Pensador francês, morto em janeiro, concedeu esta entrevista em 2008 ao jornal Brasil de Fato, na qual discute a união da esquerda e os efeitos da crise
11/02/2010
Mariana Santos
de São Paulo (SP)
O filósofo e militante comunista Daniel Bensaïd morreu em janeiro aos 64 anos, em Paris, lutando, como em maio de 1968, pela união das esquerdas contra o capitalismo, com a fundação do Novo Partido Anticapitalista (NPA). Professor de Filosofia da Universidade de Paris VIII, foi fundador da Juventude Comunista Revolucionária, em 1966, e da Liga Comunista Revolucionária, em 1969, e dirigente da Quarta Internacional.
Nesta entrevista, concedida durante o lançamento do livro “Os irredutíveis” (Boitempo), em São Paulo (SP), em 2008, Bensaïd discute a força simbólica das lutas operárias e estudantis de 1968 na França, as conseqüências da aliança da socialdemocracia com o Estado neoliberal, a crise capitalista e a união das esquerdas anticapitalistas. Um dos fundadores do Fórum Social Mundial, Bensaïd sugeria uma nova palavra de ordem sob a pressão da crise capitalista: “outro mundo é necessário e urgente”.
Brasil de Fato – Como o senhor avalia as manifestações de maio de 68 na França?
Daniel Bensaïd – Acho que muitas vezes se lembra do maio de 1968 insistindo muito no aspecto estudantil. Então nós que fomos estudantes, somos conhecidos, mas isso tende a esconder o que faz de 68 uma data simbólica. Eu acho que a característica foi a greve geral. Em proporção à população, é a mais importante pelo menos da história da França. Quase 10 milhões de trabalhadores em greve durante três semanas. Por outro lado, também porque participa de uma série de acontecimentos internacionais. Não se pode pensar em 68 francês sem relacioná-lo com a ofensiva de fevereiro no Vietnã, a Primavera de Praga, o movimento dos estudantes no México e no Paquistão. É um conjunto de muita carta simbólica. Isso eu acho que tem certa importância, porque a greve – não digo que poderia ser feita uma revolução socialista, mas derrubar o governo como na greve geral – abria um cenário, não só para a França, mas para Europa, totalmente distinto durante os anos 70.
Quem são os irredutíveis, hoje?
Os que lutam. São muitos, das mobilizações da juventude, que conquistaram, dois anos atrás [em 2006], uma das poucas vitórias sociais dos 15 últimos anos. A grande mobilização da juventude conseguiu a retirada da lei chamada de contrato de primeiro emprego, que precarizava o trabalho da juventude, mas tem que ver também com um contrato parecido para os desempregados. Tem começado a aparecer coletivos de jovens desempregados que estão ocupando os supermercados para repartir comida, não no sentido Robin Hood, mas para denunciar a alta dos preços. São os trabalhadores que se mobilizam contra a privatização, o fechamento de fábricas. Tem muitas atividades sociais com poucas ou muito excepcionais vitórias. A mobilização sobre pensões, seguro social, ou educação, tanto em 1995, com as grandes greves, como em 2003, foram derrotados, e também a última, a mobilização juvenil do ano passado [2007] sobre a reforma da universidade. Tudo isso se perdeu, mas há possibilidade de se recompor um espaço não só de resistência social, mas também de radicalidade política. Isso em formas distintas significa quase em todos os países da Europa, uma remobilização social sem vitórias e o início de recomposição política até com certo impacto eleitoral. Isso tem a ver também com a crise, a quase desaparição dos partidos comunistas, e um debilitamento da social-democracia.
O senhor acredita que os valores neoliberais foram desmistificados com essa crise econômica?
Não quero generalizar, mas na França agora quase ninguém se diz liberal. Liberal parece sinônimo de capitalismo mau, mafioso, desonesto, imoral. Então, todo mundo, o governo primeiro, fala que é necessário moralizar o capitalismo, reinventar, refundar o capitalismo. Então, isso é importante no sentido simbólico. Todo discurso nos 25, quase 30 últimos anos de legitimar o capitalismo, de fetichismo de mercado, tudo isso de fato eu acho que feriu de morte o deus mercado. Agora, não significa que automaticamente tenha alternativa a isso e tampouco se sabe que tipo de novo discurso se pode inventar do lado do governo ou da socialdemocracia. A crise é muito recente, é só o início, mas já abalou a socialdemocracia. Então, tem mudado o discurso, alguns que pedem a nacionalização dos bancos. O próprio governo tem desistido agora da privatização do Correio que estava prevista para este ano [2008]. Está claro que é indecente, porque o motivo, o pretexto para privatizar era para atrair 3 bilhões de euros da iniciativa privada, enquanto o governo acaba de encontrar 40 bilhões de euros para salvar os bancos. Então, isso também está deslegitimado no momento. Vai ser muito difícil, por exemplo, seguir com a reforma do seguro social com a falência dos Fundos de Pensão nos Estados Unidos. Então não sei que discurso vão inventar para tentar encontrar uma nova legitimidade. Ademais, um problema que tem a Europa é que qualquer discurso, não digo revolucionário, mas de reforma um tanto sério, imediatamente se choca com o conjunto dos tratados da Constituição européia. Então, não vai ser uma crise econômica, mas também uma crise política da Constituição européia. Com que saída, ninguém sabe, depende das lutas e a crise vai ter efeitos contraditórios, de um lado intentos de dar um passo adiante na construção política da Europa. Por exemplo, criar o que [o presidente francês Nicolas] Sarkozy reivindica: um fundo soberano, uma reserva comum financeira européia. Mas, por outro lado, a crise provoca tendências centrífugas, porque cada país tenta salvar seus bancos, como a Alemanha, a Irlanda. Então, o que vai prevalecer das tentativas vai depender muito das lutas sociais.
