Escrito por Paulo Passarinho
26-Fev-2010 – Correio da CidadaniaHá um enorme esforço de intelectuais que se situam à esquerda – e que apóiam o PT e o governo Lula – para justificar, explicar e defender as opções adotadas a partir de 2002 pelos atuais mandatários do governo federal.
Há alegações de vários tipos. Ganhar um governo não significa chegar ao poder; maioria eleitoral não deve se confundir com hegemonia política; há uma correlação de forças desfavorável a mudanças, pois a hegemonia é conservadora; ao ser eleito, Lula não dispunha do apoio da maioria do Congresso; a maior parte dos governadores eleitos em 2002 era de direita… São algumas das razões apresentadas para se dar respaldo e apoio às decisões que vêm sendo tomadas pelo governo do PT e de seus aliados.
É fato que um processo político que tenha como objetivo a transformação de estruturas políticas, econômicas ou sociais requer base política, capacidade de formulação de diagnósticos e proposições, quadros dirigentes aptos, além de firmeza política e ideológica para enfrentar as naturais resistências e dificuldades, conflitos que inevitavelmente irão surgir.
As propostas que foram sendo amadurecidas no Partido dos Trabalhadores, desde os anos 1980, absorviam com clareza – de maneira formal, ao menos por parte de sua maioria – a necessidade de uma dita estratégia democrático-popular, cujo maior objetivo seria a efetivação de reformas na estrutura do capitalismo brasileiro. Essa estratégia não tinha como objetivo a efetivação de um programa de natureza socialista, mas a criação, dentro do sistema capitalista brasileiro, de um arcabouço jurídico-institucional e de um modelo econômico voltados para o fortalecimento do mundo do trabalho.
Esta proposição ganhou maior relevância e emergência a partir das importantes, e dramáticas, contra-reformas iniciadas no governo Collor e aprofundadas e consolidadas no governo de FHC. Abertura financeira do país; privatizações de empresas estatais e de serviços públicos essenciais, através de pesadas intervenções na ordem legal e de aportes financeiros do próprio Estado e de fundos de pensão de empresas controladas pela União; esvaziamento das funções de planejamento do Estado e flexibilização dos mecanismos regulatórios sobre a atividade econômica; enfraquecimento da dimensão universal das políticas sociais – apesar das obrigações constitucionais do Estado – e a consagração de uma estratégia de focalização dessas políticas são exemplos das mudanças que procuraram sepultar algumas características de um modelo chamado de desenvolvimentista, e que havia se iniciado no país desde os anos 1930.
É importante destacar que esse modelo, que nos embalou até os anos 1980, possuía concepções bastante diferenciadas, da direita à esquerda, e onde o papel a ser conferido ao capital estrangeiro, por exemplo, diferenciava-se de acordo com cada corrente política, assim como a visão de Estado que deveríamos construir.
O choque político representado pelo golpe civil-militar de 1964 é conseqüência direta dessas visões diferenciadas, conflitantes e antagônicas, que conviviam e disputavam a direção do modelo desenvolvimentista.
Quando FHC, em determinado momento de seus dois governos, afirma que "a era Vargas está sepultada", o que ele indicava era que um novo arcabouço jurídico-institucional e um novo modelo econômico encontrava-se implantado, embora algumas mudanças precisassem ainda ser aprofundadas. É o caso, por exemplo, da legislação trabalhista.
A posição do PT e de seus aliados, naquela conjuntura dos anos 1990, foi extremamente importante. Não para barrar o furor reformista liberal, mas para resistir, denunciar e apontar que a resposta mais adequada ao país, e aos seus trabalhadores, à crise do modelo desenvolvimentista não era a alternativa neoliberal. A alternativa seria justamente o modelo democrático-popular.
A impossibilidade de se barrarem as mudanças em curso no governo FHC estava relacionada a algumas conquistas que haviam sido conseguidas, ainda no governo Itamar. O lançamento do Plano Real, com a redução expressiva do quadro inflacionário que marcava a economia até então, permitiu a primeira eleição de FHC, ao mesmo tempo em que houve uma aliança significativa de amplos setores para a aprovação de uma agenda de reformas de caráter liberalizante.
