Por Robério Paulino
O que pareceria inacreditável há dois anos aconteceu: a GM, um ícone do que se chamou “Século Americano”, quebrou. Antes da crise global iniciada em 2008, sua solidez era profissão de fé entre pseudo-analistas de mercado. No entanto, depois de uma longa agonia, de três processos de reestruturação sem grande sucesso desde 2000 e de perdas estimadas em US$ 88 bilhões nos últimos anos, no último dia 1º de junho de 2009, apoiada no Capítulo 11 da Lei de Falências dos EUA, a GM pediu concordata, como a Chrysler já havia feito algumas semanas antes.
A montadora chegou a ser a maior e mais lucrativa companhia do mundo e ainda é a maior empresa industrial dos EUA, com 243.000 funcionários, símbolo de seu poderio industrial. Como a Ford e a Chrysler, a GM sempre foi uma das gigantes na fabricação de automóveis, as máquinas que mudaram a face do século XX. Por isso, sua quebra tem um impacto profundo em termos econômicos e sociais e um grande simbolismo, suscitando inúmeras questões políticas, ideológicas, estratégicas e até ambientais.
Em primeiro lugar, demonstra que, ao contrário do que diziam muitos economistas e analistas apressados, a crise global que estalou em 2008 é muito mais que um simples desequilíbrio financeiro; é sim uma crise estrutural de época do capitalismo moderno e sua recuperação não será tão rápida. É verdade que a GM fez escolhas erradas. Desconsiderando os alertas, apostou nos grandes utilitários esportivos, como os jipes Hummers, sonho de consumo dos endinheirados mundo afora, secundarizando a produção de carros menores. Quando o preço do petróleo disparou, chegando a 150 dólares o barril, e pela primeira vez os consumidores norte-americanos foram obrigados a optar por carros menores, a empresa foi pega no contrapé. Acossada pela concorrência dos modelos mais econômicos das montadoras japonesas e européias, viu suas vendas caírem.
Com a crise global, as vendas desabaram quase verticalmente para todas as montadoras. Até maio deste ano, as vendas nos EUA estavam ainda em média 37% abaixo do patamar de maio de 2008. Mesmo as vendas da Toyota e da Honda dentro dos EUA caíram 41% e 42%, respectivamente, no mesmo intervalo de tempo. Para a GM, que já vinha avariada, o impacto foi, no entanto, muito maior. A quebra da GM, contudo, revela mais que falta de visão de longo prazo, ganância de retornos rápidos, irresponsabilidade ambiental e estratégias erradas. Ela é parte da profunda recessão mundial.
A crise global é também uma crise de superprodução, como aquelas descritas por Marx. A capacidade produtiva de carros mundo é de 71 milhões de veículos, mas a demanda está casa dos 50 milhões de unidades. Toda crise tem também a função de queimar a potência produtiva excedente. Em 2008, isso começou pela destruição de imensas montanhas de capital fictício no setor financeiro. Mas no lado real da economia, a queima parece ainda não ter chegado ao fundo do poço.
Por isso, as montadoras, atingidas em cheio pela crise, adiam investimentos, fecham ou paralisam plantas em todo o mundo. E não é possível absorver o excesso de produção existente nos EUA, Japão e Alemanha em países emergentes, como a China, por um problema muito simples que é a falta de mercados internos consumidores mais amplos nestes países. Afinal, o segredo, a “vantagem comparativa” dos emergentes e do novo e selvagem capitalismo chinês é exatamente seus baixíssimos salários.
A bancarrota da GM revela também outra importante tendência, que já analisamos em artigo anterior sobre a crise, que é o flagrante processo de desindustrialização relativa que vivem os EUA nas últimas décadas. Com a globalização e a desregulamentação liberal, o capitalismo ianque descobriu o segredo para voltar a elevar suas margens de lucro que vinham caindo: transferiu milhares de plantas e milhões de empregos para regiões e países de salários mais baixos, como México e China.
As empresas norte-americanas reservam para si o controle do desenvolvimento tecnológico, mas produzem em países com baixos custos e nenhuma ou pouca tradição de luta sindical. Aumentam assim enormemente seus lucros, mas, contraditoriamente, deixam para trás nos EUA o fechamento de fábricas e desemprego. Comunidades inteiras que viviam dessas plantas foram desestruturadas. Esse processo, junto com a política tributária de George Bush, que reduziu impostos para os ricos e cortou fundo nos programas sociais, levou a uma imensa reconcentração da renda nos EUA, como se pode constatar por números recentes do organismo de censo americano. Este é mais um dos “segredos” que nos ajuda a elucidar a inadimplência do subprime nos mercados imobiliários.
Por outro lado, a introdução incessante de novas tecnologias e dos novos métodos de gerenciamento de produção flexível oriundos do Japão, aos quais a indústria dos EUA foi obrigada a se converter para não ficar ainda mais para trás, também causou desemprego estrutural, ou seja, supressão de empregos que não voltam. Ainda em 1995, a GM tinha 721.000 empregados no mundo, mais da metade deles nos EUA. Hoje, emprega apenas 240.000 no país e vai encolher mais. Processo semelhante ocorreu com outras empresas tradicionais.
Apesar de os EUA serem um país essencialmente protecionista desde seu nascimento, a estratégia globalizante permitiu a transferência de fábricas e capitais para fora do país, mas ao mesmo tempo a abertura relativa também elevou a concorrência das empresas e dos produtos asiáticos fabricados com trabalho semi-escravo sobre o mercado americano, com as conseqüências óbvias sobre os empregos, a estrutura produtiva e os balanços de comércio e de pagamentos.
Desta forma, o país dos velhos capitães de indústria, da Ford, da GE, da RCA, da IBM, vem lentamente dando lugar a um país de comércio e serviços, setor que paga salários bem mais baixos, e de administradores de dinheiro, de capital a juros. Os símbolos dos EUA já não serão a Ford, a GM, a GE, mas o Wall Mart, o Mcdonalds, o Citigroup salvo pelo Estado, a Intel e a HP produzindo fora do país. A criação de novos empregos de altos salários no setor de informática nem de longe compensa as perdas de postos da velha indústria. Desta forma, os lucros aumentam, mas a renda do trabalho cai.
A GM há muito tempo também recorria à transferência da sua produção para outros países, à subcontratação em toda a cadeia produtiva e ao banco de horas para acompanhar as flutuações da demanda. Como a maior parte das empresas do país, em uma grande ofensiva contra a tradição de luta dos trabalhadores do setor automotivo, vinha impondo imensas dificuldades à sindicalização e usando a chantagem de fechamento ou transferência de fábricas quando ela era inevitável.
Ao gerar desemprego e concentração de renda, a contradição que se cria para o capitalismo moderno, entretanto, é que robô bem comportado, trabalhador chinês, mexicano ou norte-americano não sindicalizado ou desempregado não fazem greve, mas também não compram. A demanda já não é tão efetiva, para desapontamento do espírito de Mr. Keynes. Tudo isso, junto com a financeirização da economia, eleva os lucros, mas também potencializa a instabilidade do sistema. Ao elevar constantemente a produtividade, com mais máquinas e menos trabalho na produção, alterando a composição orgânica do capital, gera-se desemprego e excesso de oferta, ou seja, superprodução, com recorrentes e violentas crises de ajuste. Essa é a lei fundamental da acumulação capitalista, segundo Marx, que nos ajuda a entender a crise global em andamento e a quebra da General Motors.
A crise global, a desindustrialização e a emblemática implosão da GM também sinalizam a continuidade do lento declínio da hegemonia do capitalismo norte-americano sobre o globo. Em uma escala histórica, talvez ela dure ainda mais que “cinco minutos”, mas é inegável. Os EUA não deixarão de ser uma potência de primeira linha no curto prazo. Sua lenta decadência, no entanto, pode ser apenas disfarçada pela “estratégia da diplomacia” de Barack Obama. Em abril, mais carros foram vendidos na China que nos EUA e hoje grande parte dos déficits orçamentários e fiscal do país é coberta pelos capitais acumulados na Ásia, investidos em papéis americanos. O balanço de poder no mundo parece começar a se mover em outra direção.
A crise nos EUA e a perda de posição relativa dos países que aplicaram mais a fundo as estratégias liberalizantes só comprovam a estupidez do argumento neoliberal no longo prazo, cuja força era exatamente a associação com a potência do capitalismo dos EUA e a globalização por ele impulsionada. Os neoliberais seguem bem montados nas estruturas construídas no período anterior, nos governos, nos bancos, na mídia, nas universidades, e suas políticas continuarão a gerar imensos estragos por um bom tempo. No entanto, a crise global com centro nos EUA demonstra a completa falência de seus argumentos.
O novo plano de reestruturação da GM, anunciado depois da concordata, prevê a demissão de 21.000 trabalhadores horistas entre os sindicalizados, o fechamento de 11 fábricas e a paralisação de mais 3. A imprensa, no entanto, tem falado de mais 8.000 mensalistas e de outros tantos cortes indiretos nas concessionárias, no setor de marketing e nas fornecedoras de autopeças. Os fundos de pensão comprarão 18% das ações da empresa. O plano prevê ainda a eliminação de bonificações, fim dos reajustes automáticos dos salários de acordo com a inflação e suspensão “voluntária” do direito de greve enquanto durar o pagamento de algumas parcelas de empréstimos do governo. Impõe, ademais, a dessindicalização em todo um ramo da companhia. Este conjunto de medidas foi a contrapartida exigida pelo governo Obama para a injeção de mais de 51 bilhões de dólares até agora, o que poderá levar o Estado a controlar algo em torno de 70% das ações da empresa.
A aceitação de tal plano pelo sindicato nacional dos trabalhadores do setor automotivo (UAW) indica até que ponto chegou a assimilação do sindicalismo profissional do país à lógica do capital, negando e dissolvendo a grande tradição de luta no setor, observada nas décadas de 1930 e 1940, quando os trabalhadores se mobilizaram fortemente. Além de o sindicato aceitar a redução das conquistas e dos empregos sem chamar à reação, os fundos de pensão comprarão milhões de ações desvalorizadas da empresa, comprometendo assim sua capacidade futura de manter o seguro-saúde dos trabalhadores e pagar os benefícios ligados ao sistema de aposentadorias na GM, das quais depende mais de um milhão de norte-americanos, o que pode vir a gerar um problema social ainda maior. O discurso de que a compra das ações pelos fundos de pensão dá aos sindicatos o estatuto de “sócios-proprietários” é ilusório e serve apenas para confundir. A aceitação do acordo por parte do UAW só neutraliza os trabalhadores e sequer mantém os empregos e as conquistas sindicais.
Há toda uma campanha na mídia do país tentando apresentar a crise da GM não como resultado do desastre capitalista global, da farra em que se transformaram os mercados financeiros, da liberalização, da desindustrialização, da concentração de renda, mas sim da “rigidez sindical e dos salários”, os mesmos argumentos usados pelos liberais antes da Grande Depressão de 1929-36. Ou seja, a culpa da crise da GM é apresentada agora como sendo dos trabalhadores “privilegiados”, que chegam a trabalhar até 12 horas por dia. O discurso patriótico de Obama, incorporado pelo UAW, de que todos precisam se sacrificar um pouco par salvar o país não se justifica. Já não se trata de enfrentar o fascismo de Hitler ou a ameaça do Japão imperial, como no início da Segunda Guerra. Os novos inimigos do país, que estão destruindo sua economia e empobrecendo sua população em proveito de uma pequena classe de bilionários, estiveram sentados bem ali em Wall Street, na Casa Branca, no FED e na direção de empresas como a GM.
Lamentavelmente, este plano também revela muito cedo as opções de Barack Obama pela oligarquia financeira, frustrando as ilusões de grande parte da população norte-americana e mundial. Não é a toa que sua popularidade, apesar de ainda alta, vem caindo. Afinal, Obama não é nenhum líder de movimentos sociais, nenhum Mandela que enfrentou as prisões, mas sim um dirigente do Partido Democrata, completamente associado ao stablishement financeiro e empresarial do país. Se seu governo estivesse realmente preocupado com a manutenção dos empregos e se o Estado é o novo controlador da GM não haveria porque então fechar fábricas e demitir, contrariando as expectativas do próprio UAW, que investiu milhões de dólares dos trabalhadores para elegê-lo contra John McCain. Existiriam outras alternativas para salvar a empresa.
