Escrito por Max Gimenes
O ano de 2009 começou de modo atípico. Com o estouro da bolha imobiliária estadunidense no segundo semestre de 2008, deflagrou-se a crise financeira, que mais tarde atingiria também a economia real, sendo considerada a mais grave desde a que eclodiu em 1929. Todos os países, sem exceção, estão sujeitos a pagar caro durante pelo menos este ano e o próximo pela irresponsabilidade da desregulamentação e especulação financeiras. Presidentes buscam combater a crise, implementando medidas de seu ideário, para ao menos atenuar os efeitos dela junto a suas bases de sustentação política.
Na Venezuela, não seria diferente. Não é de hoje que Hugo Chávez afirma estar construindo em seu país o que chama de “socialismo do século XXI”. A oposição, venezuelana ou não, nunca levou esse projeto muito a sério, acreditando na tese de que o atual período não passaria de uma aventura e que o país logo voltaria à normalidade. Ou seja, ao bom e velho neoliberalismo. A crise, no entanto, abalou tal vertente há muito dominante, a do famigerado “pensamento único”. E, sem querer, abriu novas perspectivas para a esquerda em todo o mundo, a despeito do despreparo que esta tem demonstrado até o presente momento para aproveitar essas oportunidades.
Hugo Chávez, entretanto, foi perspicaz e começou o ano dando prosseguimento a uma agenda nacionalizante na Venezuela. O episódio mais recente foi a ocupação e o anúncio da expropriação da multinacional estadunidense produtora de macarrão Cargill, acusada de descumprir a cota de produção com preço tabelado. Os “especialistas” consultados, liberais nada moderados em sua maioria, atacaram a política chavista de aumento da presença estatal na economia. Eles ainda são do tempo em que a orientação usual apontava para o enxugamento do papel do Estado e para a liberdade total ao setor privado. Deu no que deu, mas a mídia canarinho pouco aprendeu.
O tabelamento de preços existe na Venezuela devido à sua inflação, de cerca de 30% em 2008, a maior da América Latina. A inflação, de modo breve, significa uma alta substancial e continuada no nível geral dos preços, concomitante com a queda do poder aquisitivo do dinheiro. Segundo a explicação liberal, num mercado em que há livre concorrência a inflação existe quando a procura supera a oferta. É a chamada inflação de demanda. Admitamos, a princípio, a validade do pressuposto, deixando momentaneamente de lado a existência dos monopólios.
Para combater a inflação, seria preciso intervir em um dos lados da balança, a fim de restabelecer o equilíbrio entre procura e oferta. Historicamente, governos alinhados ao ideário neoliberal buscaram conter a demanda, implementando a chamada política de metas de inflação, em que crescimento econômico, empregos e salários são sistematicamente sacrificados e reduzidos para domar a inflação dentro da cerca que circunda o centro da meta.
Uma alternativa a isso seria aumentar a oferta, com investimentos em infra-estrutura para a ampliação da chamada capacidade instalada. Assim, seria possível atender à demanda e ainda permitir a abertura de mais vagas de emprego, criando um círculo virtuoso de crescimento econômico capaz de permitir o combate à pobreza e a promoção de justiça social. Um governo socialista, ainda que sob o capitalismo, pode ser caracterizado justamente por esses objetivos: a construção de uma sociedade sem classes, em que não exista pobreza e desigualdade. Nela, os investimentos e a produção estariam a serviço do povo para atender a suas necessidades. Diferentemente do capitalismo, sistema em que os investimentos e a produção estão a serviço da busca pelo lucro, ainda que à custa de um enorme prejuízo social.
Se um governo promove melhoria nas condições de vida de sua população, principalmente nas daquela parcela com pior situação, a procura por produtos no mercado aumenta, notadamente por produtos de primeira necessidade, como comida. Porém, ao mesmo tempo em que a procura aumenta, a oferta estaciona. Os investimentos capitalistas, orientados pela busca de lucro e não pela satisfação das necessidades das pessoas, diminuem. A possibilidade de lucros exorbitantes é ameaçada, logo o capitalista não se arrisca a investir. É coerente que não o faça e esperar o contrário é por demais ingênuo. Sem contar, é claro, o boicote ou sabotagem promovido por uma parcela do empresariado que simplesmente não admite ver seus interesses serem contrariados.
Havíamos deixado de lado até aqui a questão do monopólio. Vamos a ela. Acontece que, no fim do século XIX, após um processo de concentração e centralização do capital, deu-se uma mudança importante no caráter do capitalismo, que passou da livre concorrência para o regime de monopólio, cujo objetivo não é apenas o lucro, mas o lucro máximo (uma vez que ele tem o poder de determinar o preço de mercado das mercadorias). Essa nova qualidade do sistema, que tende a acirrar suas contradições internas, desembocou na crise de 1929. E pariu o que hoje chamamos de capital financeiro (fusão do monopólio industrial e bancário, sob o controle deste último, segundo o economista Rudolf Hilferding), que se consagrou com a busca incessante por lucratividade a partir da década de 1970, passado o incêndio apagado pelo Estado. Daí por diante, deu-se o fenômeno da financeirização da economia.
Deduz-se do que foi apresentado até aqui que, para combater a inflação neste momento de crise e rumar ao socialismo, a Venezuela não tem outra saída a não ser a de estatizar ao menos os setores estratégicos de sua economia no curto e médio prazos. Apesar de todo o ataque da mídia, as nacionalizações de Hugo Chávez são absolutamente coerentes e mostram a sua real disposição de cumprir as promessas que fez, concordemos com elas ou não, situação com a qual brasileiros certamente não estão acostumados. É também oportuno lembrar que o tal capital financeiro incorporou meios de comunicação. Ou seja, a imprensa que brada contra nacionalizações não o faz senão para salvaguardar seus próprios interesses, travestindo-os de interesses do conjunto da sociedade.
Tratar uma questão tão séria com zombarias como a presente na expressão “macarronada bolivariana”, termo cunhado em matéria do jornal Folha de S. Paulo (o mesmo que criou a “ditabranda”), não contribui para o debate. O tempo de caça aos comunistas acabou, mas isso não significa que o sonho marxista tenha seguido o mesmo destino. A questão, fosse levada a sério, teria de ser tratada de modo mais claro e objetivo. Estatização não é fim, é meio. Para quê? Para assegurar, no caso, cimento a quem quer construir seu teto e alimentos a quem deseja saciar sua fome. E tudo isso a preços justos. É democratização, e não o contrário, como insinuam alguns pretensos paladinos das liberdades individuais.
A acepção de “macarronada bolivariana”, portanto, pode ser entendida unicamente como aquela que chega ao prato de todos, sem distinção de classe, cor, orientação sexual etc. Terrível assim. Ainda que tentem embaralhar os papéis e torcer a realidade para que o exemplo não seja seguido, não podem frear as transformações que de fato vêm ocorrendo em nosso continente, cansado de promessas vãs que não enchem barriga.
Max Gimenes é estudante de Ciências Sociais.
Artigo originalmente publicado no Correio da Cidadania