Por Rodolfo Salm
Esta semana, o Ministério Público Federal promoveu em Brasília uma Audiência Pública para discutir o projeto da usina de Belo Monte. Apesar de este encontro ter se dado não nos rincões das populações atingidas, mas ao lado da sede do poder executivo federal, não compareceu ao debate nenhum representante dos órgãos de governo mais diretamente relacionados à obra.
Apesar da presença de índios de diverstas etnias e centenas de afetados pelas obras que viajaram por centanas de quilômetros da região de Altamira para a capital na esperança de serem ouvidos, nem o IBAMA, nem a Eletrobrás, o Ministério de Minas e Energia, a Casa Civil ou a FUNAI se fizeram presentes. O que o Minc ou a Dilma estavam fazendo de tão importante que não poderiam dar as caras para falar da ultra-polêmica “maior obra do PAC”? A vice-procuradora geral da República, Deborah Duprat, disse que “se não é possível conversar, o caminho que nos resta é o judicial”. Então, quando o Ministério Público entrar com novas ações para suspender o projeto, como inevitavelmente acontecerá, que não se venha dizer que ele “trava” o desenvolvimento do país.
Recentemente, narrei a minha participação pessoal na audiência pública sobre a construção da hidrelétrica de Belo Monte, ocorrida em setembro em Altamira (Belo Monte: a farsa das audiências públicas). Na oportunidade, questionei aos responsáveis pelos Estudos de Impacto Ambiental o motivo de não se usar no estudo modelos computacionais de desmatamentos para as próximas décadas, considerando o aumento da imigração e o aprimoramento da infra-estrutura de transportes associados à construção de uma hidrelétrica do porte de Belo Monte (técnicas acessíveis e hoje amplamente utilizadas para estudar os desmatamentos das florestas tropicais). Então, fui ignorado pelos responsáveis pela condução dos estudos, que se limitaram a responder que foram feitas análises dos desmatamentos dos anos anteriores.
Decorridos quinze dias úteis, quando se encerrava o prazo para a protocolização de questionamentos ao processo, junto com representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), e dos movimentos sociais de Altamira, formalizei, na sede do IBAMA local, a pergunta sobre esta falha imperdoável no estudo dos impactos sobre o desmatamento, que é, de longe, o maior problema ambiental da região. Em um relatório de mais de dez mil páginas! Este e vários outros questionamentos, das muitas perguntas das pessoas preocupadas com os previsíveis desastres causados pela construção desta hidrelétrica, seguiram para Brasília. O presidente do IBAMA ainda tentou ignorá-los, declarando que nada havia sido questionado no prazo legal. Mas teve que voltar atrás diante de fatos, tal como a imprensa local haver registrado nossa manifestação diante do IBAMA e os pesquisadores da USP terem em mãos os comprovantes de que a documentação com questionamentos foi entregue.
No dia 10 de novembro, foram divulgadas as respostas do IBAMA (na verdade foram respostas dos empreendedores) aos documentos por nós enviados durante o processo de licenciamento. Nova decepção: no lugar da minha pergunta original, inseriram outra semelhante, mas alterada. Onde eu escrevera “projeções, com base em modelos computacionais”, constava “cenários de desmatamento para a região”. E com cenários, faz-se o que quiser. Resumidamente, responderam que havia cenários.
E que no futuro, mesmo sem a obra, praticamente todas as florestas fora das áreas protegidas seriam desmatadas. Mas citam os grandes blocos de terras indígenas do Xingu, que, junto com algumas Unidades de Conservação, “teriam a capacidade de funcionar como unidades evolutivas, mantendo populações viáveis de espécies em longo prazo”.
É irônico que, por um lado, ignoram os repetidos e enfáticos alertas dos índios sobre os impactos da construção dessa barragem sobre a floresta de que dependem e que preservam, e por outro contam justamente com estes índios para garantir que não causarão uma extinção em massa de espécies no Xingu.
Formou-se cegueira acerca da mentira que, criada e propagada sobre Belo Monte, é generalizada, atingindo inclusive setores da esquerda. Joaquim Francisco de Carvalho, por exemplo, apesar de ter escrito aos leitores do Correio da Cidadania que não voltaria mais ao assunto da hidrelétrica de Belo Monte, voltou novamente sua carga contra os críticos das barragens, chamando-nos de “ambientalistas dogmáticos”, e acusando-nos de desperdiçar “vantagens comparativas” para o Brasil (sem que nenhum dos nossos leitores, com a exceção do professor Oswaldo Sevá, protestasse).
Ora, nossa maior vantagem comparativa é ter em nosso território a maior parte da maior floresta tropical do mundo. E os que se recusam de todas as formas a discutir o efeito das barragens dos rios amazônicos é que são os verdadeiros dogmáticos. Como observou o professor Sevá, falta a esquerda entender que a luta contra Belo Monte é a luta política contra a ditadura que não acabou e contra a blindagem antidemocrática dos energiólogos. E que combater o projeto Belo Monte é combater a maior de todas as roubalheiras do grupo chefiado pelo último presidente eleito pelo Colégio Eleitoral e o enorme poder político que adquiriram as grandes empreiteiras que ajudaram a financiar a polícia militar nos anos da ditadura.
P.S. Com relação ao texto da semana passada (“Marina e o Monstro”), alguns leitores me chamaram atenção para o fato de que, respondendo à jornalista do Site Amazônia, em nenhum momento Marina Silva falou a frase “Não há como fugir do aproveitamento energético do rio Xingu”, da forma como é citada, entre aspas, no artigo da jornalista Fabíola Munhoz. Enviaram-me o áudio da resposta de Marina Silva sobre Belo Monte. Na verdade ela falou: “Este empreendimento, para geração de energia do país, que é (pausa) fundamental e relevante, não pode (pausa) deixar de considerar que é também fundamental e relevante resolver os problemas ambientais e sociais envoltos… no empreendimento. Para isso eu só vejo um caminho: fazer o plano de desenvolvimento sustentável da área de abrangência do empreendimento”.
De toda forma, deu uma de político bem tradicional, e tentou ser o mais evasiva possível, dando uma no cravo e uma na ferradura. Pelo que foi dito dá para concluir que ela não brecaria o empreendimento se fosse feito o tal plano da área de abrangência. E se estivesse realmente interessada em marcar oposição a esta obra absurda, teria comparecido à audiência pública do Ministério Público Federal sobre a barragem em Brasília, para exigir que o BNDES retire sua intenção de financiá-la. Assim como fez Chico Mendes nos anos 1980 em Washington com o Banco Mundial em relação ao asfaltamento da BR 364.
Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da Universidade Federal do Pará.