Contudo, o modelo liberal-periférico que se consolida no primeiro governo de FHC entra em profunda crise, já a partir de 1998, em meio a um quadro de grande instabilidade internacional, especialmente a partir da crise que afeta um conjunto de países da Ásia e a Rússia.
O segundo governo de FHC já se inicia sob o signo da instabilidade e das exigências do FMI de arrocho fiscal e maior controle do Banco Central na gestão econômico-financeira do país. A conseqüência política desse processo foi o início de um profundo desgaste do bloco de forças que sustentava o governo e que culminou com a derrota do candidato governista de 2002, José Serra, para o candidato das forças de oposição, justamente Lula.
Neste momento, contudo, os antigos comandantes da oposição ao neoliberalismo já não mais se colocam como adversários do modelo exigido pelo FMI e assumido por FHC.
Em um quadro de instabilidade financeira, aguçada por uma gestão extremamente temerária da direção do Banco Central na administração da dívida pública, e em nome de uma concepção equivocada de pragmatismo, Lula e seus aliados aceitam os novos termos de um novo acordo com o FMI e, uma vez no governo, tornam-se mais realistas do que o próprio rei: adotam um arrocho fiscal mais duro do que o acertado com o FMI e praticado por FHC; elevam as taxas de juros; prosseguem as mudanças constitucionais na área previdenciária; aprofundam a abertura financeira do país e dinamizam a desnacionalização do parque produtivo do país.
Ao mesmo tempo, nenhuma das mudanças jurídico-institucionais implementadas por FHC foi questionada ou alterada. O processo de privatização de algumas empresas, como é o caso da Vale do Rio Doce, eivado de irregularidades, continuou a ser defendido pela Advocacia Geral da União, agora sob o comando de Lula, e não de FHC.
Sequer o suspeito acordo dos acionistas que compõem o bloco controlador da empresa foi alterado. Apesar de a maioria das ações desse bloco pertencer a capitais estatais e para-estatais (BNDESPAR, fundos de pensão e subsidiárias do Banco do Brasil), a direção da empresa continua sob comando do Bradesco.
Na área do setor elétrico, onde uma verdadeira lambança foi feita pelos tucanos, nada se fez para alterar esse quadro de forma substantiva e, assim, continuamos a pagar uma das mais altas tarifas de energia elétrica do mundo.
E os serviços públicos voltados à população continuam em acelerado processo de degradação, conseqüência direta do fato de mais de 30% do Orçamento Público da União ser direcionado para o pagamento de despesas financeiras, fomentadas por uma política monetária elogiada por todos os liberais e banqueiros, além do próprio Lula, é claro.
Entretanto, conjunturalmente, tivemos uma melhoria nas nossas contas externas, provocada pela explosão da demanda chinesa e asiática por produtos agrícolas e minerais, itens de peso relativo cada vez maior em nossa pauta de exportações. Este fato nos propiciou taxas de crescimento econômico maiores do que no governo anterior, além dos programas de transferência de renda aos miseráveis terem sido contemplados com maiores recursos financeiros.
Podemos concluir, desse modo, que o governo Lula cumpriu de algum modo o que na campanha de 2002 era a promessa de José Serra: "um governo de continuidade, sem continuísmo".
Há um inegável apoio popular ao governo. Particularmente, para os setores miserá
veis e pobres, houve uma mudança importante em relação ao que esses setores sofreram durante especialmente o segundo mandato do governo FHC.
Mas, aqui retorno ao ponto inicial deste artigo. E o papel dos ditos intelectuais de esquerda, apoiadores de Lula e seus aliados? Continuarão a cumprir a função de apoiar um governo e correntes políticas que deram sobrevida ao modelo liberal-periférico, no momento em que ele agonizava? Continuarão a entender que houve uma mudança na rota do modelo econômico, confundindo os efeitos da mesma com a essência de uma política que continua ditada por bancos e transnacionais?
Ou irão preferir o silêncio, contrastante com a ebulição e conflitos que animam vários dos nossos vizinhos da América do Sul?
Paulo Passarinho é economista e membro do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro.