O FSM 2009 que se realizou em Belém do Pará, porta de entrada para a Amazônia Brasileira, representou uma grande experiência sócio-ambiental para o altermundialismo. O encontro com movimentos de povos indígenas da Amazônia, dos Andes e de todo o continente, de ribeirinhos, quilombolas e extrativistas, foi, nesta escala e como diálogo político entre semelhantes, inédito para a esquerda brasileira e internacional.
Os movimentos indígenas apresentaram para o debate elementos articulados de uma proposta alternativa para a sociedade, distinta do insaciável mundo capitalista em crise – produtivista, industrialista e consumista – e também de seu marco político, o estado nacional. Sustentaram a proposta de um mundo descolonizado, baseado em justiça ambiental, bens comuns e no bem viver, articulado a partir de direitos coletivos em estados plurinacionais. E começaram a construir uma aliança estratégica com o movimento global por justiça climática e com a nascente coalizão de povos sem estado. O diálogo aberto pelos movimentos da Panamazônia e da região andina com um vasto leque de atores sociais e políticos no plano continental e mundial pode ser crucial para reconstruir um marco estratégico de luta por uma integração regional alternativa e pela transformação social frente a um capitalismo em crise e um planeta que caminha para o colapso ambiental.
Mas nada disso foi destacado pela imprensa ou valorizado por alguns dos que compareceram ao FSM 2009. Terminado o evento abriu-se uma disputa pela sua “interpretação”, que está se dando sob a forma de “avaliações” do Fórum.
A crítica mais contundente não veio, desta vez, da direita, já que os porta-vozes de Davos estão desmoralizados pela crise global. O discurso buscando a desconstrução do FSM está partindo agora principalmente das forças da esquerda institucionalizada ligadas a alguns governos do continente. Aí se somam posições incomodadas seja com o tom geral das atividades deste Fórum, fortemente crítico à administração Lula – por seu compromisso com o capitalismo globalizado, que emergiu claramente nos debates sobre a Amazônia e o “modelo de desenvolvimento” –, seja com as críticas de movimentos sociais indígenas aos limites de outros governos da região com posições mais à esquerda – como a dos indígenas equatorianos que combatem a lei mineira proposta pelo governo Correa.
O desconforto se expressa em discursos que dizem ser o Fórum um desperdício de
energia, pelo que consideram uma rejeição da política pelo social (como se eles pudessem ser contrapostos nos projetos de transformação da sociedade), a negação do que vêem como radicalidade política (que seria privilégio dos governos ou partidos de esquerda) ou o protagonismo das ONGs oposto ao dos movimentos sociais (fazendo vistas grossas às clivagens políticas que perpassam as duas formas de organização). Como caricaturas, estes “balanços” já estavam previamente escritos e são agora publicados em uma operação de “copia e cola”, sem qualquer exame detido do que se passou em cerca de duas mil atividades realizadas no FSM (comparece-se, por exemplo, o que escreveu Emir Sader em 2006 e o que reescreve agora, praticamente com as mesmas palavras). Na mesma direção, e como era de se esperar, a grande mídia cobriu o Fórum essencialmente como o encontro entre chefes de estado latino-americanos de esquerda.
Mas este é um aspecto acessório ao evento. Constituiram-se, na última década, vários “fóruns” para encontros e confrontações entre movimentos e governos, em reuniões de cúpulas e contra-cúpulas. Mas só o FSM se destina a compartilhar experiências, construir alianças, organizar campanhas e estimular a reflexão estratégica de entidades e movimentos da sociedade civil. Sem o reforço e a defesa da autonomia destas organizações, parece evidente que qualquer força política progressista que alcance um governo permanecerá refém dos que detém o poder econômico e não será capaz de fazer jus a seus compromissos de mudança social.
