O Plano Nacional de Educação (PNE), recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados, prevê investimentos crescentes em educação pública, os quais devem atingir 7% do PIB até o quinto ano de sua vigência e 10% até o décimo ano. Esses investimentos são absolutamente necessários se queremos, realmente, atingir as metas educacionais previstas no PNE. Sem os necessários recursos, o país repetirá o que ocorreu com o PNE que se encerrou no início de 2011: as metas não foram cumpridas, e até nos afastamos ainda mais de muitas das mais importantes, simplesmente porque não havia recursos para executá-las.
Escrito por Otaviano Helene
Como o projeto de PNE ora em discussão deverá ainda ser apreciado pelo Senado e promulgado pela presidência da República, que tem o poder de veto, as elites nacionais têm feito uma grande campanha contra o aumento de recursos para a educação pública usando, inclusive, argumentos falsos. Vamos examinar alguns deles.
1) Com a intenção de desqualificar a proposta, o velho e desgastado argumento “dinheiro tem, o problema é que ele é mal administrado” foi ressuscitado. Com investimentos da ordem de R$ 200,00 a R$ 250,00 por mês e por estudante na educação básica, como ocorre atualmente na enorme maioria das redes estaduais e municipais, por melhor que seja a administração, tudo o que se consegue é oferecer essa educação que temos.
A elite, que usa esse argumento, jamais colocaria suas crianças e seus jovens em escolas tão mal financiadas. Apenas as mensalidades escolares pagas por ela são da ordem de cinco a dez vezes superiores àqueles valores. Além disso, é muito comum nos segmentos mais abastados – e cujos representantes repetem o refrão “dinheiro tem” – complementos educacionais de vários tipos (atividades esportivas, cursos de línguas e músicas, acompanhamento psicológico, aulas particulares, viagens culturais etc.), o que faz com que os investimentos em educação por criança ou jovem distanciem ainda mais dos investimentos em favor dos mais desfavorecidos.
Além disso, o número de anos de permanência no sistema escolar também é muito maior entre os jovens e crianças dos segmentos mais favorecidos: a terça parte das nossas crianças, basicamente concentrada entre os mais pobres, sequer completa o ensino fundamental. Assim, quando calculamos os investimentos acumulados ao longo de toda a vida, a diferença entre os investimentos educacionais feitos em favor dos mais pobres e dos mais ricos torna-se gritante.
O argumento “dinheiro tem” é falso e cínico.
2) Argumenta-se, também, que há exemplos de boas escolas públicas com recursos limitados e que esses exemplos poderiam ser seguidos por todas elas. Será?
O Brasil tem perto de duzentas mil escolas públicas, com dezenas de milhões de estudantes, e elas apresentam um desempenho médio que é esse que vemos. Mas entre um número tão grande de escolas, encontraremos o padrão médio e, também, suas variações: como qualquer média, em especial de indicadores sociais, encontraremos um grande número daquelas que estão muito abaixo da média como daquelas que estão muito acima dela. Não é surpreendente, portanto, que encontremos algumas escolas que tenham, casualmente e em um determinado período, condições particularmente favoráveis (por causa daqueles que nelas trabalham naquele período, de seus alunos e pais de alunos e do seu entorno), que lhes permitam ter um bom desempenho.
Entretanto, essas são as exceções, não as regras, e assim como existem exceções para um lado, existem, também, exceções para o outro lado. Podemos aprender com ambas, descobrindo formas de aproveitar melhor as exceções positivas e reduzir as negativas. Mas não se fazem políticas públicas com as exceções, sim com as regras. É absolutamente impossível, com os atuais recursos, termos, como regra, um bom sistema educacional.
3) Outro argumento usado contra os recursos públicos para a educação é que seu aumento poderá ter consequências econômicas negativas. Ora, primeiro, investimentos em educação têm impactos econômicos positivos, não negativos. Diversos trabalhos acadêmicos têm calculado o retorno econômico (positivo) dos investimentos em educação, mostrando que eles são, frequentemente, até mesmo maiores do que investimentos diretos no setor produtivo.
