Tegucigalpa, 29 de setembro de 2009
Por Pedro Fuentes
1.- “Sangue de mártires, semente de liberdade” era a palavra de ordem no enterro de Wendy, que morreu devido aos gases lacrimogêneos no sábado passado. “Todo despertar tem um preço”, me dizia um militante da resistência, formado no Partido Comunista, durante a cerimônia pela companheira, na tarde de segunda-feira, no Cemitério Nacional. “E Honduras despertou.” Usando categorias marxistas, o companheiro dizia que em Honduras esse despertar significa que o movimento deu “um salto de qualidade”.
“Não é o primeiro que trazemos a este cemitério, oficialmente foram velados seis companheiros, mas há um número que não conhecemos de desaparecidos, de pessoas que foram levadas e não mais apareceram, e até de pessoas que se diz terem morrido por serem ladrões em enfrentamento com a polícia”, me contou.
2.- Na segunda-feira, o governo começou o dia aplicando o decreto de Estado de sítio. A rádio Globo e o Canal 36 foram fechados numa ostensiva entrada do exército a seus edifícios, de onde tiraram todos seus equipamentos e equipes. Nesse mesmo dia, a concentração da resistência que ocorre diariamente na Universidade Pedagógica no meio da manhã foi débil. Mas sem dúvida, e apesar da manifestação ter sido cercada pelas tropas, não havia vestígios de temor ou vacilação. Pelo contrário, os comentários eram de radicalização, de que se deveria tomar medidas mais enérgicas, até se falava da necessidade de se passar a ações mais concretas. A manifestação conseguiu sair para marchar até o sindicato STYBS. Foi o reflexo de um sentimento geral do setor mais amplo da população de que as medidas autoritárias eram repudiadas, não apenas pela grande massa que está contra o golpe, mas também pelos setores da classe média, que rechaçam o autoritarismo simbolizado pelo fechamento dos veículos de comunicação.
A massiva rejeição ao regime e os partidos políticos que o apóia são visíveis a todo momento. Fala-se frente a eles de corruptos, uma palavra muito comum quando se menciona políticos por aqui. O cortejo ao cemitério era pequeno, mas a simpatia do povo era enorme; carros e caminhões, sobretudo os que levavam trabalhadores, saudavam, buzinavam e paravam, todos levantavam os punhos fechados.
3.- Ainda que a resistência não possa manter uma mobilização massiva diária e permanente nas ruas, o apoio popular segue crescendo. O ápice foi o 15 de Setembro, Dia da Independência; nesse feriado, dezenas de milhares saíram às ruas. Além disso, há as paralisações permanentes de diversos setores e, no caso dos professores, de dois dias por semana.
Houve ocupação de edifícios públicos e, até hoje, se mantém ocupado pelos trabalhadores o prédio do INA – Instituto Nacional Agrário, cujo dirigente é Juan Barahona. Esse companheiro é um dos líderes mais carismáticos, junto com Carlos H. Reyes, candidato independente à presidência.
Há uma ampla e numerosíssima vanguarda que se formou nestes 90 dias, composta por trabalhadores, organizações de bairro, sindicatos – como o das bebidas e o do magistério – e organizações campesinas de grande peso e tradição de luta em Honduras. Uma vanguarda que não se dobrou, apesar da repressão que vem sofrendo nos despejos dos bloqueios a estradas, especialmente no dia em que foi dispersada a manifestação em frente à Embaixada do Brasil, onde a repressão foi selvagem. Um jovem motoboy, de não mais de 22 anos, ao lado de sua orgulhosa companheira, me mostrou suas costas, com as marcas dos sucessivos golpes recebidos nesses enfrentamentos. Uma enfermeira com a bandeira do Partido Liberal me contava como se organizou nos primeiros dias a Frente dos Trabalhadores da Saúde em Tegucigalpa. “Começamos com dez enfermeiras, mas foram se juntando os assistentes, médicos e dentistas, com os quais fizemos uma organização numerosa.” Es sa organização conta com uma clínica a serviço para atender os feridos da resistência.
Vale a pena lembrar que, nas duas últimas décadas que se seguiram ao auge revolucionário dos anos 80, tem sido Honduras o país onde o movimento social foi mais forte, protagonizando greves e lutas. A essa vanguarda se somou um setor radical do Partido Liberal, do presidente deposto Manuel Zelaya, que trouxe novos militantes, que surgiram com o golpe. Esses são os setores que formam a atual Frente de Resistência, que mantém a mobilização democrática revolucionária, que já tem mais de 90 dias e que não há vistas de ser derrotada ou desistir.
4.- Precisamente a declaração de Estado de sítio do governo golpista é a tentativa de caminhar em direção de um totalitarismo ditatorial clássico (nos referimos às ditaduras dos anos 70 na América Latina), para deter a mobilização revolucionária em curso e afirmar seu regime. A instituição que parece mais coesa é o exército, que não dá sinais de rupturas, e tem se conservado intacto depois de todos os processos vividos na América Central, e com uma relação muito próxima com a alta burguesia e com as Forças Armadas dos Estados Unidos. O modo funcional desse exército é uma ditadura clássica, para a qual apontava o Estado de sítio.
Mas o golpista Micheletti não se deu bem com seu decreto, porque o parlamento e todos os candidatos à presidência também o rechaçaram. Esse plano significava a sua continuação no poder até as eleições. Numa coletiva de imprensa, nas primeiras horas da tarde de segunda-feira, o presidente golpista, junto com parlamentares, teve que reconhecer que teria que voltar atrás. Isso não significa que não usará inescrupulosamente medidas como fechamento de rádios e TVs e proibição de manifestações, mas como política estratégica, fracassou.
