O sonho do canudo virou pesadelo na vida de milhares de estudantes. Sem emprego fixo e com o nome sujo no Serasa em função da inadimplência com a Caixa Econômica Federal, Edney Mota exemplifica o drama vivido por esses estudantes. Ele acumula uma dívida de quase R$ 50 mil com a instituição bancária.
Por Lúcia Rodrigues
O Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), crédito educativo do governo federal destinado aos estudantes de baixa renda que passaram no vestibular de faculdades particulares e não têm como bancar os estudos, se transformou em uma
verdadeira tormenta na vida de milhares de estudantes brasileiros. A dívida acumulada com a Caixa Econômica Federal no decorrer do curso cresce exponencialmente e se torna praticamente impagável logo após a formatura.
A crise gerada por esse tipo de financiamento, que ao invés de facilitar a vida de estudantes carentes acaba criando um problema gravíssimo para estes quando concluem a graduação, está levando o Ministério da Educação a rever o programa criado, em 1999, pelo governo do tucano Fernando Henrique Cardoso e mantido na gestão do presidente Lula.
Várias modificações estão sendo discutidas pelo MEC para tentar amenizar o caos em que se transformou o Fies, mas até o fechamento desta edição o Ministério da Educação não havia transformado as propostas em uma legislação que de fato proteja o aluno pobre. Além disso, os estudantes que ingressaram nas instituições de ensino privado neste ano também não estão conseguindo ter acesso ao financiamento, que está suspenso até que o MEC efetive as novas regras para o Fies.
Pela proposta, o alongamento do prazo de carência para o início do pagamento da dívida passará dos atuais seis meses para um ano e meio. O Ministério também está propondo a prorrogação do prazo para o pagamento do financiamento, que seria ampliado de duas vezes o tempo de duração do curso para três vezes. Com isso, o estudante que se forma em quatro anos, passaria a ter 12 anos para saldar o total da dívida contraída.
O MEC também pretende que os futuros médicos e professores que ingressem nas redes públicas de saúde e educação possam abater anualmente 1% de suas dívidas. No início do ano, o Ministério também reduziu os juros dos contratos de financiamento de 9% para 3,4% ao ano. As medidas estão sendo encaradas pelo Ministério da Educação como a tábua de salvação para evitar o naufrágio do programa, mas estão longe de resolver o problema dos estudantes pobres.
Apesar de amenizar os impactos negativos para os futuros financiamentos, essas propostas não resolvem o problema dos estudantes que possuem contratos antigos, como é o caso de Edney Mota. Formado em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, em 2002, Edney está com o nome sujo no Serasa há cinco anos porque não conseguiu pagar a dívida com a Caixa Econômica Federal.
O jornalista não arrumou emprego fixo quando terminou o curso e a dívida virou uma bola de neve. Em abril deste ano, Edney devia para a Caixa R$ 49.153,70, apesar da dívida de capital ser de apenas R$ 9.896,39. Os juros estratosféricos inflacionaram o saldo devedor e o levaram à inadimplência.
“Eu estudei com muita dificuldade. Meu pai é pedreiro, minha mãe teve derrame, tenho uma irmã excepcional. Não consegui pagar porque não arrumei emprego. Minha divida é de pouco mais de R$ 9 mil reais e o banco quer me cobrar quase R$ 50 mil. É um absurdo”, protesta Edney.
Os efeitos negativos do financiamento estudantil não atingiram apenas ele. Seu irmão, que no caso é o fiador da dívida, também está sentindo na pele o peso da mão do credor. A Caixa pediu o bloqueio de sua conta bancária. E a Justiça determinou que 30% do dinheiro que entra seja bloqueado. Além disso, o irmão também corre o risco de perder o carro, único bem que possui, para saldar parte da dívida.
Edney está preocupado com as conseqüências que sua inadimplência está acarretando para o irmão, que praticamente rompeu relações com ele em função do problema gerado. “Ele ainda não me perdoou, acha que é um problema meu e que eu tenho de resolver.”
