Marco Aurélio Nogueira – 1999
Vivemos há um bom tempo pautados pelas reformas. Elas, por assim dizer, nos sufocam e não saem de cena. Mas, a despeito dos esforços, da movimentação intensa em nome delas, das declarações e dos compromissos oficiais, a agenda reformadora continua congestionada. Não se registram avanços substantivos. O Estado brasileiro é hoje bem diverso do que foi até os anos 80, sobretudo graças aos seguidos programas de privatização e enxugamento administrativo postos em prática pelos últimos governos nacionais. Apesar disso, não temos hoje no país um Estado melhor, mais bem estruturado ou mais competente. Somos convidados o tempo todo, pelo discurso dominante, a ver o Estado como algo «externo» à sociedade, um simples agente de controle, proteção e regulação do mercado. Falta política em nosso debate sobre o Estado, que não é tratado nem como instrumento de dominação, a expressar uma dada correlação de forças, nem como um desdobramento vivo da sociedade, espaço no qual se condensam interesses e relações sociais, nem, muito menos, como elemento de realização de determinadas aspirações e apostas comunitárias. Entre nós, o Estado tem sido tratado como um agente entre outros, quase sempre como um instrumento «negativo», cujas proporções «exageradas» e cuja ineficácia crônica pesariam como um castigo sobre a sociedade, os indivíduos, o livre mercado. Banalizado, rebaixado e invariavelmente maltratado, o Estado não consegue ver sua reforma avançar.
Este empobrecimento da questão do Estado — esta conversão economicista do Estado — não surgiu do acaso nem é simples artifício posto em prática pelos que dominam a cena política atual. É isso também, mas é sobretudo um produto histórico, imposto, se quisermos ir longe, pela forma mesma como fomos projetados para o mundo, isto é, pela colonização e pela particular política de ocupação do território colocada em prática pela Coroa portuguesa. Para os colonos que depois se tornaram senhores de terras e escravos, oligarcas poderosos, coronéis controladores, monarquistas pouco convictos e republicanos de meia pataca, não interessava ver o Estado pelo seu lado «nobre»; era preciso pintá-lo como um entrave ou tentar moldá-lo como instrumento passivo e apequenado de determinados interesses. Em meio a hiatos e períodos de exceção (quase todos, desgraçadamente, autoritários, como o da Era Vargas ou o do ciclo militar), este produto foi-se recriando entre nós, embaralhando ainda mais as já confusas relações entre o público e o privado. Chega, por saltos e solavancos, aos dias de hoje, impulsionado seja por certas características da redemocratização dos anos 80 e 90, seja pela modernização do país (aquilo que já foi chamado de nossa adesão a um tipo «selvagem» de expansão capitalista), particularmente no que essa modernização contém de vínculo e ligação com a «globalização», com a mercantilização geral da vida, da cultura e da política. Até mesmo por conta desse fato, não temos como entender o problema do Estado, compreender suas múltiplas dimensões e desarmar o seu rebaixamento atual.
A visão reducionista que cerca o debate sobre o Estado trava e inviabiliza a reforma, na medida mesma em que tende a apresentá-la como uma questão de custos e dimensões. Nessa operação, o serviço público é entendido como um acessório da política econômica e o Estado como um obstáculo para o progresso, quer dizer, para a modernização típica deste fim-de-século, que, como sabemos, não compartilha qualquer idéia generosa (mais «clássica», digamos assim) a respeito do que seja progresso, quase sempre o reduzindo também a avanço tecnológico, a oferta abundante de bens descartáveis ou a meras sofisticações organizacionais. Em conseqüência, generaliza-se a opinião de que, quanto menor for o Estado e quanto menos investido de poderes e atribuições estiver ele, melhor para a sociedade. O Estado converte-se, assim, em uma espécie de refém do mercado e do cálculo financeiro; algo, em suma, vazio de densidade e nobreza, desligado da sociedade que o gera e o determina.
