O deputado Jean Wyllys(PSOL-RJ) tentou, sem êxito, em diferentes momentos desta quinta-feira (4), conversar com o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, para expor seu posicionamento sobre a aprovação recente (dia 2) do projeto de lei 294/2005, do vereador Carlos Apolinário (DEM), que institui, no município, o Dia do Orgulho Heterossexual.
Como cidadão brasileiro homossexual e deputado federal que defende a causa de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros (LGBTs), além de outras minorias, Wyllys se sente afrontado com o projeto que, em sua opinião, trata com escárnio uma luta que é histórica e justa do movimento LGBT. “Não podemos tratar como minoria um grupo que não sofre dos mesmos preconceitos por ser heterossexual e que goza de direitos fundamentais que são negados a nós, homossexuais”, diz Wyllys.
“A criação de um dia do orgulho gay, do orgulho negro ou do dia da mulher tem um propósito legítimo, que é o de destruir um discurso de preconceito. Criar um dia do orgulho heterossexual, do orgulho branco é debochar de uma luta justa e legítima”, finaliza o deputado.
Segundo Wyllys, o discurso de que o Dia do Orgulho Heterossexual – que, se sancionado, será comemorado todo terceiro domingo do mês de dezembro – “conscientizará e estimulará a população a resguardar a moral e os bons costumes da família” é também um discurso difamador e ofensivo, que exclui as famílias monoparentais e as famílias de casais homoafetivos.
Veja aqui a nota oficial com o posicionamento do deputado Jean Wyllys encaminhada para a prefeitura de São Paulo.
Exmo. Sr. Prefeito Gilberto Kassab
Eu, Jean Wyllys, como cidadão brasileiro homossexual e deputado federal que defende a causa de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros (LGBT), entre outras venho por meio desta dizer que me sinto afrontado com o projeto de lei 294/2005, do vereador Carlos Apolinário (DEM), que institui o Dia do Orgulho e, nessa condição de parlamentar que tem como função representar os interesses da comunidade LGBT argumentar em favor do veto dessa Lei, que deturpa, e, por que não, viola o princípio constitucional da igualdade.
O senhor sabe, prefeito, que é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil reduzir as desigualdades sociais, conforme está expresso no inciso III do artigo 3º da Constituição Federal. Sabe também que, entre os brasileiros, é garantida a plena igualdade (artigo 5º, caput, da mesma Constituição).
Ocorre que a igualdade não é concebida apenas do ponto de vista formal, senão também do ponto de vista material. Já vem de Aristóteles a idéia de igualdade associada à de justiça. Por isso, ensina o constitucionalista José Afonso da Silva, a equidade só é concebida junto com a outra desigualdade que lhe é e que deve lhe ser complementar: aquela que só será “satisfeita se o legislador tratar de maneira igual os iguais e de maneira desigual os desiguais”. Por isso se diferencia a igualdade formal, segundo a qual os seres da mesma categoria devem ser tratados da mesma forma, da igualdade material, que significa que cada um deve ser tratado de acordo com suas necessidades, méritos e peculiaridades. Nesse sentido, estimado Kassab, o Supremo Tribunal Federal veda a discriminação baseada em critérios arbitrários, mas considera legítimo e necessário o tratamento desigual dos desiguais.
Ou seja, com a igualdade material se busca equalizar condições desiguais. Para tanto, além de superar as injustiças socioeconômicas entre as diferentes classes sociais, é necessário romper com estigmas que pesam contra determinados grupos culturais e de identidade que compõem a sociedade brasileira, que por vezes padecem de exclusão simbólica. Como tal desiderato demanda políticas públicas para sua efetivação, a proposição em comento não pode ser aceita.
O sistema global de proteção dos direitos humanos corrobora a necessidade de proteção específica a grupos peculiares.
A primeira fase do desenvolvimento desse sistema foi a da afirmação da igualdade entre todos os indivíduos. Foi marcada pela promulgação do que se chama de Carta Internacional de Direitos Humanos, composta pela Declaração Universal de 1948, pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966. Pesava aqui o trauma da experiência de diferenciação do nazismo.
A segunda fase foi aquela da “multiplicação dos direitos”, na expressão do filósofo do Direito Norberto Bobbio.Trata-se de um processo em que a noção abstrata de indivíduo dá lugar aos indivíduos concretos, de carne e osso, com posições sociais, identidades e necessidades específicas. Por isso se construiu o sistema especial de proteção dos direitos humanos, que dá tutelas especiais aos diferentes grupos econômicos, sociais e identitários, que culminou nas convenções dos direitos das mulheres, das crianças, contra a discriminação racial, etc.
Assim, na expressão da jurista Flávia Piovesan, o reconhecimento e proteção do indivíduo social e historicamente situado faz com que, ao lado do direito à igualdade, nasça o direito à diferença: importa “assegurar igualdade com respeito à diversidade”. A igualdade material, assim, passa pela busca de justiça social e distributiva, orientada por critérios socioeconômicos, e também pelo reconhecimento de identidades, tratando-se, nesse último caso, de igualdade orientada pelos critérios de gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia, etc.
Não é por outro motivo que o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou, em 15 de junho deste ano, Resolução sobre direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero. O Conselho, na Resolução, recorda que a Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos, sem distinção de qualquer natureza, como raça, cor, sexo, língua, religião, política, nascimento ou outro status. A Resolução expressou, ainda, grave preocupação com atos de violência e discriminação contra indivíduos devido à sua orientação sexual e identidade de gênero.
Diante de tal conjuntura internacional, caro prefeito Gilberto Kassab, qual não seria o retrocesso brasileiro caso vossa excelência sancione a lei aprovada pela Câmara de São Paulo. O Dia do Orgulho LGBT (assim como o Dia da Consciência Negra ou o Dia da Mulher) correspondem a políticas públicas que visam construir a equidade por meio de um tratamento desigual para os desiguais e, ao mesmo tempo, contrapor os discursos que historicamente posicionam os homossexuais (assim como os negros ou as mulheres) como subalternos e descartáveis, destruindo sua autoestima. Sem mais, agradeço sua gentileza em receber esta minha carta já que uma conversa entre nós não foi possível por motivos de agenda.
Jean Wyllys
Deputado Federal PSOL-RJ