Sr. Presidente, sras e srs deputados,
Neste dia 13 de maio, completam-se 121 anos da assinatura da Abolição da Escravatura. É preciso afirmar, entretanto, que tal ato pouco significou para os milhões de afrodescendentes que habitavam nosso país em 1888. Em 1905, por exemplo, quando se comemoravam 17 anos da assinatura da Lei Áurea, o famoso jornalista carioca João do Rio entrevistou um africano liberto, alufá, chamado Júlio Ganan. O africano era um dos muitos que já eram alforriados quando da assinatura da Lei Áurea. Na conversa com o jornalista, Julio Ganan fez questão de ressaltar: “Africano tem resistência, menino, africano pagou seu corpo. Eu juntei, vintém a vintém, um conto e oitocentos para me comprar”.
Pronunciamento do deputado Ivan Valente no plenário da Câmara – 12/05/09
A Lei Áurea, portanto, de nada havia válido para Ganan, assim como para a maioria dos milhões de africanos e seus descendentes que viviam no Brasil. Por isso, quando o movimento negro diz que o 13 de Maio pouco significa para os afrodescendentes, está continuando a luta de seus antepassados, que diziam isso desde a assinatura da lei. Faço minhas então as palavras de Julio Ganan: aquela data não significou nada para os africanos. Antes de ser uma atitude do Estado para iniciar o processo de inclusão dos afrodescendentes como cidadãos de nossa sociedade, a Lei Áurea era, pelo contrário, a cartada final da classe dominante para incluir o Brasil no sistema capitalista, mantendo a mesma matriz econômica colonial de monocultura que nos relega até hoje ao cenário de periferia do sistema.
Por isso, srs Deputados, após a assinatura da lei o Estado Brasileiro não tomou nenhuma atitude que resgatasse a dívida histórica com o povo negro. Muito pelo contrário, iniciou-se o processo de legar aos afrodescentes o pior degrau da escada capitalista. O racismo se juntou ao capitalismo, como irmãos siameses, na formação da República brasileira. As elites do novo regime, instalado em 1889, empenharam-se no processo de “embranquecimento” da população brasileira a partir da onda imigrantista. O racismo do colonialismo encontra, na sociedade de classe à brasileira, um fundamento “científico” em teorias européias que hegemonizaram as academias e universidades do país, em finais do século XIX até 1930. De acordo com as elites republicanas, “embranquecer” a nação era modernizá-la, ou seja, varrer a “mancha negra” que emperrava o desenvolvimento nacional.
A necessidade da formação e regulamentação de um mercado de trabalho em nosso país também concentrou todo o aparato de repressão do Estado, assim como dos aparelhos ideológicos, em torno da marginalização do povo negro. Uma nação que se formava e aspirava ares de “europeidade” deveria punir com a prisão, degredo e morte os negros “vagabundos”, “cachaceiros”, “macumbeiros” e “capoeiras” que punham em risco a consolidação do modo de vida burguês nos trópicos. Desta maneira, o Estado se desobrigou a reparar os séculos de escravidão e racismo contra os negros e os povos originários, assim como rearticulou na formação de nossa sociedade de classes o modus operandi do racismo colonialista – chamado pelo movimento negro de racismo institucional.
Em termos gerais, três foram as instituições consagradas pelo Estado para o controle social de negros e africanos: o gueto (favela, cortiço, alagado, palafita, subúrbio ou periferia), a prisão e o extermínio. Em conjunturas de crise do sistema capitalista vemos um aumento dos processos de favelização, encarceramento e extermínio do povo negro como instrumento de garantia da reprodução do sistema capitalista dominante.
Historicamente, a incidência da questão racial em nossa formação de classe pode ser compreendida a partir de dois aspectos. O primeiro é a comparação das desigualdades raciais entre as diferentes as décadas, de 1940 até hoje. Ali se percebe pouca alteração em torno da mobilidade social ascendente dos não-brancos. Ou seja, o processo de modernização e industrialização do país não alterou a posição dos não-brancos na estrutura social.
O segundo aspecto diz respeito à posição dos não-brancos (negros e pardos) no mercado laboral. Nos setores da economia com piores condições de trabalho, negros e pardos estão sobre-representados (na agricultura, 60,3%; na construção civil, 57,9% e nos serviços domésticos, 59,1%). Estes índices permanecem inalterados quando se trata de trabalhadores não remunerados (55%) e assalariados sem carteira (55,4%). Dentro da estrutura de trabalho, os negros alocam-ese em posições classificadas como de baixo nível (com atribuições simples, que exigem pouca capacitação e que se caracterizam pela subordinação dentro das instituições – 54,4% dos trabalhadores são negros), bem como em meio às ocupações militares (51,1%). Por sua vez, o grupo branco situa-se nas ocupações de alto escalão (73,5% dos trabalhadores são brancos), de nível superior (72,3%), de nível médio (60,3%) e administrativas (62,1%). Em média, os trabalhadores negros recebem R$ 578,24 ao mês – valor que corresponde a apenas 53,2% do recebido pelos brancos, ou seja, R$ 1.087,14.
Como se percebe, Sr. Presidente, quem está em crise é o capitalismo, pois a população afrodescendente brasileira sempre esteve em crise dentro deste sistema! Por isso, o Estado Brasileiro deve avançar no rumo de pagar a dívida histórica com os afrodescendentes. Essa é a maior dívida social de nossa República!
Neste sentido, é urgente e necessário aprovar o Estatuto de Igualdade Racial, que está emperrado no Senado pelo DEM, e o projeto das cotas nas universidade públicas federais, que sofre agora mais um brutal ataque das elites brasileiras através da grande imprensa. É necessário frisar, no entanto, que essas leis são apenas uma forma de o Estado começar a pagar sua dívida histórica para com o povo negro. Elas não acabarão com o racismo, muito menos com o capitalismo. Para tal, teremos que acabar com o estado burguês e com o racismo que o estrutura. Só assim acabaremos com a desigualdade entre brancos e não-brancos em nosso país.
Termino, sras e srs Deputados, dizendo que espero que, a partir de hoje, façamos como o jornalista João do Rio. Ele ficou tão impressionado com aquela conversa que teve com o alufá Julio Ganan que a registrou no jornal Gazeta do Rio com um título bastante sugestivo: Negros ricos. Podemos dizer que naquela tarde de 13 de maio o branco aprendeu muito com o africano. Esperamos que nós, brancos desse congresso, também possamos aprender com os afrodescendentes deste país.
Muito obrigado.
Deputado federal Ivan Valente – PSOL/SP