Com isso, não se debatem os aspectos mais substantivos, referidos ao sentido e à natureza da comunidade política estruturada no Brasil. Não pode surpreender, portanto, que os temas propriamente políticos da reforma não consigam impor-se à discussão. Ficam à margem, represados, reaparecendo, de tempos em tempos, de modo simplificado e casuístico. Foi o que ocorreu, por exemplo, em março passado, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que as reformas políticas haviam se tornado prioridade do governo. Declarando repentinamente estar disposto a brigar por elas mas, ao mesmo tempo, apresentando-as como coisa rotineira, fácil de ser resolvida, o presidente não só hostilizou o Congresso, como rebaixou a qualidade da discussão, permitindo que se concluísse que, para ele, a reforma só interessaria na medida em que poderia vir a facilitar a «governabilidade», ou seja, a disciplinar o Congresso (através, por exemplo, do recurso à fidelidade partidária) e submetê-lo ao comando do Poder Executivo. Na outra ponta, quer dizer, de um modo não casuístico, mantém-se ativo um discurso reformador eminentemente «técnico», dedicado a desenhar soluções institucionais engenhosas, quase todas aprisionadas àquela frieza formal típica do raciocínio por «modelos» — um discurso que em nada ajuda a politizar a discussão e que mais confunde que esclarece. De uma forma ou de outra, permanecemos longe política: em um debate despolitizado
Isso para não falar das proposições referentes à chamada «reforma administrativa», que invariavelmente cedem ao discurso «contábil», penalizam recursos humanos e institucionais, entregando-se à lógica «gerencial» do setor privado, numa clara demonstração de que, também aqui, estamos fortemente amarrados à prevalência do mercado sobre o Estado: o economicismo que contamina a cultura da época traduz-se, na área da administração pública, em valorização muitas vezes apressada das técnicas, das «tecnologias» e dos procedimentos pensados pelo mundo empresarial, vistos como expressão pura do que há de mais moderno e bem acabado e, por isso, passíveis de serem transferidos para as organizações do setor público.
É evidente que estamos em meio a uma batalha pelo Estado. Ela tem a ver não tanto com o «custo» do Estado, mas com as idéias e os projetos a respeito do modo como desejamos viver. Não se trata portanto do Estado, mas da sociedade: dos interesses que nela prevalecerão, da organização institucional e da cidadania que deverão nela vigorar, do padrão de desenvolvimento, justiça social, distribuição de renda e inclusão no qual viveremos. Por isso, qualquer reforma digna do nome não pode ser pensada em função dos recursos que os governos deixarão de gastar, mas da capacidade que tiver de conceber uma nova sociedade e se vincular aos destinos da população, à defesa de seus direitos, à promoção de seu bem-estar. Isso quer dizer que a reforma do Estado é o prolongamento de uma reforma democrática e social, pois se destina a reformular as relações entre o Estado e a sociedade civil. Só pode frutificar se chegar a se combinar com uma iniciativa voltada para repor o sentido da política e recuperar os vínculos entre as instituições, os indivíduos e os grupos. Sua meta, afinal, é o revigoramento das possibilidades de que, entre os cidadãos, estabeleçam-se relações superiores de reciprocidade que não só garantam direitos adquiridos e reconhecidos com também propiciem novas oportunidades de justiça social, de representação política e de democracia. Isto tudo, no fundo, nada mais é que o reconhecimento de que o Estado continua a ser, agora em novas circunstâncias e com outra envergadura, o ambiente no qual se celebra o “contrato social”.
O tema do Estado e da sua reforma deveria estar no
centro das preocupações nacionais. Não pode ser visto como mero item de um programa de governo, mas como algo revestido do mais elevado e autêntico interesse público. As oposições democráticas e de esquerda, nesse particular, têm uma importante função a cumprir, pois a elas cabe não só examinar e questionar a pauta oficial mas propor uma pauta alternativa, mais generosa e mais contundente. A elas cabe, também, fazer com que o debate chegue às bases da sociedade e empolgue a população.
É insensato achar que o tema do Estado e da sua reforma possa ser monopolizado pelo governo, pelo discurso oficial, por técnicos e cientistas ou por uma forma qualquer de «pensamento único». É igualmente insensato pensar que possa ser mantido à margem, represado, entregue ao manuseio e ao monitoramento de quem quer que seja. Mais do que qualquer outro, ele está no coração mesmo da democracia e da sociedade civil, e manter-se-á vivo e «fora do controle» enquanto existir movimentação anti-sistêmica e oposição ao modo de vida que se consolidou neste final de século.
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Marco Aurélio Nogueira é professor de Teoria Política da Unesp/Araraquara e pesquisador da Fundap.
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.