Como o senhor avalia hoje o contexto internacional, a crise na Europa, o crescimento do fascismo e a articulação dos partidos de esquerda?
Eu acho que a esquerda européia é distinta da América Latina, é organizada desde os anos 1920 praticamente, em torno de corrente comunista stalinista e a socialdemocracia. Os partidos comunistas, com a desaparição da União Soviética, estão muito debilitados, alguns agonizando. Por outro lado, a socialdemocracia – que necessitaria confirmar minha hipótese – tem participado durante 25 anos do desmantelamento do Estado social, que é sua base de sustentação, porque é um mecanismo de manutenção da paz social, para assegurar um certo crescimento do nível de vida. Nesse processo, foi se destruindo metodicamente tanto o sistema de seguro social, como os serviços públicos e as empresas públicas com as privatizações. As lideranças, as cúpulas da socialdemocracia também têm mudado muito. Não são só funcionários de Estado, com em um certo sentido do serviço público, agora são organicamente associados ao capital financeiro e industrial. São os gerentes de confiança do capital. Isso eu duvido que será reversível. A conseqüência de tudo isso, o debilitamento dos PCs e a mudança da socialdemocracia, é a abertura de um espaço à esquerda da esquerda tradicional. Um espaço que não é ocupado de forma homogênea. A posição é que, para um futuro previsível pelo menos, haja uma total independência da socialdemocracia, nenhuma coligação, nem a nível de prefeitura, nem de governo etc. Isso parte da idéia de que saímos de uma derrota histórica no século 20. Então, é um início de reconstrução e, se queremos reconstruir algo sólido, não se pode confundir desde o início com operações táticas que confundem a gente. Tem que tr
açar para médio ou longo prazo uma perspectiva de reconstrução de verdade. Ora, a crise facilita, de certo modo, porque mostra quem quer reconstruir ou refundar o capitalismo e quem quer destruí-lo. É um ponto de divisão de águas bastante visível. Digamos que a nova esquerda, na Europa, está paralisada. Eu acho que tem um espaço da esquerda em disputa, tem várias opções. O que tentamos fazer é agrupar, não conclamar um partido, mas uma esquerda anticapitalista européia, para tentar fazer com nome comum a campanha à eleição européia de 2009. Com chapa na Polônia, Espanha, Itália, França, Inglaterra vai ser complicado, mas isso começa a firmar não só uma opção anticapitalista na França, mas dar, já jogando com um desenvolvimento desigual, uma perspectiva européia.
Na sua opinião, pode-se ter alguma perspectiva de uma retomada revolucionária nesse contexto de crise econômica internacional? Quais as tarefas da esquerda?
De um lado, digamos que a palavra simbólica de ordem dos fóruns sociais “outro mundo é possível”, hoje teria de ser mudada: “outro mundo é necessário e urgente”, o problema é fazê-lo possível, mas aqui tem que ser lúcido também. Se a hipótese seria de que o ponto de partida é uma derrota, não qualquer, mas uma derrota histórica das esperanças de libertação do século 20, se pode imaginar o início de um processo de reconstrução. Falo para a Europa. Revolução social do “dia para a noite” com a correlação de força atual…, porque não se trata só de reconstruir uma esquerda política, mas também de reconstruir os movimentos sociais. É preciso saber que na França os sindicalistas são apenas 10% da força de trabalho. É muito minoritária. Então se trata verdadeiramente de uma reconstrução, depois de uma derrota política, e em condições difíceis, porque o obstáculo não é só ideológico. Os efeitos da individualização do salário, do emprego, do seguro de pensão e flexibilização, tudo isso obstaculiza a organização coletiva. Então a reconstrução, a crise pode favorecer por um lado, mas vai ter efeitos contraditórios, gente que vai tentar salvar-se por si mesmo. Então é uma batalha política aberta. Na América Latina pode ser diferente. Que efeito vai ter a crise no processo bolivariano? Se vai retroceder, ou avançar, se a convergência Bolívia e Equador se fortalece, que resposta à crise, que uso do Banco do Sul, tem aparecido o tema de uma moeda latino-americana para desvincular-se do dólar, e não sofrer com o enfraquecimento do dólar. Tudo isso está em aberto. Eu acho que a mudança com a crise é que o discurso sobre o socialismo, o comunismo, está ganhando legitimidade. A ideia de que o capitalismo era o fim da história agora terminou. Eu acho que ninguém pode imaginar ou pretender saber que forma vão tomar as revoluções do século 21. Ninguém sabia em 1789 que ia haver uma revolução em Paris. Dizer que tem uma oposição quase sistemática entre uma lógica do capital, de concorrência, de todos com todos, de ganância privada, de egoísmo, falta de solidariedade, privatização do espaço público etc. E uma lógica alternativa que é de reconstrução do espaço público, defesa do serviço público, dos bens comuns da humanidade, como terra, água, ar etc., uma política solidária de energia, que tem também mais que uma dimensão ecológica, porque o que está em crise na realidade é a lei do valor como forma de organizar a vida social, que se traduz por uma crise social e ecológica. Não é para fazer manobras políticas, mas é o núcleo de um programa alternativo. Logo se vai ter essa envergadura de 1968, fazemos propaganda para isso, mas não depende de propaganda, acontece ou não acontece. Veremos. Mas, o importante é já convencer a gente que outra coisa é possível, o capitalismo não é fatal, não é o estado terminal da história, e que há outra lógica possível.