Por Plinio de Arruda Sampaio
“A crise recoloca para a esquerda socialista a oportunidade de constituir-se numa referência para a classe trabalhadora”
Embora ainda não haja elementos suficientes para prever com rigor o quadro político de 2010, já existem indícios de que a esquerda poderá ter melhores condições de atuação do que nos anos anteriores.
Tudo dependerá, evidentemente, da evolução da crise econômica mundial. Até o momento o impacto dessa crise ainda não tensionou o sistema a ponto de provocar uma reação generalizada e radical contra as políticas do governo. Até agora, o quadro continua sendo o de uma “pneumonia sem febre”, que atinge desigualmente os diferentes setores da massa e dificulta uma unificação das reações aos seus impactos. Se continuar assim por muito tempo é difícil prever um movimento de retomada mais vigorosa da luta de classes.
É obvio, contudo, que se a crise agravar-se bastante – o que alguns economistas prevêem que ocorrerá ainda em 2009 – o humor das massas alterar-se-á e poderá configurar-se uma situação de grande tensão social.
Um cenário deste tipo permite a formulação de duas hipóteses a respeito da conduta da massa popular.
A primeira seria uma forte reação – por exemplo, uma greve geral exitosa, no segundo semestre de 2009 – o que criaria, sem dúvida, um quadro político inteiramente novo e promissor para a rearticulação do movimento popular.
O ator privilegiado desse tipo de processo seriam as organizações populares, mediante pressão direta sobre o sistema político (ocupações de terras, ocupações de fábricas, grandes marchas etc.)
Nesta hipótese de confronto direto entre Estado burguês e massas populares sublevadas, a esquerda dificilmente escapará da resposta caótica e desorganizada que deu em circunstâncias similares, em 1954, 1964 e até certo ponto em 1984 (depois que o centro abandou a aliança com as massas populares e aliou-se com a direita para impor a “Aliança Democrática”), porque até hoje não se fez um esforço sistemático para examinar a tática adequada de resposta a esse tipo de situação.
Irrupções de massas não seguidas por uma tática adequada de tomada do poder, tanto aqui como na América Latina, não têm fôlego para transformar a perda de governabilidade da burguesia em uma nova estrutura de poder. Em muitos casos os regimes que conseguiram restabelecer a ordem e tornaram-se ainda mais repressivos do que o anterior.
Daí a necessidade de começar a estudar a tática a seguir se um quadro deste tipo vier a se formar e a direita puser em prática o “kit” habitual de repressão do povo: controle militar dos setores populares da cidade; prisão das lideranças; repressão violenta dos grupos de agitadores.
A segunda hipótese parte do mesmo pressuposto de mudança de humor das grandes massas populares, porém não a ponto de provocar um clima de perda de governabilidade. Caso a situação evolua nessa direção, surgirá uma condição relativamente favorável para uma participação mais efetiva dos partidos de esquerda na disputa eleitoral. Nada espetacular, certamente, mas pelo menos o suficiente para ampliar um pouco a base de massas dessas organizações.
Cenários para 2010
Também nesta segunda hipótese, é preciso igualmente formular desde já uma tática adequada, a fim de não perder as vantagens que a situação oferecerá:
a) A eleição de 2010 será bem diferente das anteriores. Para começar, dificilmente Lula será candidato e ele não mostrou ter capacidade de transferir votos.
b) Em 2010, os efeitos da crise econômica estarão certamente golpeando mais a população. Não há elementos suficientes para dizer quão forte será esse golpe, mas se as dificuldades dos primeiros meses de crise foram suficientes para tirar cinco pontos da aprovação de Lula, parece razoável supor que por ocasião do pleito, o governo e o PT estarão mais desgastados do que hoje.
c) Em 2010, o questionamento da política neoliberal – já presente nos arraiais da própria direita – estará bastante adiantado, preparando a opinião pública para escutar questionamentos a respeito do próprio sistema capitalista. Até altos figurões do epicentro do capitalismo, como Pascal Lamy, por exemplo, já estão falando na necessidade de “ir além do capitalismo”.
Este cenário, bastante provável, permite formular duas hipóteses de evolução da crise, em 2009 e 2010.
A primeira seria a de um grande descontrole dos partidos do sistema, o que abriria espaço para um debate de alternativas – ou seja para um debate ideológico.