Ao contrário, Obama propõe uma nacionalização pela metade, vai entregar a direção da empresa a uma “equipe de especialistas” de mercado. Está prevista a volta dos investidores privados em 18 meses. No caso da GM e da Chrysler, apostando num sentido oposto à criação de empregos, como fez Roosevelt em 1933, Obama aplica a receita tradicional do capital nas crises, ou seja, o fechamento de fábricas, a redução dos postos de trabalho, dos salários e das conquistas dos trabalhadores. Isso só debilita ainda mais o organismo econômico ao reduzir a demanda agregada. Enquanto isso, o governo já entregou centenas de bilhões de dinheiro público para os mesmos banqueiros e especuladores imorais que criaram a crise, aumentando o déficit público e preparando uma bomba relógio que poderá explodir futuramente sob a forma de inflação.
A crise da GM ainda levanta uma importante questão que é a patente irracionalidade e disfuncionalidade de um modelo de transporte baseado no automóvel. Nos EUA, existem mais de 250 milhões de automóveis para uma população de 310 milhões de habitantes, um quarto da frota mundial. Segundo cientistas, os motores à explosão são a principal fonte de poluição da atmosfera. E a frota mundial de carros pode chegar a 2 bilhões até 2030, ao que deve se somar a frota de motocicletas de igual tamanho, o que pode se transformar em uma catástrofe ambiental.
Assim como as máquinas a vapor no século XIX, que queimavam carvão e consumiram muitas florestas, os automóveis movidos à explosão, estas engenhocas maravilhosas que aceleraram o tempo do mundo, nos serviram muito, nos dão agilidade, a sensação de poder ao apertar um pedal e a emoção de torcer aos domingos pelos bólidos de corrida. Mas é completamente irracional, irresponsável e anti-econômico, por exemplo, utilizar milhões deles para transportar apenas um passageiro na ida e volta ao trabalho, como se observa em cidades como São Paulo, apenas porque as montadoras precisam vender mais carros e a indústria mundial do petróleo precisa remunerar seus acionistas. Hoje os automóveis começam a ser vistos também como máquinas mortíferas para a vida no planeta. A era do carro precisa começar a ser deixada para trás. Muitas cidades européias estão mostrando que a vida é possível sem eles ou apenas com sua utilização restrita.
Por isso, uma das saídas para a GM, sem fechar fábricas e cortar empregos, seria exatamente reconverter grande parte da sua produção para fabricar meios de transporte coletivo não poluidores e equipamentos de geração de energia limpa, como confortáveis ônibus elétricos, metrôs mais modernos, trens-bala, geradores eólicos, painéis solares em grande escala etc. Essa é e proposta levantada, por exemplo, pelo cineasta Michael Moore, em artigo recente. Segundo ele, uma reconversão desse tipo foi possível durante a Segunda Guerra Mundial e a própria GM suspendeu a produção de automóveis, começando a produzir tanques e carros de combate em poucos meses. Esta seria uma alternativa racional para manter os empregos, ao mesmo tempo em que evitar a barbárie ambiental que se avizinha.
Não está claro ainda o grau de impacto que a concordata terá no Brasil, mas seus efeitos serão inevitáveis. Tanto lá como aqui, entretanto, para defender seus empregos, os trabalhadores precisarão ultrapassar os dirigentes corrompidos do UAW e encontrar novas formas de luta.
Por fim, tanto a crise global como a quebra da GM só comprovam mais uma vez a completa irracionalidade e a disfuncionalidade do próprio sistema capitalista em sua busca de lucros a qualquer custo, mesmo que isso signifique destruição de recursos produtivos, desemprego, concentração de renda, miséria para os produtores e a barbárie ambiental nas próximas décadas. A nova crise global do capital está desatando mais uma onda de ataques contra as populações e suas conquistas civilizatórias. Isso deve redobrar os esforços dos socialistas e de toda humanidade pela superação desse sistema e pela construção do socialismo como alternativa, dessa vez com liberdade e humanismo.
Robério Paulino é economista, professor de Economia Política e História Econômica e militante do PSOL.