A visita de Dilma aos Estados Unidos nos permite avaliar mais uma vez o que de fato significa a política externa brasileira, a partir dos governos pós-2002.
Paulo Passarinho
Os defensores do governo Lula apontam essa área como exemplo de política progressista, responsável por uma nova projeção do Brasil no cenário internacional, afirmando uma posição de independência e soberania, junto às grandes potências, em especial em relação aos Estados Unidos.
Não há dúvidas quanto à retórica diplomática dos governos pós-2002 e sua mudança em relação ao período FHC. Vindo da esquerda e com o apoio de diplomatas tarimbados e progressistas – como Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães – o governo Lula soube trabalhar com muito mais habilidade nossa posição de país “emergente”. A força simbólica de Lula lhe dava, também, em relação à FHC, muito mais legitimidade do que o tucano, nos fóruns internacionais. Embora, diga-se de passagem, e fazendo-se justiça, o antecessor do ex-operário também gostasse de dar os seus pitacos com gosto de terceiro mundo, nos palcos estrangeiros.
A grande questão que se coloca é em que medida a nova retórica apresentou, de fato, mudanças substantivas na política externa?
A opção econômica adotada por Lula, como sabemos, manteve os pilares da política macroeconômica de FHC, assumida a partir de 1999 e das exigências do FMI: câmbio flutuante/superávit primário/metas de inflação.
A conjuntura externa, por outro lado, já apontava para uma recuperação do saldo comercial do país, com a conseqüente redução dos déficits em conta-corrente. Em 2002, por exemplo, último ano de governo de FHC, o saldo comercial deu um salto de quase cinco vezes (US$ 13,1 bilhões), em relação ao resultado obtido em 2001 (US$ 2,7 bilhões). Os preços das commodities agrícolas e minerais explodiam nos mercados externos e o Brasil, apostando em uma integração subalterna à economia global, especializando-se na exportação desses produtos, passava a se beneficiar de receitas extraordinárias de exportação.
Nesta trajetória, o que observamos foi que entre os anos de 2003 e 2007 – com a manutenção da política econômica do governo anterior – obtivemos saldos comerciais expressivos, suficientes para cobrir nossas crescentes despesas com o pagamento de serviços – remessas de lucros, juros, fretes, viagens e royalties, entre outros. A partir de 2008, entretanto, o quadro muda por completo. A crise financeira global se manifesta de forma mais aguda a partir de então, e voltamos a ter déficits crescentes em nossas transações correntes, com forte redução do saldo comercial e contínua expansão do déficit da conta de serviços.
Esse é o atual dilema do governo Dilma. A manutenção da política macroeconômica, com a abertura financeira e comercial que nos caracteriza desde os anos noventa, empurra o país para a necessidade de crescente financiamento externo, através da conta de capitais, acumulando um passivo externo de alto risco potencial. Atualmente, esse é um risco administrado, dadas as condições de liquidez internacional e das excepcionais opções de negócios que temos oferecido aos capitais estrangeiros – terras, etanol, petróleo, títulos públicos, ações e ativos dos mais diferentes setores da economia produtiva. Porém, esse é um processo que pode nos reservar fortes impactos negativos, frente a uma reversão de expectativas em relação ao que se chama de risco-Brasil. Trata-se de processo semelhante ao que já observamos ocorrer em países vizinhos, em passado recente, como foram os casos do México, em 1995, e com a Argentina, em 2001.
É neste ponto que voltamos à pergunta inicial. Como podemos pensar em independência e soberania da política externa do país, em um quadro onde dependemos do aporte crescente do capital externo?
A rigor, o que observamos a partir de 2003 é que uma política diplomática de viés progressista foi colocada, com muita habilidade, a serviço de uma política externa que se coaduna com os princípios da política econômica defendida prioritariamente pelos bancos e multinacionais. E no campo da política, conciliar uma política econômica de direita com uma suposta política externa de esquerda é tarefa para ilusionistas.
Como explicar, por exemplo, ainda em 2002, o simbólico anúncio de Henrique Meireles, executivo do Bank of Boston, como o primeiro (e único) presidente do Banco Central, nos governos de Lula.
Mesmo no campo da política estritamente diplomática, o envio de tropas militares ao Haiti ou o restabelecimento de um nebuloso acordo militar com os Estados Unidos demonstram que somente o seguidismo acrítico pode explicar avaliações fantasiosas sobre a política externa brasileira.
Até mesmo as importantes intervenções do governo brasileiro em apoio aos governos da Venezuela, da Bolívia, do Equador ou de Cuba devem ser vistas como iniciativas que abrem espaço, nesses países, para a penetração dos interesses de empresas multinacionais sediadas no Brasil e com notórios interesses regionais.
O papel desempenhado pela mídia dominante e pela oposição tucana também ajuda a entender a confusão sobre o tema. Ávidos por encontrar bandeiras que lhes permitam manter o governo Lula sob pressão, esses setores partem para uma espécie de vale-tudo.
Um bom exemplo foi a abordagem que vimos por ocasião do processo de mediação que os governos brasileiro e turco realizaram junto ao Irã, para um acordo desse país com as potências ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, em torno do programa nuclear daquele país. Setores da mídia dominante e diplomatas-viúvas de FHC cansaram de criticar o governo Lula, por uma suposta aventura diplomática, frustrada, e que nos teria colocado em rota de colisão com “nosso grande aliado estratégico”, os EUA. Apenas omitiram que toda a estratégia de negociação e as propostas levadas ao governo de Teerã foram “sugeridas” por Obama, em carta dirigida ao presidente Lula e ao primeiro-ministro Erdogan, da Turquia.
A Casa Branca apostava na recusa do governo do Irã aos termos do acordo e, assim, o caminho estaria aberto para o recrudescimento de medidas contra o país. Contudo, na medida em que o Irã aceitou as condições apresentadas, os norte-americanos tiveram de alterar o seu discurso, recusar o acordo proposto originalmente por eles mesmos, e deixar o governo Lula entregue às críticas oportunistas dos reacionários de plantão, reforçando a sua imagem de um governo progressista e atacado pela direita…
Por tudo isso, a recepção de Obama a Dilma – quando ele se referiu à presidente brasileira como “minha grande amiga” e “líder capaz” (assim como Lula era “o cara”) – não deve nos iludir. Os Estados Unidos têm o máximo interesse no petróleo brasileiro e na expansão de suas exportações para o Brasil, procurando manter e ampliar o confortável saldo comercial nas relações com o nosso país. O Brasil, por sua vez, sob a batuta de Dilma, precisa encontrar formas de compensar o “apetite” exportador norte-americano, com linhas de exportação que nos ajude a atenuar o crescente déficit comercial com o “irmão” do norte. A exportação do petróleo bruto do pré-sal pode ser o ponto de convergência dos interesses do nosso país, dependente e subalterno, às pressões da potência hegemônica.
11/04/2012
Paulo Passarinho é economista