Há bons elementos para supor que a esquerda poderá ter melhores condições para participar desse debate, se for capaz de superar os obstáculos que estão atualmente entorpecendo sua ação.
Obviamente não se está falando de vitória eleitoral. O que se deve ter em mente – sem maiores ilusões também quanto à magnitude – é avanço político. Nas condições concretas da realidade do país, o objetivo da participação no processo eleitoral não pode ir além de atingir, com uma clara proposta de ruptura socialista, as centenas de milhares de pessoas que, por estarem indignadas com a crise e com a forma pela qual o governo e a direita atuam, estão psicologicamente propensas a ouvir um discurso radical.
O objetivo consiste, portanto, em fazer uma campanha que consiga enviar mensagens a este eleitorado específico, a fim de criar uma base de massa para o trabalho de nucleação, organização, formação e mobilização política nos próximos anos ou décadas.
Para compreender melhor esta idéia, pode-se invocar o diálogo estabelecido entre o líder revolucionário e o soldado que o levava para o cadafalso no filme Queimada, do grande Pontecorvo. Quando o soldado propôs-lhe a fuga, o líder recusou-a com um longo discurso a respeito da necessidade da sua morte para o êxito da revolução. Ao fim do discurso, ante o olhar perplexo do soldado, o líder perguntou-lhe: “você não entendeu nada, não é?” E logo completou: “Não importa. Hoje você não entende, mas, amanhã, vai entender, porque, a partir de agora, vai começar a pensar nisso”.
Tudo na campanha da esquerda em 2010 deverá estar voltado para o objetivo de levantar a curiosidade intelectual de uma parcela do eleitorado – os indignados – para a possibilidade e a estratégia da ruptura socialista.
A tática e o discurso
A primeira condição para atingir esse objetivo é a unificação da esquerda – partidos e movimentos populares – em torno de uma única candidatura.
O discurso da ruptura com o capitalismo é de difícil compreensão por um eleitorado politicamente despreparado como o nosso. Três ou quatro discursos de esquerda sobre essa matéria serão certamente demais para a cabeça desses possíveis eleitores, sobretudo porque a competição pelo pequeno eleitorado da esquerda levará os candidatos a refinar, sofisticar e exagerar as diferenças entre suas propostas.
Portanto, se prevalecer no equacionamento do processo eleitoral de 2010 o espírito de competição entre os partidos de esquerda – uma competição pelo raquítico voto socialista – podemos acrescentar mais alguns anos, e talvez mais algumas décadas, aos anos e décadas que a esquerda necessitará para voltar a figurar novamente na agenda política do país.
PSOL, PSTU, PCB e outras legendas menores precisam marchar com uma chapa única, claramente apoiada pelo MST, pelas centrais sindicais de esquerda, pelas Pastorais Sociais e movimentos populares autênticos.
Isto será uma novidade, porque até agora o apoio dessas organizações a candidatos de sua preferência sempre existiu, embora não de maneira explícita. A exigência do momento é a coragem de tomar posição pública, a fim de adquirir credibilidade junto à massa.
O agravamento da crise ajudará esse movimento unitário, do mesmo modo que a luta contra a ditadura militar, nos anos 1980, favoreceu a formação da grande frente pela restauração da ordem institucional. Mas que ninguém se iluda: as condições criadas por aquela conjuntura não teriam sido aproveitadas se, no centro e na esquerda, não tivesse havido, no início dos 1980, lideranças capazes de compor diferenças em torno do objetivo comum. Do mesmo modo, hoje a palavra está com as direções dos partidos socialistas e dos movimentos populares autênticos. Deles se espera uma atitude aberta, generosa, ousada e imaginativa.Se isto faltar, o povo terá de esperar mais tempo para ter a sua chance na história do país.
Plataforma para a unidade
A busca da unidade passa necessariamente pelo acordo em torno da plataforma eleitoral. Na verdade, ela será construída no diálogo requerido para sua formulação.
Formular uma plataforma para a eleição de 2010 não consiste em cair na armadilha de produzir um programa “viável” de políticas públicas, destinado a ser comparado, quantitativamente e qualitativamente com os programas das candidaturas do establishment burguês (por exemplo: “Nosso programa de segurança pública inclui mais postes de iluminação e lâmpadas de magnésio do que os programas de nossos adversários”).
