Artigo de: Maria Lúcia Fattorreli publicado no: Unamérica
Assistimos, nos últimos dias, às crescentes mobilizações sociais que têm levado centenas de milhares de pessoas às ruas, em toda a Europa, protestando contra as drásticas conseqüências da crise da dívida pública que atinge fortemente a economia européia e a vida de seus cidadãos.
Muito se comenta sobre a necessidade de pagar a dívida e o remédio empregado pela Comissão Européia, juntamente com o FMI e o Banco Central Europeu, é um amargo composto de medidas de ajuste fiscal: reforma da previdência visando aumentar a idade para aposentadoria e reduzir benefícios dos trabalhadores; demissão de milhares de servidores públicos; corte de serviços públicos; aumento de tributos; privatizações, dentre outras.
Pouco se comenta que essa crise da dívida decorre principalmente da crise do setor financeiro bancário deflagrada em 2008: os maiores bancos internacionais do planeta corriam risco de quebra, devido ao excesso de derivativos sem lastro e outros produtos financeiros sem respaldo e sem valor algum – chamados de “ativos tóxicos1” pela grande mídia. Imensurável quantidade de sucessivas séries e mais séries desses papéis podres criaram uma “bolha” que inundou o mercado financeiro mundial de verdadeiro “lixo”.
A crise atingiu primeiramente os grandes bancos norte-americanos, atolados desses papéis podres. A emissão descontrolada de tais produtos financeiros foi possibilitada porque os controles existentes, determinados pela SEC2 – órgão criado logo após a crise de 1929 e que desde então exercia o papel de controlar a qualidade e autenticidade dos papéis negociados no mercado financeiro – foram desrespeitados por diversas grandes instituições financeiras3.
A quantidade de derivativos e papéis tóxicos alcançou níveis tão elevados que o Presidente Barack Obama chegou a mencionar a criação de “bad banks”, instituições que se prestariam a acatar volumes expressivos desses papéis podres, realizando uma “faxina” para aliviar o sistema financeiro americano4. Outra proposta do presidente do FED norte-americano Ben Bernanke foi a criação de “big bad banks”, ou “aggregator bank”, uma super instituição capaz de absorver quantidades ainda maiores desses papéis podres.
A mesma idéia surgiu também na Europa no início de 2009, conforme notícia divulgada pelo jornal Financial Times5:
“Os ativos tóxicos de problemáticos bancos alemães serão evacuados para “bad banks” sob um plano governamental, segundo o Finantial Times. Ao invés de instalar um “bad bank” nacional, o governo alemão quer que os bancos organizem veículos individuais para amparar seus ativos ilíquidos.”
É importante ressaltar que as instituições que emitiram esses ativos tóxicos eram as maiores e mais importantes do mundo financeiro internacional, porque estas eram justamente as que possuíam credibilidade suficiente para ter seus próprios papéis acatados e negociados no Mercado financeiro. Apenas algumas dessas importantes instituições chegaram a quebrar – Lehman Brothers, por exemplo – mas logo os Estados Unidos aprovaram plano de salvamento do sistema financeiro que incluiu a estatização de parte do Citibank e outras transferências bilionárias de recursos públicos para instituições do sistema financeiro privado, a fim de salvá-las e impedir sua falência.
Destino diferente tem sido enfrentado por inúmeros fundos de pensão, que passam por grandes dificuldades6, deixando trabalhadores completamente desamparados. Esse tema merece atenção total no Brasil, tendo em vista os riscos de transferência de ativos tóxicos para o País, ao mesmo tempo em que a União, estados e municípios impulsionam a criação de fundos de pensão para servidores públicos.
Os bancos ameaçados de falência cobravam ações urgentes dos governos alegando contaminação da crise iniciada nos Estados Unidos7, sendo que a estimativa, no início de 2009, era de que apenas no sistema bancário alemão haveriam US$ 1,1 trilhão de ativos tóxicos.
Reuniões emergenciais organizadas pela Comissão Européia levaram à aprovação de plano de salvamento dos bancos, mediante o alívio de papéis podres existentes no sistema bancário. Desde o início desse plano, todos estavam cientes do enorme risco que representava para toda a região, como mostra a notícia seguinte, de fevereiro/20098, segundo a qual “Um salvamento de papéis podres em poder de bancos europeus poderia mergulhar a União Européia em crise, segundo documento confidencial de Bruxelas”:
Da notícia se depreende que ademais de cientes dos riscos de ruína econômica, todos os países do Norte passaram a destinar significativos volumes de recursos para salvar instituições financeiras em risco de quebra. Não há a devida transparência sobre as bases da decisão tomada – que se baseou em documentos secretos, conforme mencionado na notícia acima – nem acerca da quantidade de recursos efetivamente destinada para esse fim. Estimativas apontam para muitos trilhões, mas nenhum país revelou claramente a quantia destinada para o salvamento de bancos desde 2008.
A parte mais preocupante da história é que os países do Norte não possuíam, em seus respectivos orçamentos públicos, recursos suficientes para as operações de salvamento bancário que decidiram efetuar.
EUA e países europeus criaram dívida pública mediante a emissão de títulos públicos, para entregá-los aos bancos, a fim de reparar o enorme rombo gerado pela “bolha” de papéis podres. Dessa forma, uma parte significativa dos títulos soberanos desses países não representaram verdadeiramente dívida pública, ou emissão de títulos para obter recursos para financiar o Estado, senão a utilização do mecanismo da divida para garantir fundos para instituições financeiras.
Decorridos pouco mais de dois anos, as previsões se concretizam, com tremenda crise da dívida em todos os países, e pior: a conta está sendo repassada para a sociedade como um todo e os bancos estão a salvo, pois transferiram os “ativos tóxicos” para os “bad Banks” ou diretamente para os cofres públicos.