Mas nenhuma das críticas formuladas parece relevante quando examinamos as atividades estruturantes do FSM 2009. Nelas – e principalmente nas que convergiram em assembléias no dia 1º de fevereiro ou em sínteses políticas – encontramos uma rearticulação importante de iniciativas de mobilizações e lutas globais e, antes de tudo, uma reflexão inovadora na mais grave conjuntura desde a Segunda Guerra Mundial, uma elaboração que propõe uma perspectiva radical para aqueles com abertura para o novo e capacidade de escuta. O FSM 2009 em Belém poderá, para os que buscam novos caminhos para a esquerda, passar para a história como o mais importante evento na trajetória do processo.
O Fórum, os ciclos de luta e as mobilizações para 2009-2010
Belém consolidou, através de uma nova metodologia (Assembléias de convergências temáticas e a Assembléia das Assembléias – ao final sistematizada pela reunião do Conselho Internacional do dia 2 de fevereiro), um calendário bastante integrado e consensual de mobilizações globais para 2009-2010 – onde tem destaque a solidariedade com a Palestina e as mobilizações contra o G20 (28 de março a 4 de abril), em defesa da Terra (12 de outubro) e por justiça climática contra o que se desenha nos acordos de Copanhagem (12 de dezembro). Este calendário será agora testado pelos movimentos, organizações e entidades do “mundo FSM” no seu diálogo com o conjunto dos movimentos e a sociedade civil global, em um processo que pode permitir retomarmos uma iniciativa análoga à vaga de mobilizações globais de 1999 (Seattle) à 2003 (protesto contra a invasão do Iraque).
Em suas primeiras edições, o FSM foi o espaço de articulação do calendário de mobilizações contra a globalização neoliberal e a guerra. Mas foi capaz de fazer isso porque conseguiu consolidar a agenda política da esquerda da virada para o século XXI, captando as experiências e aspirações da pluralidade de atores que, depois de Seattle, confrontavam abertamente o G8 e as instituições multilaterais, buscando alternativas de sociedade em escala global. O processo desenvolvido em Porto Alegre de 2001 a 2003 foi enriquecido em Mumbai em 2004. Nestes eventos, os atores fundamentais da esquerda que ainda mantinham uma perspectiva anti-sistêmica se recompuseram e voltaram a criar uma auto-identificação em escala global, segundo novos parâmetros, distantes daqueles da esquerda do século XX, embora ainda reconhecíveis por ela (o que não deixou de provocar um forte criticismo dos que não conseguiram dar esse passo). Tratava-se, em geral, de uma esquerda plural e diversa, fortemente internacionalista, estruturada horizontalmente em redes e coalizões e critica não só ao mercado mas também ao estatismo.
Mas este movimento, do qual o FSM é uma expressão, não foi capaz de enfrentar a mudança na correlação de forças estabelecida pela militarização das relações internacionais imposta por Bush, depois da invasão do Iraque em 2003, relação alavancada pelo ciclo de forte expansão econômica mundial de 2002 a 2007. O FSM 2005 já se realizou em uma conjuntura mundial muito mais adversa, sem que o movimento global tivesse novas propostas ou capacidade de sustentar o nível prévio de mobilização. Fragmentação e recuo para os marcos nacionais ou regionais deram a tônica global neste período, com a dinâmica de busca de alternativas na América Latina diferenciando-a dos demais continentes. Desenvolveram-se, na região, grandes diferenças entre as dinâmicas nacionais, seus movimentos sociais e os governos ditos “progressistas” – já presentes em Porto Alegre, em 2005, no contraponto entre um ato de Lula, organizado pelo PT, e um de Chavez, organizado pelo MST.
As iniciativas do processo Fórum buscaram, nestes anos, preservar as conquistas dos quatro primeiros eventos centralizados – sustentando uma ilusão de expansão em 2005 (em Porto Alegre), tendo mais sucesso no evento descentralizado de 2006 (Caracas, Bamako e Karachi), uma desacumulação importante em 2007 (Nairobi) ou mantendo uma posição simbólica em 2008 (Dia de Ação Global). Mas, embora nossos fóruns tivessem sido mais ou menos bem sucedidos, eles não substituiam os atores que neles se articulavam. As determinações fundamentais do que se expressa no FSM sempre estiveram nas lutas e movimentos da sociedade civil, nas relações de forças globais, nas determinações sociais, geopolíticas e ideológicas e não em sua dinâmica interna. E é bom que assim seja – algo que nunca é aceito pelos críticos do FSM.