É a ausência de investimentos em educação que tem consequências econômicas negativas, como ilustram bem as atuais dificuldades de aumento da produção do Brasil pela falta de trabalhadores altamente qualificados.
Nunca se ouviu falar de um país que tenha tido problemas econômicos por ter investido em educação; o contrário disso, sim, já ocorreu. Jamais se ouviu falar de algum país que tenha tido dificuldades econômicas por ter uma população bem escolarizada; o contrário, já. Investir em educação jamais provocaria ou intensificaria uma crise econômica.
Crises econômicas são provocadas ou intensificadas por catástrofes, naturais ou não, de grande escala, guerras, epidemias graves e, como o mundo está vivendo hoje, por um sistema liberal desregrado; jamais por investimentos em educação.
4) Muitas vezes, as argumentações contra o aumento dos recursos para a educação pública até atingir os 10% do PIB parecem usar uma ideia implícita de que os investimentos sairão do PIB, no sentido de reduzi-lo. Ou seja, se aumentarmos em 5% do PIB os investimentos em educação, o PIB será reduzido em 5%. Evidentemente, não é isso. Se aumentarmos os investimentos em educação, a construção civil será aquecida, como o seria por qualquer outro investimento que dela demandasse, mas mais intensamente na forma de prédios e equipamentos escolares; mais empregos serão gerados, mas mais concentradamente para professores e demais trabalhadores do setor educacional. Haverá, também, maior demanda por veículos e eletricidade, maior consumo de equipamentos elétricos e eletrônicos, de papel, de produtos gráficos etc., enfim, de tudo aquilo do qual o PIB é feito, mas beneficiando mais concentradamente a área educacional.
Portanto, no curto prazo, o PIB não diminuirá por causa de um aumento dos investimentos em educação e crescerá ou não independentemente deles; mas as condições sociais do país melhorarão. No médio e longo prazo, um melhor padrão educacional da população certamente terá um impacto positivo no PIB.
5) O previsto no PNE é que os investimentos cresceriam ao longo de dez anos, atingindo os 10% apenas no décimo ano. Isso significa aumentar a destinação de recursos para a educação em cerca de 0,5% do PIB ao ano, uma pequena parte do crescimento econômico médio anual desde 2004. Como investimentos em educação têm impacto positivo no crescimento do PIB, no fim do período de dez anos, o PIB já estaria crescendo por causa dos investimentos feitos nos primeiros anos e o aumento dos recursos para a educação já estaria sendo financiado pela própria melhoria na educação.
6) Hoje, o Brasil investe cerca ou menos de 15% da renda per capita anual por estudante e por ano no ensino básico. Investimentos, por estudante e por ano, em diversos países, pobres ou ricos, mas que cuidam da educação de suas crianças e de seus jovens são da ordem de 25% da renda per capita. Se reduzirmos a evasão escolar, aumentarmos o número de estudantes no ensino médio e ampliarmos a educação infantil, como previsto no PNE, teremos um aumento do contingente de estudantes que, com os mesmos recursos totais, faria com que o recurso por aluno fosse ainda mais reduzido.
Portanto, precisamos aumentar os recursos tanto para aumentar os investimentos por estudante como para incorporar novos alunos.
O que as elites querem ao fazer discursos, editoriais e artigos contra mais recursos para a educação pública? Que o Brasil continue a excluir do sistema educacional muitas crianças e jovens e a atender os que insistem em permanecer de forma tão precária?
7) O atual piso salarial (salário bruto) dos professores, por 40 horas semanais de trabalho, é inferior a R$ 1.500 por mês. Será que as elites poriam seus jovens e suas crianças em escolas cujo piso fosse igual a esse? Aqueles que atacam o aumento dos recursos para a educação pública estão querendo que essa situação perdure.
