Por paradoxal que possa parecer, a proposta de Reforma Urbana – e a terra urbana, sua questão central- desapareceu da cena política após a criação do Ministério das Cidades
Por Erminia Maricato
Todos os anos, no período das chuvas, as tragédias das enchentes e desmoronamentos se repetem. Os mesmos especialistas, hidrólogos, geólogos, urbanistas repetem as soluções técnicas para enfrentar o problema. A mídia repete a ausência do planejamento e da prevenção aliada à falta de responsabilidade e “vontade política” dos governos (muitos dos jornalistas como os colunistas globais, donos da verdade, se esquecem de que pregaram o corte dos gastos públicos e das políticas sociais durante duas décadas). As autoridades repetem as mesmas desculpas: foram muitos anos de falta de controle sobre a ocupação do solo (como se atualmente esse controle estivesse sendo exercido), mas “fizemos e estamos fazendo…”. Todos repetem a responsabilidade dos qu e ocupam irregularmente as encostas e as várzeas dos rios como se estivessem ali por vontade livre e não por falta de opção.
Tragédias decorrentes de causas naturais são inevitáveis e irão se ampliar com o aquecimento global que atualmente é um fato indiscutível. Um serviço de alerta de alto padrão pode minimizar problemas como mostram exemplos de sociedades menos desiguais e que controlam, relativamente, a ocupação do território. Mesmo no Brasil há soluções técnicas viáveis mesmo se considerarmos essa herança histórica de ocupação informal do solo. Mas não há solução enquanto a máquina de fazer enchentes e desmoronamentos – o processo de urbanização – não for desligada.
Desligar essa máquina e reorientar o processo de urbanização no Brasil implica contrariar interesses poderosos que dirigem o atual modelo que exclui grande parte da população da cidade formal. A imensa cobertura midiática dos acontecimentos silenciou sobre os principais fatores que impedem a interrupção da recorrência e da ampliação dessas tragédias anuais. Vamos tentar dar “nomes aos bois”.
A principal causa dessas tragédias é do conhecimento até do mundo mineral: a falta de controle sobre o uso e a ocupação adequada do solo. Parece algo simples, mas é profundamente complexo, pois controlar a ocupação da terra quando grande parte da população é expulsa do campo ou atraída para as cidades, mas não cabe nela, é impossível.
Controlar a ocupação da terra quando esta é a mola central e monopólio de um mercado socialmente excludente (restrito para poucos, apesar da ampliação recente promovida pelos programas do Governo Federal) viciado em ganhos especulativos desenfreados, é inviável. Os trabalhadores migrantes e seus descendentes, não encontram alternativa de assentamento urbano senão por meio da ocupação ilegal da terra e construção precária, sem observância de qualquer lei e sem qualquer conhecimento técnico de estabilidade das construções. A escala dessa produção ilegal da cidade pelos pobres (i.e. maioria da população brasileira) raramente é mencionada.
Nas capitais mais ricas estamos falando de um quarto a um terço da população – SP, BH, POA -, metade no RJ e mais do que isso nas capitais nordestinas. Nos municípios periféricos das Regiões Metropolitanas essa proporção pode ultrapassar 70% até 90%. Áreas vulneráveis, sobre as quais incide legislação ambiental, desprezadas (de modo geral) pelo mercado imobiliário são as áreas que “sobram” para os que não cabem nas cidades formais, e nem mesmo nos edifícios vazios dos velhos centros urbanos cujos números são tão significativos que dariam para abrigar grande parte do déficit habitacional de cada cidade.
Mas, quando um grupo de sem teto ocupa um edifício ocioso que frequentemente acumula dívida de milhões de reais de IPTU, no centro da cidade formal , ação do judiciário, quando provocada, não se faz esperar: a liminar é rápida ainda que esses edifícios estejam bem longe de cumprir a função social prevista na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade. Enquanto isso, aproximadamente milhões de pessoas, sim milhões, ocupam as áreas de proteção ambiental: Áreas de Proteção aos Mananciais, várzeas de rios, beira de córregos, mangues, dunas, encostadas que são desmatadas, etc. Não faltam leis avançadas e detalhadas. Também não faltam Planos Diretores.
Quando se fala em solo urbano ou terra urbana é necessária uma ressalva: não se trata de terra nua, mas de terra urbanizada. A localização da terra ou do imóvel edificado é o que conta. Há uma luta surda e ferrenha pelas melhores localizações, assim como pela orientação dos investimentos públicos que causam aumento dos preços e valorização dos imóveis em determinadas áreas da cidade.
A terra urbana (ou rural) é um ativo da importância do capital e do trabalho. Distribuir renda não basta. É preciso distribuir terra urbana (ou rural) para combater a escandalosa desigualdade social no Brasil.
Quando voltou do exílio, Celso Furtado chamou atenção para a necessidade de distribuir ativos como forma de combater a desigualdade social. São eles, terra e educação. Na era da globalização a terra vem assumindo uma importância estratégica. Conglomerados transnacionais e até mesmo Estados Nacionais disputam as terras agriculturáveis nos países mais pobres do mundo todo. No Brasil ela se encontra sobre intensa disputa no campo ou na cidade.
Infelizmente o Governo Lula ignorou essa questão crucial e a política urbana se reduziu a um grande número de obras, necessárias, porém insuficientes. É verdade que a maior responsabilidade sobre a terra, no âmbito urbano, é municipal ou estadual (quando se trata de metrópoles). Mas é preciso entender porque um programa como o Minha Casa Minha Vida, inspirado em propostas empresariais, causou um impacto espetacular no preço de imóveis e terrenos em 2010.