Isso parece ter se alterado de forma significativa em Belém, tanto pela crise econômica como pela ação dos seus sujeitos sociais. A crise é exemplar da aceleração do tempo histórico: propostas por décadas consideradas utópicas e irrealistas (como a estatização do sistema financeiro dos Estados Unidos) em questão de semanas não apenas entraram na agenda política do mainstream como foram efetivadas por ele. Ela mostra também que se mudanças e reformas não ocorreram, não foi por falta de recursos, mas por falta de vontade política (e correlação de forças). Contudo, a grande novidade de Belém foi a presença de novos atores políticos e de novas demandas de velhos atores, que tem condições de oxigenar todo o movimento global, oferecendo-lhe agora um norte igualmente inovador e radical.
Uma nova agenda para uma esquerda anti-sistêmica
A vitalidade política que se expressou em Belém renova de forma significativa o processo FSM. Ela pode, se consolidada, relançá-lo para um protagonismo análogo ao de seus anos iniciais, ainda que com uma arquitetura e com atores muito diferentes.
O FSM 2009 foi um fórum onde, ao lado de todas as atividades auto-organizadas dos atores tradicionais, tivemos a atuação central de uma série de atores sociais amazônidas até então pouco presentes no processo: populações indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas. E também uma presença importante dos movimentos indígenas da região andina, que vem sustentando nos últimos anos um forte nível de mobilização e atividade política, que explica o sucesso de governos progressistas como os de Evo Morales e Rafael Correa. Isso colocou no foco da discussão a crítica ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo Lula no Brasil e sua projeção continental, a Iniciativa para Integração da Infra-estrutura Regional da América do Sul (IRSA), formulada por FHC e alavancada por Lula – expressões de um modelo de “desenvolvimento” destrutivo, extrativista exportador, onde comunidades são expropriadas de seus territórios e represas, rodovias e portos são construídas para impulsionar a mineração, a siderurgia, a geração de energia e o agronegócio, cujos produtos são destinados ao mercado mundial. A pergunta colocada pelos movimentos de justiça ambiental é: “progresso” pra que e para quem?
A tonalidade marcadamente anti-desenvolvimentista (isto é, anti-mercado global) dos atores populares sul-americanos que compareceram a Belém foi reforçada pelo diálogo com o forte movimento global por justiça climática lá presente, que há muito vem apontando o caráter predatório do crescimento capitalista e de seu modelo de sociedade e rejeita as propostas paliativas que estão sendo construídas pelos governos nas negociações para a Cúpula de Copenhagem sobre o clima (em dezembro de 2009). Isso não apenas não dialoga com o governo Lula no Brasil, em especial nos projetos para a Amazônia e no seu vínculo umbilical com o agro-negócio exportador e a aposta nos agrocombustíveis, mas tem também dificuldade de convergir com o “socialismo petroleiro” de Chavez – embora neste caso haja uma simpatia à luta bolivariana tanto pela soberania face às ameaças norte-americanas quanto pelo controle dos recursos naturais pelos próprios países da região.
O que temos é, portanto, uma posição que rejeita não só a globalização neoliberal, mas também as propostas neokeynesianas e neodesenvolvimentistas que ignoram a crise ambiental e tem sido o horizonte mesmo da maioria dos governos de esquerda da América Latina. Frente à crise no terreno industrial, Lula e Cristina Kirchner, como Obama e Sarkosy, apostam no subsídio à venda de automóveis, reforçando as emissões de carbono, o caos urbano e a desigualdade social. E com o apoio entusiástico dos sindicatos de seus paises, que são incapazes de disputar qualquer tema que não seja estritamente corporativo, ignorando a mudança da estrutura da classe trabalhadora e neutralizando o debate sobre a indispensável reestruturação produtiva da indústria hoje existente; este conservadorismo dos sindicatos chega a pontos caricatos, como no estande da CUT, que tinha até mesmo uma maquete da Usina de Belo Monte, combatida pelos movimentos populares e destinada a produzir energia para mineração e produção de eletro-intensivos voltados para a exportação. A paralisia imaginativa é forte: Chavez não atua com um horizonte muito distante disso e, no Brasil, o MST tenta reviver, em torno do tema do “pré-sal”, a campanha nacionalista do “petróleo é nosso” dos anos 1950, ignorando que a Petrobrás tem que ser, antes de tudo, reestatizada e que o debate ecologista aponta a necessidade de uma rápida e radical mudança da matriz energética (os indígenas equatorianos sustentam que é melhor que o petróleo fique enterrado para as gerações futuras, que talvez tenham mais sabedoria em lidar com este recurso, e não seja queimado e lançado na atmosfera).
