por Chico Alencar
O deputado Edmar Moreira (DEM-MG), recém eleito e recém deposto corregedor da Câmara Federal, encastelou-se numa posição bem vulnerável: propôs o fim dos julgamentos de parlamentares no Conselho de Ética da Casa, pois ali há, segundo ele, o “vício insanável da amizade”, o “ambiente de natural fraternidade”. O corregedor, que queria abrir mão de corrigir, partiu de uma premissa verdadeira – o “espírito de corpo”, que, aliás, não é propriamente amizade, muito menos fraternidade – para chegar a uma conclusão falsa, segundo a qual o Legislativo no Brasil estaria condenado a sempre se autoproteger, a tornar-se – as expressões são minhas – uma “confraria de negócios”, uma “pizzaria de luxo”.
A solução seria, de acordo com ele, remeter qualquer denúncia para o Poder Judiciário. Vale dizer, para as gavetas já entulhadas pela proverbial e, espera-se, não “insanável” lentidão dos processos, sobretudo os que atingem pessoas com poder e prestígio, para as quais a Justiça costuma tardar e falhar. Acontece que o Legislativo é, ao menos em tese, como reza a Constituição, um poder independente, que tem suas regras próprias e, no caso da Câmara dos Deputados, um Código de Ética e Decoro Parlamentar, em vigor desde 2001. Para além das normas penais, que definem crimes e sua punição e dizem respeito a todos os brasileiros, sem exceção ou foro especial, aqueles que recebem mandatos de representação devem obedecer a regras específicas, sempre pautadas pelo interesse público, pela alta responsabilidade coletiva que têm.
Em essência, o que se exige dos parlamentares, servidores públicos exemplares e temporários, e que não consta, por óbvio, do Código Penal, é que, no exercício das suas funções eletivas, não abusem de suas prerrogativas, não recebam vantagens indevidas, em benefício próprio ou de outrem, não façam acordos para facilitar a posse de suplentes, não fraudem o andamento dos trabalhos legislativos para alterar deliberações nem prestem informações falsas (art. 4º do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados). Quem tem as melhores condições de avaliar a infringência a essas determinações são os próprios parlamentares, em processos não judiciais, estricto sensu, mas “judicialiformes”: as representações no Conselho de Ética, além de garantir amplo direito de defesa aos acusados, permitem uma avaliação rigorosa do que foi denunciado, ouvindo-se testemunhas, e suas deliberações são tomadas por voto aberto.
O relator dos casos nunca poderá ser do mesmo partido ou do mesmo estado do representado. Com essas precauções, o deplorável caso do mensalão, em 2005, resultou em nada menos que uma dúzia de deputados com pedidos de perda de mandato no Conselho aprovados por seus “colegas” e rejeitados depois em plenário, graças ao manto espúrio do voto secreto, à exceção dos emblemáticos casos de José Dirceu (PT), Roberto Jefferson (PTB) e Pedro Correa (PP). Em outras ocasiões, mais antigas, o Conselho também deliberou pela interrupção de mandatos e suspensão de direitos políticos de deputados com procedimentos eivados de má-fé e improbidade, claramente contrários à transparência republicana, à dignidade da função pública e à vontade popular (art. 3º do Código de Ética). Portanto, está provado que os Conselhos de Ética dos parlamentos podem e devem agir com independência e rigor em relação ao “compadrio” e aos desmandos com o dinheiro público.
Se eles são, como o da legislatura atual na Câmara Federal, mais de “estética e decoração”, isso se deve à pequena participação cidadã e à declinante pressão por ética na política. Esta desmobilização popular quanto ao controle de seus representantes, estimulada pelos grandes partidos e até por altas autoridades da República, é também alimentada pela descrença galopante na política institucional e por sucessivos casos de absolvição corporativista e recomposição do poder político de notórios farsantes, nesse insosso seriado caricaturado como “a volta dos que não se foram”…
Apesar desses fatores de compreensível desencanto, não seria compatível com a dinâmica social e histórica aceitar a corrupção, a impunidade ou a memória curta como regras, ou como parte “insanável” da cultura política nacional. Isto significaria desistir de vez da democracia representativa e de seus instrumentos, como os códigos, conselhos e corregedorias de defesa da ética pública. Esses mecanismos democráticos, porém, só funcionarão com a permanente vigilância popular.
Publicado no Jornal do Brasil 07/02/2009
Chico Alencar é deputado federal do PSOL/RJ