Por Sônia Cristina Hamid
No dia 29 de novembro de 1947, uma votação na Assembléia Geral das Nações Unidas decidiu o futuro do território palestino: a criação de dois Estados, um árabe e um judeu, onde Jerusalém ficaria sob cuidados internacionais . Embora, nesse período, os judeus formassem menos de um terço da população total e habitassem cerca de 6,5% do território palestino, a partilha lhes concedeu mais de 55% das terras, levando a total reprovação dos países árabes (Sivolella, 2001). Tal resolução foi o estopim de um longo conflito entre judeus e palestinos e o início, entre estes últimos, da formação de um grande contingente de refugiados.
Com a criação oficial do Estado de Israel, em 15 de maio de 1948, o conflito ganhou novas proporções: Egito, Jordânia, Síria, Líbano e Iraque avançaram sobre a Palestina, tentando conter o avanço judeu. Somente em 1949, com os acordos de armistício entre Israel e os países árabes, é que a nova configuração dos territórios mostrou-se clara: na guerra, os israelenses conquistaram cerca de 75% da Palestina; a Faixa de Gaza e a Cisjordânia foram anexadas, respectivamente, ao Egito e à Jordânia; e Jerusalém foi dividida entre Israel e Jordânia (Hourani, 1994:364) . Como resultado, estima-se que 700.000 palestinos deslocaram-se de suas casas, principalmente para as cidades árabes vizinhas. Em conflitos subseqüentes, como a Guerra dos Seis Dias ocorrida em 1967, somou-se a esse número aproximadamente outros 350.000 refugiados .
Esses acontecimentos, aparentemente tão distantes da realidade brasileira, são fundamentais para a compreensão das memórias e construções identitárias de imigrantes palestinas em nosso país, seja no que toca ao tema das motivações ou contexto de migração, seja no entendimento dos diferentes jogos de identidade e usos de documentos que as identificam como sendo provenientes de outras nacionalidades (Jardim, 2006).
Com efeito, a imigração palestina para o Brasil tornou-se significativa na década de 1950 com a vinda de homens oriundos da Cisjordânia. Uma vez que, como vimos, este território foi anexado à Jordânia em 1948, a maioria dos que ingressaram no país não o fizeram como refugiados, mas como imigrantes em busca de melhores condições de trabalho. De fato, a agricultura de subsistência, principal base econômica, passou a ser insuficiente para o sustento familiar, dadas as bruscas mudanças ocorridas no território. Ressalte-se, ainda, que a entrada no país deu-se por meio de passaporte jordaniano, tornando difícil qualquer possibilidade de se precisar o número de palestinos no Brasil. Buscando traçar uma estimativa, o presidente da Sociedade Palestina de Brasília, entrevistado por mim em 2006, sugeriu que aqui haveria, entre imigrantes e descendentes, cerca de 20.000 palestinos.
Atualmente, nas ciências sociais, são poucos os estudos que abordam precisamente a imigração palestina e o seu processo de formação de identidade étnica no Brasil. Se as pesquisas históricas sobre a imigração síria e libanesa cristã do início do século passado gozam de numerosas investigações , a imigração palestina muçulmana tem chamado a atenção de alguns poucos pesquisadores concentrados no sul do país, local onde o número de palestinos tem se mostrado mais expressivo . Quando se trata de apreender a imigração feminina, a necessidade de estudos aprofundados se torna ainda mais premente, seja porque o relato da imigração tem classicamente se apresentado a partir de uma ótica masculina, seja porque tem se projetado, desde o “11 de setembro”, uma visão global reducionista e reificada das mulheres muçulmanas como vítimas da dominação masculina (Cardeira, 2008).
Partindo dessa breve reflexão, o objetivo deste artigo é o de analisar como mulheres palestinas muçulmanas pensam a migração e constroem suas identidades em nosso país. Para tanto, me basearei em pesquisa de campo realizada entre 2005/2006 com seis palestinas moradoras de Brasília. A análise de suas memórias, recolhidas em entrevistas aprofundadas, foi o meio privilegiado para a observação de seus variados processos de identificação. A memória é aqui apreendida como um fenômeno social, passível de flutuações e mudanças, uma vez que o passado sempre é reconstruído a partir das relações assumidas pelo sujeito no presente (Halbwachs, 1950). Nesse âmbito, a identidade do sujeito é entendida como influenciada por suas lembranças, já que elas fornecem um sentido de continuidade e coerência no tempo, permitindo-lhe uma representação de si mesmo.
Neste artigo, o que apontaremos é que as distintas gerações a que pertencem essas mulheres e as variadas formas de inserção na sociedade de acolhida culminaram em diferentes modos de identificação e relação com os brasileiros: embora todas as interlocutoras façam parte de uma mesma “família extensa” da cidade de Safa, excetuando a que emigrou em 1977 da aldeia de Deir Balout, percebeu-se que enquanto as que chegaram ao país em 1968 se auto-identificam como refugiadas, as outras três, imigrantes de diferentes períodos (1977, 1994, 1995), denominam-se somente como palestinas. No que toca à relação com os brasileiros, todas se percebem como pertencentes a uma “cultura árabe”, o que nem sempre implica dizer que há total consenso sobre o que isto significa. Não obstante, será fundamental perceber que tanto nas memórias da imigração quanto nas relações com os brasileiros, a questão de gênero apresenta-se como crucial na apreensão de suas identidades.