As corporações de mineração, energia e agronegócios são, no Brasil e em toda América do Sul, combatidas por importantes movimentos populares. E isso se combina não só com a luta anti-imperialista tradicional focada em Washington, mas crescentemente com a luta contra o imperialismo (ou sub-imperialismo) brasileiro na região, em que grandes capitais controlados por executivos brasileiros se expandem no espaço econômico integrado que está se formando no continente sob a batuta do BNDES. Empresas como a Vale do Rio Doce, Petrobrás, Odebrecht, Camargo Correa, Itaipu, Friboi, Itau/Unibanco e outras têm que ser enfrentadas em um movimento integrado no Brasil e nos demais países da região – como apontaram várias atividades deste Fórum. E a dívida, como instrumento de dominação externa, deve ser anulada em todas suas dimensões, inclusive aquela contraída pelos países da região junto ao Brasil. Na reconfiguração das relações internacionais em curso, que amplia o espaço regional do capitalismo brasileiro na globalização neoliberal, o movimento contra as corporações nacionais torna-se parte essencial de qualquer proposta real de integração regional dos povos do continente.
As aparências não devem enganar: sob a superfície do reforço da crítica ao capitalismo, este Fórum evidenciou uma diferenciação política muito importante e profunda, que inexistente em qualquer FSM até agora. A “resposta à crise” por parte da esquerda que tem como horizonte o neokeynesiano e desenvolvimentista tem poucos pontos de contato com aquela originária da esquerda que busca um programa de transição para um novo “modelo de civilização”. Isso significa não apenas a ruptura com o neoliberalismo, mas com o industrialismo, o produtivismo e o consumismo, com facetas do capitalismo que têm sido reproduzidas ou permanecem como meta em várias experiências do socialismo real. Na crítica à estas propostas postas em xeque pela história do século XX, os movimentos indígenas da Bolivia, Peru e Equador tem um papel importante, propondo um diálogo amplo com a esquerda global em torno do tema “crise de civilização”.
Mas a ruptura não é só com o economicismo dominante na esquerda, é também com o horizonte político tradicional do estado nacional. O debate sobre a organização política foi marcado não só pela resposta necessária à criminalização dos movimentos sociais e da pobreza, mas também por questões como direitos coletivos e estados pluri-nacionais (para arrepio dos nacionalistas), impulsionando uma nova relação com o território. Isso projeta um questionamento maior das estruturas políticas dominantes, permitindo o dialogo e a ação política conjunta com uma vasta coalizão, que se expressou com peso também pela primeira vez no Fórum, de “povos sem estado”, de curdos à catalões, de indígenas sul-americanos à palestinos e lançou uma rede mundial.
Uma esquerda não ossificada, que nos países centrais assume a centralidade da luta dos trabalhadores imigrantes contra o racismo, a xenofobia, a exclusão e pela cidadania, pode na periferia tomar estas reivindicações políticas como um importante estímulo para repensar também o protagonismo dos movimentos populares urbanos no “planeta favela”. E, além do direito à cidade, à moradia e aos serviços urbanos, a reapropriação do território urbano pelos seus habitantes exige uma reestruturação radical do espaço, para a qual um manifesto dos cicloativistas colocou questões instigantes.