Em reunião do G-20 realizada em abril/2009 foi proposta a regulamentação do mercado financeiro internacional, pois justamente a falta de regulamentação permitiu a emissão desenfreada de derivativos sem lastro que originaram toda essa crise, com alto custo para o povo europeu. Não passou.
No ano seguinte, o G-20 apenas discutiu a necessidade de regulação mais rigorosa para grandes instituições financeiras, consideradas “grandes demais para quebrar”, admitindo9 que tal regulação seria uma medida para evitar que novas eventuais falências não tivessem que ser resolvidas pelos governos, aprofundando a dívida pública e colocando economias inteiras em risco.
A situação predominante no mercado financeiro internacional é a desregulamentação, a autonomia do setor financeiro bancário, a liberdade de movimentação de capitais, a especulação e, obviamente, os “bad Banks” e toneladas de ativos tóxicos.
Nessa circunstância, seria saudável que o Brasil investisse suas riquezas em “ativos internacionais”?
Creio que a resposta mais prudente seria NÃO, pois além do evidente risco de adquirirmos os ativos “tóxicos”, que são material abundante no mercado financeiro internacional, nosso país – campeão em desigualdades sociais e regionais – tem inúmeras destinações aqui mesmo para a realização de investimentos reais.
Diante disso, não se compreende a razão pela qual a Lei nº 12.351, aprovada na véspera do Natal de 2010, determinou10 que a aplicação dos recursos do Fundo Social do Pré-sal (FS) será realizada da seguinte forma: “investimentos e aplicações do FS serão destinados preferencialmente a ativos no exterior”.
Tal operação representa efetivo risco de absorção, para o Fundo Social do pré-sal, dos abundantes ativos tóxicos que contaminam as economias da Europa e Estados Unidos, cujo rendimento será nulo!
A Presidente Dilma chegou a afirmar que pretende utilizar os recursos do Pré-Sal para reduzir a pobreza e para outras áreas sociais. Porém, a Lei aprovada pelo Congresso Nacional prevê que os recursos do Pré-Sal serão destinados ao exterior, e somente o rendimento desse fundo será destinado para as áreas sociais. Na realidade, o Fundo Social corre o risco de se tornar o “lixão” que aliviará de vez os trilhões de papéis podres que ainda inundam o sistema financeiro internacional.
Também não se compreende a razão pela qual a Lei nº 11.887/2008, que criou o Fundo Soberano (FSB), determinou que “Os recursos do FSB serão utilizados exclusivamente para investimentos e inversões financeiras (…) sob as seguintes formas: I – aquisição de ativos financeiros externos (…)”.
Para aumentar ainda mais o risco, as alterações introduzidas pela recém aprovada Lei 12.409/2011 permitiram que a União emitisse, a valor de mercado, sob a forma de colocação direta em favor do FSB, títulos da Dívida Pública Mobiliária Federal.
Evidencia-se, dessa forma, a nítida operação de troca de “ativos internacionais” por títulos da dívida brasileira, passando pelo Fundo Soberano. Este é mais um risco de importação de papéis podres para o país, e mais uma evidência de que o instrumento da dívida pública foi usurpado pelo mercado financeiro, deixando de funcionar como um mecanismo de financiamento do Estado para se tornar um produto financeiro que possibilita grandes negócios.
As experiências de auditoria da dívida na América Latina – auditoria oficial no Equador e auditoria cidadã no Brasil – bem como as investigações da recém CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados provaram que, desde a década de 70, a dívida externa com a banca privada internacional favoreceu unicamente aos bancos credores, pois nos últimos 40 anos esse tipo de dívida representou transferências líquidas brutais ao exterior, ao mesmo tempo em que a dívida se multiplicava por ela mesma. A atual dívida interna brasileira é também externa, pois grande parte dos títulos encontra-se em poder de bancos, fundos de pensão e fundos de investimento estrangeiros, que obtêm lucros exorbitantes face à incidência de juros altos sobre a variação cambial, isentos de tributos.
A auditoria da dívida também provou que a crise financeira que abalou as economias do Terceiro Mundo no início da década de 80 foi provocada pelos mesmos grandes bancos privados internacionais que controlavam o FED e a Associação de Bancos de Londres11 – que procederam a elevação unilateral dessas taxas de 6 para mais de 20%. Evidenciou também que a crise provocada pelos bancos abriu a oportunidade para a interferência expressa do FMI em nossas economias, impondo planos de ajuste fiscal idênticos aos que agora são impostos à Europa.
A história se repete. Crises provocadas pelos bancos são transferidas às Nações por meio do endividamento público.
O Equador deu uma lição de soberania ao mundo e soube aproveitar os resultados da auditoria da dívida12, anulando 70% de sua dívida externa em poder da banca privada internacional, o que está permitindo aumento dos investimentos sociais principalmente em saúde e educação, bem como a construção de rodovias de concreto, dentre outros investimentos reais.
É muito importante que os países europeus também iniciem rapidamente uma auditoria da dívida – seja oficial, cidadã ou parlamentar. Nesse sentido, a Irlanda já iniciou os trabalhos de forma cidadã13, utilizando nossa experiência brasileira como exemplo. Da mesma forma, o documento final de grande conferência realizada em Atenas em maio/201114 concluiu pela necessidade de organizar uma comissão de auditoria cidadã, também mencionando a experiência brasileira.
O grande mérito da auditoria da dívida é a oportunidade de acessar provas e documentos que revelem a Verdade: a natureza e a origem da dívida; as ilegalidades e ilegitimidades; os beneficiários e os responsáveis, propiciando ações de ordem legal e política, em busca da Justiça.