Ele conta que seu irmão é funcionário público e que os advogados da Caixa penhoraram a conta salário dele. “Como não conseguiram os R$ 50 mil, a próxima ação será penhorar o carro. Eu não tenho carro, mas meu irmão tem um Gol antigo. Terminada a penhora e como não vão conseguir atingir o valor, vão querer penhorar a casa”, afirma apreensivo.
A sorte de Edney, que mora na residência da família no Capão Redondo, em Campo Limpo, na periferia da zona sul da capital paulista, é que a casa não está no nome do irmão, que também não tem nenhum outro imóvel e, portanto, não tem mais o que penhorar.
O teto do jornalista também foi conseguido com muita luta. Os familiares de Edney se cotizaram para a compra do terreno e seu pai ergueu os cômodos. “Moro com minha família, minha mãe, minhas irmãs, meu cunhado, dois sobrinhos. Mora a família inteira, é como se fosse uma comunidade”, ressalta.
Ao contrário da permissividade que tem com os grandes devedores latifundiários, banqueiros e empresários no pagamento de suas dívidas, a Caixa Econômica Federal é extremamente rígida com aqueles que buscam apenas um financiamento para custear os estudos.
O banco não fala sobre inadimplência. A reportagem da Caros Amigos entrou em contato com a instituição, mas ninguém quis se manifestar sobre o assunto.
Em abril, o Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp) divulgou o índice de inadimplência. O percentual recuou 2,74% em 2009 em relação ao ano anterior, mas atinge 23,9% dos estudantes. Na região metropolitana da capital paulista o percentual é maior e chega à casa dos 33,9%. Esse é o terceiro maior índice de inadimplência registrado nos últimos 11 anos no Estado, segundo o sindicato das mantenedoras.
Fies Justo
Daniela Pellegrini Nóbrega, líder do Fies Justo, movimento de defesa dos direitos dos estudantes que possuem o financiamento federal, orienta os inadimplentes que correm o risco de ter a dívida executada a entrarem com embargo de execução na Justiça. A medida, no entanto, tem apenas caráter protelatório e não afasta de vez o risco da execução da dívida.
“Estamos cobrando do MEC para que parem de executar as dívidas e façam logo essa legislação.” Para quem está com o nome sujo no SPC, Daniela é mais pessimista. “Por mais que se faça, a situação vai continuar na mesma, porque quase todos os tribunais estão indeferindo nossos pedidos”, lamenta.
O Fies Justo nasceu da preocupação da estudante de direito, Daniela, que se formou em uma faculdade particular de Brasília, em defender os interesses daqueles que, assim como ela, têm o crédito educacional. O movimento se organiza virtualmente pelo sítio (www.fiesjusto.com.br) para pressionar o Executivo e parlamentares da Câmara dos Deputados e do Senado Federal a encontrar uma solução para o problema criado pelo formato do financiamento estudantil.
“Em 2008 comecei a organizar o movimento, a buscar apoio dos deputados, pedia que os estudantes mandassem e-mail para os parlamentares pressionando. Eu ia sempre ao Congresso, então comecei a coordenar o Brasil todo. Não conhecia ninguém, as pessoas foram entrando no site…”, conta. Ela acredita que o movimento reúna, hoje, em torno de 10 mil estudantes.
Daniela também está empenhada em demonstrar que a Caixa cobra juros indevidos dos estudantes que buscam financiamento para estudar. “Podem estar faturando à nossa custa mais de um bilhão de reais. Se ficar comprovando que estão cobrando indevidamente, vamos pedir o ressarcimento. Se a Caixa não tomar nenhuma providência, vamos tornar isso público e entrar com uma ação coletiva. O que eles cobraram a mais vai ter de ser devolvido para todos.”
“Se a educação é uma garantia constitucional, não podem agir dessa forma. Estamos falando de um programa social que está martirizando, detonando os estudantes”, argumenta.