A aceitação de que vivemos uma convergência de crises e que a busca de um novo modelo de sociedade baseado na justiça social e ambiental é estruturante de qualquer resposta à ela, expresso pela assembléia “trabalho na crise global”, é significativa das mudanças que estão colocadas para os grandes movimentos sociais herdados do século XX – o sindical e o camponês. Mesmo se eliminássemos todo desperdício e descartabilidade, inevitável em uma economia de mercado, parte importante da atividade econômica atual é irracional, ambiental e socialmente, tendo um impacto muito destrutivo sobre o planeta e as pessoas –petróleo, carvão, automóveis, armas, parcela relevante da mineração, siderurgia, comércio e atividade agrícola e pecuária, publicidade … A humanidade viveria muito melhor sem isso, sob outra lógica econômica e social, consumido muito menos energia e insumos, mas com muito melhor qualidade de vida.
Isso implica não só uma profunda reestruturação produtiva, com o desmonte de certos ramos e a criação/desenvolvimento de outros, mas também uma reversão das tendências ao livre comércio, uma “desglobalização” em favor de processos de integração regional mais fechados, de modo a permitir que as comunidades possam decidir sobre sua própria atividade produtiva sem as pressões destrutivas do mercado mundial – que hoje tem como parâmetros os custos da força de trabalho asiática e a ausência de considerações ambientais (considerados externalidades pela lógica capitalista). A adoção de clausulas ambientais e sociais pode ser um componente importante no trabalho necessário de desconstrução do liberalismo alucinante das últimas décadas, impulsionado pelas finanças sem controle. O movimento sindical só tem futuro liberto de qualquer corporativismo, como articulação das lutas do conjunto do mundo do trabalho, sob suas formas cada vez mais heterogêneas, e como organização de sua participação no processo de reorganização produtiva que a sociedade contemporânea necessita.
O fato do FSM se realizar na Amazônia iluminou também o caráter predador da grande agricultura capitalista. Se o agronegócio, que se tornou um componente importante do comércio global de recursos naturais, é estruturante do modelo neoliberal, fornecendo milho e soja para a produção de proteína animal, matéria prima para etanol e biodieseis, comercializando carne e madeira, as iniciativas de soberania alimentar devem significar o desmonte das corporações da grande indústria no campo – objeto de grande número de seminários e oficinas neste fórum. A reforma agrária já não pode ser justificada por seu papel de “desenvolvimento” das “forças produtivas”; é uma necessidade de toda a sociedade para a construção de padrões sustentáveis de relação com a natureza, preservação da biodiversidade e fornecimento de alimentos saudáveis.
O horizonte de uma nova civilização
Frente à catástrofe ambiental e à demanda sócio-ambiental de justiça climática é indispensável romper não só com as finanças e o mercado fora do controle político, mas também com o industrialismo desenfreado, a demanda infinita de recursos naturais e o consumismo que deles se alimenta. O caminho para o “desenvolvimento” não será atingido com subsídios às finanças como fazem agora os conservadores e os liberais, nem com mais mineração, celulose e agroexportação e com uma infra-estrutura de estradas, represas, portos e aeroportos que estreitem cada vez mais os laços das economias locais com o mercado mundial (mesmo que eles sejam estatais…). Será atingido com mais educação, saúde, uma profunda reestruturação produtiva, reorganização das cidades e da agricultura em um mundo mais integrado no terreno do conhecimento, cultura e comunicação, mas economicamente bem mais desglobalizado, organizado pelo princípio da subsidiariedade – o que puder ser produzido em escala local, regional ou nacional deve sê-lo.
Toda a teoria econômica liberal das “vantagens comparativas” no comércio internacional é profundamente irracional: ela não incorpora os custos ambientais e sociais cada vez maiores e catastróficos. Importar da China todo tipo de produtos e bugigangas que poderiam ser produzidos em nosso continente ou mesmo em cada região dele só tem sentido para as finanças capitalistas globalizadas. Neste sentido, podemos dizer que a crise presente, resultante da irracionalidade sistêmica do capitalismo, é benéfica para o planeta, sua biosfera e para a humanidade, abrindo uma porta para um caminho diferente daquele que está nos conduzindo para o abismo. É esse caminho que já visualizamos em Belém e que terá que ser desbravado daqui para frente.