Essa situação mostrou as contradições e as incapacidades da classe dominante e de um regime que, mais que um regime, é um conglomerado de setores com diferentes posições em meio a uma crise política. Se todos estão contra a resistência e a política em direção ao bolivarismo seguida por Zelaya, estão divididos em como enfrentá-las. A saída para eles são as eleições, mas a questão é como chegar a elas. A menos de 60 dias da data marcada, a campanha eleitoral já não existe como tal. Há apenas alguma campanha na TV, mas não chega às ruas.
A burguesia tem que mudar essa situação, mas sob porrete e Estado de sítio é impossível, não apenas por que não havia possibilidade de reuniões dos candidatos como porque o que foi feito até agora foi só botar lenha na fogueira.
Essa não é a única complicação, a outra, maior, é que o presidente legítimo está dentro da cidade de Tegucigalpa, na Embaixada do Brasil, e soma-se a isso o isolamento internacional do regime.
5.- Hoje, todos os setores começaram a falar com muita força da necessidade de um diálogo nacional para se chegar às eleições. Com Zelaya, só seria possível o diálogo se recuperasse a presidência. Mas essa saída é impossível para a burguesia, porque a política do presidente legítimo acabou enfrentando seu regime. Zelaya fala de diálogo, mas também já falou de “Pátria, restituição ou morte”. No contexto atual, pouco mais de uma semana na embaixada, mais de 90 dias de mobilização, um único dia de Zelaya no governo, em meio à fragilidade absoluta do regime, seria muito perigoso para as classes dominantes.
Para a burguesia, não há possibilidade nem de uma ditadura ao estilo da década de 70 nem do retorno de Zelaya. Parece que o diálogo de que falam significaria um governo de unidade nacional provisório, sem Zelaya e sem Micheletti, algo que também é difícil de conseguir.
Esse é o quadro da crise política instalada na superestrutura, e que tem como outro fator fundamental o isolamento internacional e o aprofundamento da crise econômica, que tem levado o país para a beira do abismo. Cada dia significa mais ruína para o povo, e em especial para a classe média, e os pequenos comerciantes são os que mais sofrem.
6.- Há setores minoritários da esquerda que não compreendem que a principal reivindicação é a restituição de Zelaya. A diferença entre os revolucionários e os oportunistas é que, para restituir Zelaya, é preciso continuar e aprofundar a ação direta do povo, é fazer uma luta democrática conseqüente de confronto com o regime.
As reivindicações da resistência são muito claras. Não a estas eleições; restituição de Zelaya; e Assembleia Constituinte, que se transformou também numa reivindicação das massas diante da crise.
O problema para a resistência é que, se a intensa mobilização em curso serviu para fragilizar e colocar em crise o regime, não foi tão intensa para pô-lo em colapso, provocar sua queda e, a partir daí, encontrar uma saída democrática revolucionária. (É uma situação que se parece bastante às que viveram os processos revolucionários de Venezuela, Bolívia e Equador, que depois chegaram a posteriores saídas muito progressivas através de contundentes triunfos eleitorais.) A acumulação de forças existente e o aprofundamento da crise colocam essa possibilidade como aberta. Na medida em que as classes dominantes não resolvem nada, que se agrava a crise, se tornando insuportável, a possibilidade de um levante mais geral está colocada, e com ele um novo governo de Zelaya, num contexto totalmente diferente, de ruptura com o velho regime, como aconteceu em Bolívia, Venezuela e Equador.
7.- De todas as formas, é um erro desmerecer ou não levar em conta as possibilidades das classes dominantes desviarem o processo. Um elemento que tenta romper o isolamento internacional é a posição assumida pelos setores mais direitistas do continente, incluindo o corrupto presidente do Senado brasileiro, José Sarney, que saiu a atacar o apoio a Zelaya assumido pelo presidente Lula. Não é o único. A reunião de ontem da OEA mostrou que os Estados Unidos estão mudando sua política, ao atacar firmemente Zelaya, Lula e Chávez por “aventurerismo”. O plano que possivelmente está tramando, e de difícil aplicação, é de manter a atual situação, com um governo de unidade nacional provisório, sem Zelaya, e que Micheletti mantenha a convocatória eleitoral. Daí surge a necessidade central de manter a todo custo a reivindicação de restituição de Zelaya e de apoiar, no terreno internacional, as forças e os países que defendem es sa posição.
8.- Seja qual for o desenrolar dos próximos dias, está claro que mais nada será igual para Honduras e para todo nosso continente. O povo despertou, deu um salto, como disse o companheiro do Partido Comunista. O processo revolucionário está em marcha e, se não é agora, mais cedo ou mais tarde isso se expressará num novo poder político, como já se passou com vários países latino-americanos. Essa resistência tem formado não apenas novos dirigentes próprios, mas também uma mudança na consciência das massas e novas formas de organização. Há uma ruptura com os velhos partidos. A Frente de Resistência e, em particular, o Bloco Popular, que engloba o setor mais consciente, têm surgido como alternativas para setores de massas. Tudo isso tem que levar a uma nova organização política revolucionária de massas. Vários setores que compõem a Frente de Resistência já entenderam isso, É preciso formar essa força política que será crucial ante aos futuros acontecimentos.
9.- Os lutadores e as organizações anti-imperialistas e socialistas latino-americanas estão diante do grande desafio de colaborar com todo esse processo. Honduras é hoje nossa capital política para avançar na luta de classes em nosso continente e para isso a solidariedade é fundamental. Temos que fazer uma grande jornada em 2 de Outubro, e apoiar de todas as maneiras, inclusive econômica, a resistência hondurenha.
Pedro Fuentes é secretário de Relações Internacionais do PSOL.