Para ela, as regras do novo Fies que estão sendo propostas pelo MEC ainda não resolvem o problema dos estudantes. “Ameniza, fica mais maleável, mas ainda não é solução para os problemas dos que já se formaram. Para quem está entrando é excelente. É muito bom. Mas o que adianta eles criarem soluções para quem ainda não tem problemas? Queremos soluções para quem já tem problemas. E a soluções que eles dão para essas pessoas não servem”, reclama.
Daniela explica que, apesar de o prazo de financiamento ser ampliado, o sistema de amortização se baseia na tabela Price, que faz com que a dívida se torne mais alta no final. “Estamos diante de um problema social, e o novo Fies não vai ser a solução para esse problema. A solução seria devolver praticamente o que nós pegamos emprestado, não o dobro ou triplo desse valor. O problema são os juros cobrados”, conclui.
Ela acredita que a implantação das novas regras do Fies não deve ser posta em prática no curto prazo. “Ainda vai demorar um pouco, o MEC não estabeleceu um prazo, mas nós continuaremos cobrando. Há um jogo de empurra-empurra. O MEC diz que está esperando a Caixa…”, critica.
Falta de transparência
Pelas novas regras fixadas pelo Ministério da Educação e que devem entrar em vigor, a Caixa perderá poder. Na prática para o estudante isso não muda muita coisa, mas o banco deixará de ser o operador do programa, que passa a ser controlado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), uma autarquia do Ministério da Educação. Além disso, a Caixa também perderá o monopólio sobre o financiamento dos contratos de crédito, que também passarão a ser oferecidos pelo Banco do Brasil.
Até 2009, a Caixa executava as duas funções com exclusividade. A falta de transparência no cálculo das dívidas dos estudantes e a burocratização nos procedimentos são criticadas até mesmo por aliados do governo.
“A fórmula do cálculo é bem complexa, as pessoas não conseguem entender como a Caixa chega àquele resultado, que transforma a dívida em uma bola de neve”, critica o deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS), um dos principais defensores desses estudantes na Câmara dos Deputados.
O parlamentar adverte que no Brasil há mais de 43 mil fiadores com dívidas sendo executadas. “Têm casos dramáticos, em que os estudantes morreram e mesmo assim a dívida foi executada”, lamenta. Ele afirma que conseguiu incorporar às novas regras que o MEC deve anunciar que, nos casos de morte, a dívida não seja executa. Ainda segundo ele, a emenda que permitiu estender a todos os contratos de financiamento estudantil os juros de 3,4% ao ano também é de sua autoria.
“O projeto original só tratava daqui pra frente. Consegui aprovar uma emenda estendendo o benefício também para os contratos antigos. Mas a interpretação da Caixa é muito restritiva, porque só aceita que o percentual seja daqui pra frente. Não retroage no cálculo.”
A restrição imposta pela Caixa impede, por exemplo, que o valor da dívida dos contratos em vigência possa ter seu saldo recalculado com base nos juros reduzidos propostos. Isso impede um abatimento significativo nesse montante. Pela interpretação, os juros de 3,4% devem incidir sobre o saldo devedor elevado.
Pimenta, que tem se destacado no Congresso Nacional como um dos parlamentares que apóiam a luta dos estudantes que possuem o Fies, já realizou audiências públicas, com a presença de representantes do MEC e da Caixa Econômica Federal para tentar resolver o problema.
Para ele, a entrada do Banco do Brasil no processo de financiamento estudantil é uma alternativa. “A ideia ao abrir para o Banco do Brasil é facilitar, dar mais uma opção para o aluno, porque hoje o processo é muito burocratizado.”
Pelas regras que devem entrar em vigor a partir deste ano, o financiamento estará disponível de maneira contínua. O estudante poderá solicitar o financiamento dos estudos a qualquer momento do ano. As inscrições poderão ser feitas, exclusivamente, por meio de um sistema eletrônico disponível no Portal do MEC, que será gerenciado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). A data de início das inscrições, no entanto, ainda não havia sido divulgada.
Lúcia Rodrigues é jornalista.