O conteúdo da nossa plataforma deverá limitar-se a umas poucas medidas eficazes para enfrentar a crise, a partir da defesa da economia popular e da autonomia do país.
Não nos deve importar nem um pouco se essas medidas forem consideradas “inviáveis” pelos porta-vozes da direita. O único elemento que deve nos importar é a demonstração da eficácia das medidas propostas para impedir que a crise devaste a população pobre; destrua ainda mais o meio ambiente; reduza mais ainda a soberania da nação.
Para satisfazer esses requisitos, a plataforma de esquerda terá de ser um conjunto coerente de medidas fundadas numa lógica distinta da lógica do mercado capitalista. Trata-se de mostrar que essas medidas se ajustam às reais possibilidades do país (seus recursos naturais e o grau de desenvolvimento de suas forças produtivas, que são dados objetivos perfeitamente quantificáveis) e de deixar também muito claro que elas significam sacrifícios para todos.
Mas a plataforma deverá esclarecer que esses sacrifícios serão repartidos desigualmente, o que significará melhoria do padrão de vida dos mais pobres e restrição do padrão consumista e socialmente injustificável dos estratos superiores da pirâmide de rendas.
Isto precisa ser claramente explicado às massas populares, mas não à direita. Dar explicações à direita é tudo o que a esquerda não tem que fazer. Seu interlocutor são os “indignados”. Eles é que precisam receber a mensagem.
Em um primeiro momento nem todos a entenderão, até porque a mídia da direita voltará seu poderoso aparelho de difusão para atacá-la e distorcê-la, a qualquer custo. Isto igualmente não importa. O que, sim, importa é fazer a mensagem chegar aos “indignados”, porque se isto acontecer, dar-se-á com eles o mesmo processo ao qual o líder revolucionário aludiu no diálogo com o soldado no filme de Pontecorvo.
Uma plataforma de solução real dos problemas criados pela crise mundial consiste, no fundo, em articular medidas como controle estatal do câmbio, estatização do sistema bancário, reforma agrária radical, reforma urbana e outras poucas medidas do mesmo teor, em um todo coerente e ajustado às possibilidades reais do país.
Acertada a plataforma será a hora de construir a chapa da disputa presidencial. O critério básico da escolha deverá ser a capacidade dos escolhidos de levar o debate eleitoral para a discussão ideológica, sem cair no discurso doutrinarista, distante dos problemas reais da nação e nem na armadilha do discurso administrativo “viável”, voltado para a comparação entre políticas públicas específicas – armadilha na qual se enroscaram muitos candidatos da esquerda nas últimas eleições municipais.
Outro critério importante é o lugar do discurso moralizante no contexto das falas dos candidatos. Denunciar escândalos dá votos, mas tem pouco efeito de politização das massas populares, e o objetivo da campanha – politizar um pequeno segmento da massa – não pode ser obscurecido pelo discurso fácil de imprecar contra a imoralidade dos governos da direita.
Finalmente, os candidatos precisam estar dispostos a enfrentar as “divididas”: as espinhosas questões relativas às relações de gênero; opções sexuais; pesquisas de ponta; integração racial; sistema prisional; democratização dos sistemas de educação da juventude e de saúde.
Resta a questão das alianças eleitorais. Alianças entre forças distintas e até antagônicas podem ser feitas, e foram feitas muitas vezes na história do socialismo. Nesta delicada matéria tudo depende da conjuntura. Na atual conjuntura, não parece haver vantagem alguma para o avanço da esquerda na realização de alianças com forças ou figuras políticas das classes dominantes ou da classe média.
A tática eleitoral da esquerda – porque é precisamente disto que este texto está tratando – não se esgota no dia da eleição. Se o objetivo aqui delineado tiver sido atingido (total ou parcialmente) estará aberta uma ampla avenida para o trabalho político de longo prazo: a acumulação de forças para a ruptura socialista. Por isso, a tática eleitoral precisa contar com um apêndice, especificando claramente o modo de verificar em que medida o objetivo da campanha foi atingido, e estabelecendo, detalhadamente, os passos a serem dados em função dessa avaliação.
*Advogado, membro do Diretório Nacional do PSOL e diretor do Correio da Cidadania
Fonte: Revista Debate Socialista, número 05, maio de 2009.