De modo a contemplar estas distintas dimensões, na primeira parte do trabalho indico como estas palestinas tornaram-se imigrantes em nosso país. Para tanto, recorro à imigração masculina, uma vez que inicialmente essas mulheres não migraram sozinhas, mas foram migradas pelos homens de suas famílias . Na segunda parte, aponto como suas identidades estão fortemente vinculadas às memórias do conflito entre israelenses e palestinos, expondo como tais lembranças indicam uma experiência de guerra específica conforme o gênero. Por último, sublinho como pertencer a uma “cultura árabe” no Brasil tem significado seguir certas prescrições e proscrições de gênero, de forma a diferenciá-las das brasileiras.
Dos imigrantes às migradas: a vinda das mulheres palestinas à Brasília
A compreensão da imigração feminina à Brasília requer, de fato, o conhecimento do processo migratório masculino. Isso porque a vinda de todas as palestinas entrevistadas foi antecedida pela de seus pais, maridos ou parentes próximos. É importante esclarecer que, embora bastante situadas nas experiências dessas mulheres de Brasília, como não poderia deixar de ser, uma vez que se trata de uma abordagem antropológica, suas memórias da migração não deixam de revelar certos aspectos mais gerais da imigração palestina ao Brasil. Como mostra o relato da refugiada Nágile :
“Olha, a vida lá era muito difícil, e muitos palestinos saíam da Palestina à procura de uma vida melhor, à procura de trabalho, e não de uma imigração definitiva, até porque eles saíam da Palestina e deixavam os familiares lá. No caso do meu pai, ele me deixou, deixou a minha mãe e os meus irmãos, e veio para o Brasil trabalhar uns três ou quatro anos.
E o seu pai fazia o que lá?
Meu pai? O pai dele era agricultor. Ele plantava, tem terras, inclusive tem até hoje as terras. E o meu pai também serviu o exército na época dos ingleses, quando os ingleses ainda dominavam a Palestina. (…) Meu pai participou na guerra de 1948, você sabe, quando depois foi delimitado o Estado de Israel (06/11/2006).
O pai de Nágile, assim como os demais parentes das palestinas entrevistadas, migrou ao país na década de 1950. Proveniente de Safa, uma vila próxima
à Ramallah, na Cisjordânia, ele buscava ascender economicamente no país e, posteriormente, regressar à Palestina. Isso porque nem a agricultura, atividade herdada de seu pai, nem a participação no exército eram suficientes para o sustento familiar. Da mesma forma, homens solteiros também seguiram esse trajeto, como foi o caso do atual marido de Amira (migrada em 1977) que, na época, buscava ajudar sua mãe e irmão na Palestina. Inicialmente, portanto, essa imigração configurava-se como masculina, temporária e com objetivos econômicos.
Ao chegar ao país, o pai de Nágile foi direto ao Rio Grande do Sul, onde tinha o contato de parentes e amigos palestinos que já haviam imigrado. Iniciando sua vida como “mascate” e estabelecendo-se como dono de comércio, ele, em momento algum, mudou-se do sul do Brasil. Por sua vez, o pai da refugiada Malak passou por vários estados brasileiros (Goiás, Brasília e Rio Grande do Sul), na busca do local que oferecesse a melhor possibilidade de ascensão social. Outros, ainda, iniciaram o trabalho em São Paulo, mas diante das notícias que chegavam sobre Brasília, na década de 1960, para cá vieram logo após a inauguração. Com efeito, Brasília apresentou-se como uma das várias possibilidades de ascensão econômica, configurando-se tanto como um local de estadia definitiva, após experiências em outros estados, quanto como um ponto de passagem/experimentação. Assim, de imigrantes no Brasil, muitos tornaram-se migrantes no território, deslocando-se tão logo percebiam chances em outras localidades. Tal deslocamento, contudo, não deixava de ser mediado pela ajuda de parentes e amigos, de forma que é possível afirmar que se eram os motivos econômicos que impulsionavam a imigração e a migração, eram as relações de parentesco e amizade que as organizavam, ordenando suas rotas e oferecendo-lhes oportunidades (Woortmann, 1995).
Ressalte-se que, embora os parentes das mulheres tenham migrado à Brasília após sua inauguração, a vinda de palestinos para a capital iniciou-se entre 1956 e 1960, momento em que um grande contingente de trabalhadores adentrou o planalto central para a sua edificação. Os palestinos concentraram-se na então “Cidade Livre”, local onde se incentivava o estabelecimento de comerciantes através da isenção de impostos para atender à população que chegava . Em 1958, dada a presença de aproximadamente 100 palestinos no local, foi criada a Sociedade Palestina de Brasília com o intuito de fortalecer a discussão política sobre a Palestina e “preservar” a cultura árabe. Atualmente, Brasília comportaria cerca de 2000 palestinos, considerando imigrantes e descendentes, sendo a metade de mulheres.