8) Nenhum país superou atrasos escolares tão grandes como os nossos sem investir percentuais do PIB próximos ou mesmo superiores a 10%. Nós precisamos fazer o mesmo e apenas quando os atrasos educacionais tiverem sido superados e o sistema estiver consolidado podemos reduzir os investimentos. Evidentemente, articulistas e editorialistas dos grandes jornais e outros que multiplicam a campanha contra o aumento de recursos para a educação sabem disso. Assim, ao fazerem tal campanha, estão, de fato, defendendo que o país permaneça atrasado no que diz respeito à educação. Se nenhum país conseguiu construir um sistema educacional aceitável e superar os atrasos acumulados sem investir os recursos necessários, alguém acredita que o Brasil conseguiria?
9) A proposta de aumentar os investimentos públicos em educação foi acusada de populista pelo editorialista de um jornal. Certamente o editorialista sabe muito bem o significado da palavra populismo e, portanto, sabe que a proposta, de fato popular, nada tem de populista. Ao fazer tal acusação, o editorialista se aproveita do fato de que, provavelmente, seus leitores não sabem o que significa aquela palavra, mas repetirão seu “argumento”. Até mesmo para evitar que aquele tipo de acusação vazia tenha alguma consequência, precisamos de mais e melhor educação pública.
10) Em um artigo de jornal, usou-se o fato de que o aumento de recursos para a educação é dez vezes maior do que para a bolsa-família. Que sentido tem essa comparação? A bolsa-família é um referencial econômico padrão, a ser usado como referência para outras políticas públicas?
Provavelmente, o autor do argumento pressupõe que seus leitores são preconceituosos em relação a programas do tipo bolsa-família e a comparação, ao mesmo tempo em que reforça esse preconceito, provoca uma aversão do leitor ao aumento dos recursos públicos para a educação.
11) O editorial de um jornal de grande circulação acusou aqueles que defendem o aumento dos recursos para a educação pública de corporativista. Na falta de argumentos, a estratégia pode funcionar, pois não analisa a proposta, mas desqualifica aqueles que a defendem. Tal acusação não tem nenhum sentido. A defesa de mais recursos para a educação pública está na pauta de muitas entidades científicas, profissionais, acadêmicas, religiosas, sindicais etc.
Obviamente, entidades de professores e estudantes – às quais, presume-se, caberiam a acusação de corporativismo – também têm se manifestado na defesa da educação pública, não por questões corporativas, mas por compromissos com o desenvolvimento social do país. Seria um total absurdo achar que exatamente essas entidades, que melhor conhecem os nossos problemas educacionais, se omitissem.
Será que aquele editorialista acusaria de corporativos médicos, secretários de saúde ou dirigentes de hospitais que participassem de discussões sobre saúde pública no Brasil, defendendo, por exemplo, o aumento dos recursos para o SUS? Ou sindicalistas, industriais e entidades que congregam engenheiros, por exemplo, que discutissem a política industrial do país? Ou editores e jornalistas que manifestassem opiniões sobre nossa política para o setor de comunicações?
12) Há, ainda, o argumento de que um aumento dos recursos para a educação pública pressionaria, de forma muito intensa, as contas da União, dos estados e dos municípios. Esse argumento também não está correto. Para responder a ele é necessário comparar os investimentos públicos brasileiros com os de outros países. (A comparação mostra que os investimentos sociais públicos no Brasil são bem menores do que se observa nos países organizados, não necessariamente apenas naqueles mais industrializados.)
Há, inclusive, um documento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), órgão vinculado à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, que mostra que o aumento dos recursos para a educação poderia ser conseguido apenas reduzindo-se o encargo da dívida e aproximando muitos dos nossos impostos daquilo que é praticado nos demais países capitalistas.
Esse último tema será desenvolvido em um próximo artigo.
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Otaviano Helene, professor no Instituto de Física da USP, foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Artigo Publicado originalmente no Correio da Cidadania