Financiar a construção de moradias sem tocar no estatuto da propriedade fundiária, sem regular ganhos especulativos ou implementar a função social da propriedade gerou uma transferência de renda para preço dos imóveis. E parte dos conjuntos habitacionais de baixa renda continua a ser construída fora das cidades, repetindo erros muito denunciados na prática do antigo BNH. Os prefeitos que não querem ou não conseguem aplicar a função social da propriedade enfrentam a dificuldade de comprar terrenos a preço de mercado, altamente inflado, para a produção de moradias sociais. Já os governadores, em sua absoluta maioria, ignoram a necessidade de políticas integradas nas metrópoles.
As demais forças que orientam o crescimento das cidades no Brasil estão muito ligadas à essa lógica da valorização imobiliária com exceção do automóvel que ocupa um lugar especial. Ao lado do capital imobiliário, as grandes empreiteiras de obras de infra-estrutura orientam o destino das cidades quando exercem pressão sobre os orçamentos públicos (via vereadores, deputados, senadores ou governantes) para garantir determinados projetos de que podem ser oferecidos ao governante de plantão como forma de “marcar” a gestão. As obras determinam o processo de urbanização mais do que leis e Planos Diretores, pois o que temos, em geral, são planos sem obras e obras sem planos. A política urbana se reduz à discussão sobre investimentos em obras e isso está vinculado à lógica do financiamento das campanhas a ponto de determinar as obras mais visíveis e aquelas que possam corresponder ao cronograma eleitoral.
As obras viárias são priorizadas pela sua visibilidade e, é claro, para viabilizar o primado do automóvel, outro dos principais motivos da completa falência das nossas cidades. Os males causados pela matriz de mobilidade baseada no rodoviarismo, ou mais exatamente pelos automóveis, são por demais conhecidos: o desprezo pelo transporte coletivo, ignorando o aumento das viagens a pé, o alto custo dos congestionamentos em horas paradas, em vidas ceifadas nos acidentes que apresentam números de guerra civil, em doenças respiratórias e cardíacas devido à poluição do ar, na contribuição para o aquecimento do planeta e o que nos interessa aqui, particularmente na impermeabilização do solo.
Parece incrível que em pleno século XXI foi aprovada e iniciada a ampliação da nefasta marginal do Rio Tietê (o governador Serra, candidato à presidência se enroscou no cronograma da obra que ainda levará muito tempo para ser terminada) um equívoco dos engenheiros urbanistas que se definiram pelo modelo rodoviarista para São Paulo e em conseqüência para todo o Brasil. (Ocupar margens dos rios quando estas deveriam dar vazão às cheias do período das chuvas é, como sabemos, contribuir com a insustentabilidade urbana).
Agora os carros e caminhões parados com seus escapamentos despejando poluentes na atmosfera ocupam oito pistas da marginal ao invés das 4 anteriores. Mas essa estratégia não é exclusividade de um partido. Governos de todos os partidos na cidade de São Paulo contribuíram para o deslocamento da centralidade fashion da cidade em direção ao sudoeste produzindo, com pontes, viadutos, obras de drenagem, trens, despejo de favelas, operação urbana e projetos paisagísticos uma nova fronteira de expansão para o capital imobiliário.
As obras de drenagem oferecem um exemplo dos erros de uma certa engenharia que ao invés de resolver, cria problemas. Durante décadas as empreiteiras se ocuparam em tamponar (“canalizar”) córregos e construir avenidas sobre eles, impermeabilizando o solo e permitindo que as águas escoassem mais rapidamente para as calhas dos rios. Agora, quando se trata de reter a água, surge a “moda” dos piscinões. Um mal necessário mas que não passa de paliativo já que o solo continua a ser impermeabilizado e a sua ocupação descontrolada.
Diante desse quadro espantoso, é surpreendente que a questão urbana tenha perdido a importância a ponto de ser quase nulo o seu destaque programas de governo de todos os partidos e estar ausente dos debates nas últimas campanhas eleitorais. Até mesmo a proposta de Reforma Urbana, reconstruída a partir da luta contra o Regime Militar, inspiradora da criação do Ministério das Cidades, que tinha como centralidade a questão fundiária, desapareceu da agenda política. Movimentos sociais estão mais ocupados com conquistas pontuais na área de habitação.
O Ministério das Cidades, criado para tirar das trevas a questão urbana brasileira, combatendo o analfabetismo urbanístico está nas mãos do PP (partido do ex-prefeito e governador Paulo Maluf e ex- presidente da Câmara Severino Cavalcanti) desde 2005. Algumas poucas gestões municipais “de um novo tipo” que surgiram nos anos 1980 e 1990, voltadas para a democratização das cidades, dos orçamentos, das licitações, do controle sobre o solo, ainda tentam remar contra a maré contrariando interesses particulares locais, mas elas são cada vez em menor número diante do crescimento do pragmatismo dos acordos políticos. A Copa e as Olimpíadas e as mega obras que as acompanharão ocupam a preocupação dos gestores urbanos que insistem em concentrar investimentos em novos cartões postais e novas áreas de valorização imobiliária até que a próxima temporada de chuvas traga a realidade de volta por alguns dias e a mídia insista na falta de planejamento e prevenção.
Erminia Maricato é arquiteta, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi coordenadora do programa de pós-graduação (1998-2002), secretária de Habitação de São Paulo (1989-1992) e secretária-executiva do Ministério das Cidades (2003-2005).