O início da imigração feminina ao Brasil somente passou a ocorrer quando aquela imigração masculina, a princípio temporária, foi ganhando ares mais “definitivos”. A decisão pela permanência no país adveio de duas importantes motivações: ascensão econômica e guerra. No primeiro caso, devido à melhoria das condições sociais e financeiras no Brasil, principalmente por meio da aquisição de comércios próprios, muitos imigrantes optaram por estabelecer-se no país, buscando, então, a constituição de uma família. Para tanto, muitos foram à Palestina casar-se com primas ou membros da comunidade. As palestinas que adentraram o Brasil nos anos de 1977, 1994 e 1995 o fizeram a partir do casamento . Ao chegarem, elas estabeleceram-se em Brasília, local onde já moravam seus esposos. São essas as mulheres que, no presente, se auto-identificam somente como “palestinas”. No segundo caso, alguns imigrantes que viviam no Brasil, ao saberem que suas cidades haviam sido ocupadas durante a Guerra dos Seis Dias, em 1967, e temerosos pela segurança física e moral dos parentes, decidiram trazê-los ao país, fixando-se aqui de forma menos temporária. As três entrevistadas que migraram um ano após o conflito, a pedido de seus pais, o fizeram quando ainda eram crianças, ingressando primeiramente no Rio Grande do Sul e estabelecendo-se em Brasília nas décadas de 1980/90. São essas as palestinas que se auto-identificam como “refugiadas”, uma vez que consideram o conflito como determinante de suas vindas.
Para as mulheres que vieram ao Brasil após se casarem com palestinos que aqui viviam, a emigração é concebida como uma escolha feita no momento em que decidiram aceitar o pedido de seus pretendentes. Tal deslocamento representava tanto a possibilidade de afastar-se da difícil vida na “roça”, conforme nos conta Amira (1977), quanto a efetivação do “sonho” de conhecer o local onde já moravam muitos parentes, como relata Sadíe (1995):
“A minha avó vivia dizendo que eles (os quatro primos) aqui (no Brasil) iam casar com as quatro mulheres de lá. Então, a gente cresceu escutando isso. (…) E eu vou confessar uma coisa pra você, eu tinha era vontade de conhecer o Brasil. Porque meus tios moram todos aqui, só tem dois tios lá, e eles são 11 no total. Minha avó vinha pra cá, meu pai… Então todo mundo que saía daqui e voltava pra terra falava bem daqui, que era uma terra bonita” (03/11/2006).
Assim, ao apontar que as mulheres palestinas são “migradas” não pressupomos uma falta de agência feminina na decisão de deslocar-se. Como bem ponderou Jardim (2007), principalmente no que toca à segunda geração de imigrantes, as mulheres (tias, avós) seriam as responsáveis por tramar os casamentos entre parentes que moram em países distantes, “vindo primeiro” no processo imigratório. No relato de Sadíe, por exemplo, fica claro como sua avó já tecia os encontros entre primos do Brasil e da Palestina. Não obstante, é preciso reconhecer que as palestinas não “migram sozinhas”. A possibilidade do deslocamento feminino somente ocorre diante de uma presença masculina.
As refugiadas, por sua vez, não encaram a emigração como uma escolha, mas como uma condição do conflito. O contexto de guerra as teria obrigado a sair de suas “terras” e a estabelecer-se num país, cuja estadia se pretendia passageira por seus pais. Ao ingressarem no Brasil com idades de 7, 8 e 13 anos, essas mulheres socializaram-se, em alguma medida, entre dois contextos sócio-culturais. É importante ressaltar que a identidade de refugiada assumida não está pautada em um pedido formal feito ao governo brasileiro, tendo elas ingressado no Brasil como imigrantes comuns. Tampouco está relacionada à perda das casas, uma vez que seus parentes seguiram vivendo no território ocupado. Além disso, elas não fazem qualquer menção à definição de “refugiado” proposta por organismos internacionais criados para lidar com a questão palestina, como é o caso da UNRWA (United Nation Relief and Work Agency for Palestine Refugees in the Near East) . Como veremos, tal identidade se baseia, principalmente, nas lembranças do medo vivenciado nos dias do conflito e do receio de que o corpo feminino pudesse ser vítima de uma violência particular.
Para ambos os grupos de mulheres, o conflito israelo-palestino é integrante de seus processos de construção identitária, não devendo ser desprezado na análise. No entanto, as diferentes gerações a que pertencem e as diversas dinâmicas migratórias resultam em variadas formas de narrar e avaliar esse mesmo cenário .
Memórias do conflito
Ao longo de todas as conversas com as mulheres, a criação do estado de Israel e o conflito permanente entre judeus e palestinos eram constantemente apontados na descrição de suas trajetórias. Essas questões apareciam como “marcos” ou “pontos invariantes” da memória, sendo essenciais na compreensão de como se percebiam (Pollak, 1992).
Com efeito, o processo de construção identitária das imigrantes não pode ser entendido apenas nas relações que estas desenvolvem com os brasileiros, devendo-se considerar os múltiplos vínculos estabelecidos continuamente com a Palestina. Isso porque as migra