O FSM 2009 avançou também muito mais do que em qualquer evento anterior em outro sentido: se o propósito da existência humana é a busca da felicidade e o consumismo é a forma que a felicidade adquire no mercado capitalista, que alternativa propomos? A China não é um modelo; representa, pelo contrário, tudo que combatemos. Os indígenas quéchuas e aimarás nos trazem outra proposta, já incorporada pelas constituições da Bolivia e do Equador, o “bem viver”, em que a busca da felicidade individual e coletiva nos marcos da vida comunitária deve ser dar em harmonia com a natureza. Mas este objetivo pode e deve ser incorporado pelos movimentos sociais urbanos, na luta por uma vida regida por critérios qualitativos e não só ou fundamentalmene quantitativos.
Belém também reabriu, de maneira clara, o debate sobre a propriedade. Contra a propriedade privada capitalista da natureza e da vida, dos meios de produção e dos serviços, do conhecimento e da cultura, não se trata simplesmente de propormos a propriedade estatal gerida por burocratas, mas a defesa dos “commons”, dos bens comuns da humanidade. Como afirma o chamado apresentado, “iniciativas alternativas estão se desenvolvendo em numerosos domínios para defender a água e os rios, a terra, as sementes, as florestas, os mares, o vento, o conhecimento, as ciências, o dinheiro, a comunicação e as intercomunicações, a cultura, a música e outras artes, as tecnologias abertas e os softwares livres, os saberes ancestrais, os serviços públicos de educação, saude, saneamento e previdência”. Ele chama a todos para “se engajarem na ação pela recuperação dos bens comuns da humanidade e do planeta para que sua gestão seja assumida de forma participativa e colaborativa pelas pessoas e comunidades concernidas e à escala da humanidade na perspectiva de um mundo sustentável”.
E se o marco de ação política proposto é o do questionamento do modelo de civilização, é importante que o primeiro Fórum Mundial Ciência e Democracia realizado de forma integrada ao FSM de Belém tenha aberto uma discussão ampla sobre o sentido da pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico e sobre a importância da reapropriação de seu controle pela sociedade, através de processos democráticos e participativos.
Estes debates sobre uma alternativa para além do capitalismo foram colocados em Belém não por intelectuais ou lideranças isoladas, mas por movimentos sociais que estão entre os mais dinâmicos da atualidade. Sua convergência, percebida pelos movimentos concernidos como portadora de grandes virtualidades e sinergias, soldou um novo campo político, antes de Belém apenas imaginado. Seu desenvolvimento deve ser, agora, aposta de todos nós.
Limites, problemas e perspectivas a partir de Belém
Há uma grande diversidade de outras contribuições que teriam que ser destacadas, mas não faltarão oportunidades para isso, se conseguirmos prevalecer sobre as visões que buscam desconstruir o processo do Fórum. Temos, para isso que colocar em perspectiva outros aspectos do evento.
A paisagem política da esquerda latino-americana é, hoje, muito diferente daquela das primeiras edições do Fórum, em Porto Alegre, entre 2001 e 2003: vários dos seus atores fundamentais perderam espaço ou relevância, enquanto novos sujeitos emergiram e criticam os governos desenvolvimentistas da região.
