O presente artigo foi escrito em língua galega, possuindo pequenas diferenças com a língua portuguesa do Brasil. Pepetela é um dos mais importantes escritores angolanos.
Por Marcos Lopes
Contava Pepetela mha entrevista que um dos propósitos da sua literatura era narrar às novas geraçons de angolanas e angolanos a história do país. Angola nom tinha umha história própria, mas portuguesa, e precisava de ser reinterpretada do ponto de vista africano.
Assim, em 1971, escreveu o seu romance mais conhecido, Mayombe, sobre a guerra da independência e a sua experiência como comissário político na guerrilha das FAPLA. Na Geração da Utopia narra a integraçom no MPLA dos estudantes angolanos em Portugal, a sua participaçom na guerra e a posterior decepçom pola corrupçom no movimento e a passagem para o capitalismo. Esta decepçom é também representada em Predadores, personalizada na vida dum empresário angolano que se aproveita da estrutura do partido comunista para se enriquecer.
Mas é em Yaka (1984) onde está mais acusada esta versom do romancista-historiador. Nele, aborda a época da colonizaçom desde 1890 até o começo da guerra de libertaçom, através da vida de Alexandre Semedo, filho dum português desterrado às colónias pola sua ideologia antimonárquica. Semedo nasce embaixo dumha árvore, e a sua mae é assistida por umha escrava ganguela, à que se lhe escorre o neno, caindo este ao chao. Segundos apenas, narra Pepetela, mas os suficientes para o seu corpo ficar misturado o pó da terra. É assim como começa o romance e por esta ligaçom que a história de Angola será explicada através da vida de Alexandre Semedo.
Fala Pepetela dos yaka numha nota prévia; ou mais bem pergunta-se por eles, polo mito deste povo de guerreiros que empurrárom com a rainha Njinga o exército português até o mar, no século XVII. O povoyaka parece “apenas uma ideia errante, cazumbi antecipado da nacionalidade”; cazumbi é a alma, o espírito, em quimbundo. Também do quimbundo ngola (rainha, o título de Njinga) vem o nome do país, Angola. A rica estatuária yaka dá-lhe um pretexto ao autor para inventar umha outra protagonista: umha estátua que o pai de Semedo ganhara no jogo. O Semedo interroga-a durante todo o livro: “Sinto cada vez mais que me fala, mas nom entendo”. Só afinal do romance é que o Joel, o bisneto do Alexandre consegue percebê-la. Só cinco geraçons logo da chegada dos Semedo a Angola é que compreendem a terra em que moram.
O livro divide-se em cinco partes, que correspondem com os períodos mais significativos da vida de Alexandre Semedo, mas também com a anatomia da estátua: a boca (1890-1904), os olhos (1917), o coraçom (1940-1941), o sexo (1961) e as pernas (1975). O aprofundamento na psicologia do colono, o medo à rebeliom que justifica as barbaridades mais atrozes, violaçons, a fé na superioridade frente aos povos africanos, som descritos com crueza polo autor nas duas primeiras partes. No coraçom, o centro do romance, narra a caçaria dum homem como se fosse um animal, num divertimento dos colonos. Paralelamente, os pulos independentistas som cada vez maiores e dam-se revoltas na própria capital. O medo dos portugueses é máximo e a repressom também. A última parte, as pernas, recolhe a vertigem dos momentos prévios à independência, a fugida dos colonos e a integraçom no MPLA de Joel.
Mas o romance é também um romance de personagens e histórias pessoais. As dos colonos Sô Lopes, Sô de Sousa, Sô Queirós, que comerciam com a borracha chegada do centro do país; a de Acácio, desterrado a Angola polas suas ideias anarquistas; a da família Semedo, à que o avô Alexandre foi baptizando com nomes da mitologia grega; a da mutaçom do genro Bartolomeu Espinha, que de colaborar com a PIDE passa a fundar o seu partido independentista; a da bisneta Olívia, simpatizante do PCP, que entre a sua retórica revolucionária abandona o país, presa dos mesmos preconceitos coloniais que critica nos seus pais; ou a de Joel, que se converte no primeiro angolano da família, em palavras do seu avô, pois fica a luitar pola independência.
Conta Pepetela “A ideia do Yaka nasce em Benguela em 1975, estávamos numa “espera” nocturna do inimigo e eu disse que tinha que escrever um livro que aproveitasse o privilégio que eu tive de ter nascido de uma família colonial, numa cidade colonial, de ter lutado contra esse sistema colonial e de estar na minha cidade natal quanto termina o colonialismo…”. Logo da sua saída do governo é que começa a escrever o romance, com grande documentaçom histórica. De facto, confessa “Tive que escrever o livro de pé. Eu estava completamente preso à história quando escrevi o Yaka”. Essa paixom com a que foi escrito percebe-se ao longo da narraçom. Eis também um dos seus grandes valores.
Além disto, para a leitora galega, será um prazer aceder a umha literatura tam longínqua na nossa língua. Inçados de palavras africanas, os livros angolanos adoitam adjuntar um dicionário de temos próprios, habitualmente procedentes de línguas africanas. Nessa hibridaçom constroem-se palavras como imbondeiro, com a nossa terminaçom característica e umha raiz de sonoridade tam africana (um imbondeiro é a árvore também conhecida como baobá).
Descobrir esta heterogeneidade na lusofonia é mais um argumento para o reintegracionismo, às vezes acusado de querer dissolver as peculiaridades das falas galegas nas portuguesas. Infelizmente, a assunçom de que somos um pequeno mar no oceano da lusofonia é um argumento que ainda lhe soa a chinês a grande parte da populaçom. Desta incompreensão aproveita-se o presidente da Real Academia Galega quando equipara o reitegracionismo com movimentos galegófobos como Galicia Bilingue (veja-se o último número da revista Tempos Novos). Mas o insulto é um sintoma dumha realidade: cada vez é mais difícil ignorar-nos. Continuemos a teimar na via reintegracionista. Quando os e as precursoras do século XIX voltárom a escrever em galego logo de três séculos, figérom-no na ortografia em que foram alfabetizadas, pois eram anafabetas na sua própria língua. De nós depende continuar a sê-lo. Ainda lembro quando comprei o meu primeiro livro em português na feira do livro da Corunha; descobrim a minha língua utilizada por pessoas doutras naçons e adaptada para recolher as suas realidades. Se calhar esta é umha boa primeira leitura para quem quiger fazer o mesmo. E para quem já tiver experiência, um fabuloso romance. Que gostedes!
Fonte: Diário da Liberdade