ou para o mal, catalisador de ações por parte do governo e que demonstram como funcionam diversos mecanismos políticos e sociais.
Uma primeira colocação que gostaríamos de reforçar é que os protestos que envolvem a Copa do Mundo, independente de seus nomes (Contra a Copa, Copa para quem?, Na Copa vai ter Luta ou qualquer outro), por excelência são feitos para reafirmar direitos! Essa é a essência dos movimentos sociais. E afirmar direitos a partir da democracia direta, da reivindicação, pois não confiamos no Estado e temos a certeza de que os mecanismos da democracia liberal são insuficientes para atender os anseios populares, que se traduzem nos protestos na afirmação de direitos: Saúde e Educação Padrão FIFA!
Sendo assim, neste pequeno texto queremos afirmar que um dos principais direitos sociais, o direito à moradia, é afrontado pelos dois grandes eventos que se avizinham em nosso país (Copa do Mundo e Olimpíadas)! Vejamos.
Próximo do estádio chamado Itaquerão, na zona leste de São Paulo, historicamente região de periferia na cidade, há um acampamento reivindicando moradia popular com mais de 3.000 mil famílias chamado “Copa do Povo”. O acampamento é emblemático dos impactos da Copa do Mundo para a população mais pobre do país. De acordo com Raquel Ronilk[2], o índice Fipe-Zap, que mede preços de imóveis e alugueis, subiu cerca de 200% entre 2008 e 2014.Na região de Itaquera os aumentos foram ainda maiores, alcançando 100% em um intervalo de um ano. Tal fato só agrava a já grande demanda por moradia das grandes regiões metropolitanas brasileiras (quase todas com construções de estádio para a Copa). Sendo assim, milhares de brasileiros não conseguem mais pagar por alugueis, isso afeta mais ainda a população de áreas de periferia e com forte vulnerabilidade social. Por isso, ocupar terrenos e pressionar por moradia é uma resposta política desses sujeitos. Com a Copa, tal fato se agrava ainda mais.
Um dos maiores estudiosos do espaço urbano brasileiro, o professor Carlos Vainer, é enfático em dizer “Após os mega eventos, o Rio de Janeiro será uma cidade muito mais desigual”[3]. Entendemos que o quadro não será só no Rio de Janeiro, mas no Brasil todo. Esse processo tem removido milhares de pessoas de suas casas em dezenas de cidades brasileiras. Para o professor Carlos Vainer, estamos vivendo o ápice de um novo modelo de cidade e de um novo padrão de desenvolvimento urbano, cujo princípio remete ao início dos anos 90. O principal objetivo deste novo modelo é fazer o espaço urbano da cidade virar uma mercadoria e, para tal, é necessário retirar o caráter público do espaço urbano e colocá-lo sobre o domínio do capital. Os investimentos, então, são direcionados para espaços privilegiados, beneficiando um pequeno grupo de pessoas. Um exemplo disso são os mais de R$ 20 bilhões investidos pelo poder público para a Copa.[4] Desses, R$ 7 bilhões foram para os estádios da Copa e outros bilhões para remodelar os entorno dos estádios. Para o professor Vainer, os beneficiados têm práticas que privatizam o Estado, pois fraudam, através da corrupção e dos financiamentos de campanha, a manifestação democrática do processo eleitoral.[5]
Isso pode ser visto ao constatarmos que as grandes construtoras, as maiores beneficiadas com os grandes eventos, são as maiores doadoras de campanha. Em levantamento do jornal Folha de São Paulo, foi constatado que apenas três construtoras são responsáveis por 1/4 do total de doações feitas por 739 empresas aos partidos políticos em 2013. Andrade Gutierrez, Queiróz Galvão e Camargo Correa investiram 151,7 milhões do total de 637,3 milhões investidos (essas doações se concentraram nos três maiores partidos da ordem PT, PMDB e PSDB). Os dados demonstram que as eleições se tornam desiguais e privadas, em que estas empresas fazem investimentos e são recompensadas pelo novo modelo de cidades que os grandes eventos são sua maior face.[6]
O resultado é que em todo o país mais de 170 mil pessoas serão removidas de seus locais de moradia, quase sempre sem terem para onde ir.[7] De forma sintética, a Copa do Mundo, em uma análise global, servirá para aprofundar as desigualdades sócio-espaciais, consolidar uma guetificação das áreas pobres, aprofundar o fim da possibilidade da gestão democrática do espaço urbano, criminalizar a pobreza e os movimentos sociais.
Diante desce cenário, precisamos caracterizar esse processo como uma “faxina étnica” e uma “limpeza racial”. Historicamente o capital expandiu em nosso país a partir da escravidão e do projeto pós abolição que excluiu sistematicamente a população negra do ponto vista econômico, social e cultural produzindo reflexos até hoje. Deste ponto de vista as intervenções urbanas atingem brutalmente os territórios negros urbanos, seja na política de despejo e especulação imobiliária que joga as(os) trabalhadores para região mais afastadas e com menor infraestrutura, ou pelas políticas de militarização desses territórios aumentando o encarceramento e o extermínio da juventude preta, pobre e periférica.
Sabemos que o gasto com a Copa, mesmo sendo muito alto, é pequeno diante dos bilhões gastos com os juros e amortizações da dívida pública, na casa dos 700 bilhões em 2013, que enriquecem os banqueiros em nosso país. Mas do ponto de vista simbólico as lutas em torno da Copa e a discussão sobre o seu legado produzem um caráter pedagógico e fomentam um debate sobre que modelo de cidades nós queremos e os limites desse território apenas a serviço do capital sem dar respostas para mobilidade urbana, moradia popular, saneamento, educação e saúde.
Neste sentido, para nós, não cabe apenas o debate a favor ou contra a Copa do Mundo. E, sim, trazer a tona as profundas desigualdades produzidas por esse modelo de sociedade, que a Copa ajudou aprofundar, e a necessidade de mudanças estruturais em nosso país.