A presença de cinco chefes de estado em Belém atraiu muita atenção. Masnão seria, por si mesma, negativa. Poderia até ter ensejado uma contribuição importante ao debate se fosse conduzida de maneira mais integrada ao evento, na forma de reais mesas de diálogo e controvérsia. Contudo, como efetivada, transformou-se em comícios de propaganda política e/ou eleitoral em diferentes níveis, nada acrescentando e tendo um efeito deletério na dinâmica das oficinas e seminários. No final das idas e vindas de datas e horários, tivemos uma atividade fechada para mil participantes pela tarde do dia 29 com Chavez, Correa, Evo e Lugo (em que João Pedro Stédile criticou estes presidentes como “frouxos”!) e, pela noite, um debate aberto dos quatro com Lula no Hangar, para 12 mil pessoas, segundo o acordado nas discussões no Conselho Internacional. Se, no primeiro caso, o objetivo era uma iniciativa para debater amplamente as alternativas de integração regional e contrapor a proposta da Alba às iniciativas brasileiras no continente, o resultado deixou muito a desejar. Isso parece estar ligado à problemas políticos do MST, que optou por permanecer todo o Fórum isolado em um espaço próprio, com sua própria agenda de discussão, sem um dialogo real com a dinâmica de conjunto.
O Fórum teve um importante respaldo governamental, principalmente através das Universidades Federais e do governo estadual, que garantiu uma infra-estrutura relevante e não comprometeu a autonomia do evento. Mas, ao contrário do divulgado pela imprensa (onde circularam cifras fantásticas, de centenas de milhões de reais), os custos não foram maiores do que em eventos anteriores; pessoas dos governos estadual e federal divulgaram todos os gastos de investimentos na cidade de Belém como gastos com o Fórum! E foi a dispersão entre duas universidades relativamente distantes e no interior da Universidade Federal Rural que criou boa parte das dificuldades práticas de localização das atividades no evento. Problemas graves de sinalização e de deslocamento no interior da UFRA agravaram a dispersão – percepção amplificada para os participantes novatos no FSM, que tinham dificuldade de compreender sua dinâmica.
Um problema político maior foi a divulgação tardia e limitada das assembléias do último dia e da assembléia das assembléias, reduzindo a visibilização das conclusões políticas das atividades no próprio evento. Mas a reunião do Conselho Internacional dos dias 2 e 3 de fevereiro trabalhou a sistematização dos resultados para sua difusão, que tem que ser agora dissiminados pelo mundo FSM.
O Comitê Organizador Panamazônico, puxado por um número limitado de entidades, deve – na visão que aqui adotamos – ser saudado pelo magnífico trabalho de preparação política que realizou, possibilitando uma ampla participação popular dos explorados e oprimidos de toda a Panamazônia. Isso deu o norte fundamental para o FSM 2009 e foi uma estimulante fonte de lições políticas. E relançou uma dinâmica permanente do processo panamazônico.
O processo do FSM foi também brindado, para além do calendário usual de fóruns regionais e mobilizações globais, com duas propostas para o início de 2010 que podem permitir que o que se acumulou em Belém seja alavancado e que o processo de um salto ainda maior. De um lado, a proposta apresentada por várias organizações que integravam o antigo coletivo organizador brasileiro de se realizar um seminário de reflexão sobre os dez anos do FSM, em Porto Alegre, em janeiro de 2010, momento para um debate mais qualificado sobre o Fórum como ferramenta política do que o propiciado nas reuniões do CI. De outro, a proposta puxada pela Coordenadora Andina das Organizações Indígenas (CAOI), de realizar no inicio de 2010, na Bolívia ou no Peru, um Fórum Social Temático sobre Crise de Civilização, para debater alternativas (é importante que isso seja articulado com a proposta do Fórum Continental). Uma sinergia será buscada entre os dois processos, que podem fornecer um marco de mobilização e trabalho para o FSM em nosso continente.
Emergiram em Belém uma série de elementos centrais para a formulação de um novo paradigma para a esquerda do século XXI: justiça climática, bem viver, recuperação dos bens comuns, direitos coletivos, estados plurinacionais, descolonialidade… Esta é uma agenda, incompleta ainda, que terá que ser enriquecida com a contribuição de movimentos radicais que nasçam nos países centrais; mas ela oferece um norte claro para quem quer superar o capitalismo e construir uma civilização qualitativamente diferente. Ela terá também que dialogar e se confrontar com muitas concepções e visões estratégicas longamente cristalizadas, mas parece mais promissora do que qualquer outra proposta que surgiu, nas últimas décadas, no horizonte político daqueles comprometidos com a emancipação humana.