Rodolfo Cabral
Um dos entraves para a realização da reforma agrária no Brasil encontra-se na não aplicação do princípio da função social da propriedade. Consagrado no ordenamento jurídico brasileiro desde o Estatuto da Terra (1964) e incorporado às Constituições posteriores, o princípio da função social da propriedade permanece até hoje sem ter a devida eficácia, pois a defesa absoluta da propriedade continua prevalecendo nas decisões judiciais, em detrimento de critérios como o aproveitamento racional e adequado dos recursos naturais, a preservação do meio ambiente e a observância das disposições que regulam as relações de trabalho. Sobre a produtividade, há duas questões a serem consideradas. Primeiramente, o índice de produtividade data de 1976. Com o desenvolvimento da tecnologia e das técnicas de produção, tal índice encontra-se profundamente desatualizado.
É inimaginável que uma terra que produza hoje o que produzia há 32 anos seja considerada produtiva. A legislação diz que tais índices devem ser periodicamente atualizados. Porém, a inoperância do governo federal e a resistência da bancada ruralista no Congresso Nacional mantêm a defasagem do índice. Em segundo lugar, uma terra, mesmo que produtiva (de acordo com os índices de produtividade), que não cumpra a sua função social pode – e deve – ser desapropriada. A função social da propriedade está incluída nos Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição, prevalecendo sobre a produtividade pura e simples.
Deste modo, para uma terra ser realmente produtiva, não basta cumprir os índices de produtividade, tem também que atender os requisitos do artigo 168 da Constituição. Como exemplo, há o caso das mortes de trabalhadores no corte da cana ocorridas no interior de São Paulo. Pode-se dizer que tais terras observam as “disposições que regulam as relações de trabalho” ou a “exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”? Certamente não. Da mesma forma, diversas propriedades utilizam-se de regimes análogos ao de escravidão, mas, atendendo unicamente ao índice de produtividade, não são desapropriadas para a reforma agrária.
Outro ponto importante diz respeito às propriedades com dívidas com o poder público. Os movimentos sociais de luta pela terra vêm denunciando há anos terras que têm dívidas milionárias com a União ou com os Estados, além de dívidas trabalhistas, e que perpassam de geração em geração sem nunca serem pagas. As denúncias baseiam-se na Lei n° 8.629/93, que assegura a realização de reforma agrária em terras onde sejam encontradas irregularidades como dívidas trabalhistas, descumprimento da legislação ambiental e maus tratos aos funcionários.
O cumprimento do princípio constitucional da função social da propriedade é primordial para a realização da reforma agrária no Brasil – que realmente se desaproprie massivamente terras que não atendem seus requisitos para a implantação de assentamentos. Há todo um aparato jurídico que o regula, mas que vem sendo ignorado pelos órgãos responsáveis pelas vistorias de terras e também pelo poder judiciário. Com efeito, acompanha-se uma série de despejos irregulares em ações de reintegração de posse ajuizadas pelos latifundiários nos casos de ocupações de terras, além da criminalização dos dirigentes e demais militantes dos movimentos. A pauta da reforma agrária abarca o cumprimento da lei, que encontra como entrave as relações de classe presentes entre os latifundiários e ocupantes de cargos públicos, em todas as suas esferas.
Diante da inoperância do poder público no cumprimento das leis emanadas por ele próprio e da insistência na primazia da propriedade privada absoluta em detrimento dos interesses da coletividade, mantendo a propriedade de terras que não atendem aos requisitos legais, não cabe outra alternativa aos movimentos sociais que não as ocupações massivas de terras na luta pela reforma agrária. Só com muita mobilização social e provocação dos poderes públicos é que a lei será cumprida e as desapropriações acontecerão.
Fonte: Jornal Brasil de Fato – http://www.brasildefato.com.br/