Vitória do Partido Popular evidencia falência da social democracia e dilemas dos indignados. Ao recusarem, em sua maioria, participação na política institucional, ativistas abrem espaço para que propaganda conservadora capitalize fracasso do PSOE. Novos governos, baseados em duro arrocho fiscal, tendem a ser instáveis e antidemocráticos
Gilberto Maringoni
A vitória absoluta da direita espanhola alinha o país com Grécia e Itália na disposição de aprofundar o duríssimo ajuste fiscal imposto pela tríade União Europeia (leia-se Alemanha e França), Banco Central Europeu (BCE) e FMI. A principal distinção ibérica reside na forma institucional encontrada. Não há formalmente intervenção externa e sinais de golpe financeiro, como nos outros dois casos. A Espanha preserva as chamadas liturgias da democracia representativa, após o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) ter completado o giro à direita, iniciado nos quatro mandatos de Felipe Gonzáles como primeiro-ministro (1982-1996). Estes foram caracterizados, na seara econômica, pela privatização de grandes empresas estatais e, em seguida, pelo início de uma agressiva política de internacionalização dos grandes grupos.
Se o giro liberal foi implantado a ferro e fogo pelo mais longevo primeiro ministro espanhol desde a redemocratização do país, em 1975, coube ao governo de José Luis Zapatero (2004-2011) fechar o ciclo com a proposta de tornar o ajuste fiscal uma cláusula constitucional. No início de setembro, após um acordo entre o PSOE e o Partido Popular (PP), foi aprovado por amplíssima maioria congressual o limite de déficit público de 0,4% do PIB. A medida implica cortes orçamentários profundos e um engessamento nas receitas do Estado para garantir a solvência da dívida pública do país.
Urnas e ruas
O traço mais notável da eleição é o contraste entre as urnas e as ruas. Palco de gigantescas mobilizações desde o primeiro semestre, culminando com o protesto global de 15 de outubro, a ação dos chamados indignados nas urnas foi inócua.
O desalento toma conta da juventude espanhola – que enfrenta taxas de desemprego de 45% na faixa de 18 a 25 anos – na seara política. Assim, os ativistas, em sua maior parte, pregaram o absenteísmo eleitoral e o repúdio aos partidos políticos.
O não comparecimentos às urnas no país – onde o voto não é obrigatório – é tradicionalmente alto. Nas eleições gerais de 1977, a primeira após o fim do franquismo, a taxa alcançou 22,5%, em meio à euforia democrática pós-ditadura. Na eleição de Gonzales, quatro anos depois, o índice alcançou 22%, batendo 31% em 1986 e 31,3% em 1989. Quando José Maria Aznar ganha, em 1996, 23,8% dos espanhóis ficaram em casa ou foram passear no dia do pleito. Em 2000 registrou-se o maior índice: 32,8%. Em maio último, nas eleições municipais, foi atingido o pico de 36,6% de ausentes. No domingo, o total contabilizou 28,21%.
Socialdemocratas em crise
Entre as várias lições a se extrair do resultado, o primeiro diz respeito à crise terminal da socialdemocracia europeia como alternativa política (não nos esqueçamos que o Pasok, de George Papandreou, na Grécia, era, até pouco tempo, a agremiação socialdemocrata mais á esquerda da Europa). Seus partidos podem até se recuperar e terem boas votações em pleitos futuros. Mas a corrente como alternativa real, construtora de sistemas de bem-estar social, faliu.
Nunca é demais lembrar: ela funcionou enquanto as burguesias dos países da Europa ocidental temiam os regimes do leste, que vitaminavam os fortes movimentos operários da Inglaterra, França, Itália, Alemanha Ocidental, entre outros, nos anos 1950-70. Isso as fez ceder direitos sociais que elevaram o nível de vida das populações. Com a queda da URSS, em 1991, e com o refluxo das mobilizações sindicais nos anos de ascensão neo liberal, não havia motivos para se manter o que chamam de privilégios injustificados aos seus trabalhadores.
Outra reflexão a ser feita refere-se ao alcance a à qualidade dos movimentos de protesto que foram às ruas e praças espanholas. Em sua maior parte, eles se apresentam como avessos à atividade política partidária. Tendem a ser puramente reivindicatórios, apesar de criativos e exuberantes na forma de apresentação. Funcionam como canal de expressão legítimo dos descontentamentos, mas de pouco efeito prático. O que é exaltado como vantagem – seu caráter horizontal, não programático e sem lideranças ou burocracias visíveis – na verdade são suas maiores insuficiências. Com isso não se estabilizam organicamente e nem geram programas viáveis.
Evolução ou desânimo
É possível que o efeito mobilizador, em algumas parcelas, evolua qualitativamente para organizações que possam disputar eleições na institucionalidade, até mesmo para alargar espaços de participação popular. Parece claro que a vida política baseada em máquinas partidárias alicerçadas em vínculos estreitos com o poder econômico das grandes corporações mostra-se impermeável a mudanças reais na institucionalidade.
No caso espanhol – como em vários países, incluindo o Brasil – os laços pouco claros das grandes corporações com o Estado criaram ambientes viciados, nos quais disputas eleitorais são montadas para não se tocar nas bases de funcionamento da economia. Trata-se de enfrentamentos sem contrastes políticos ou ideológicos, nos quais ganham relevância técnicas de gerenciamento do sistema.
Não é à toa que agremiações outrora antagônicas como o PSOE e o PP – ou o PSDB e o PT, no caso brasileiro – apresentem mais pontos em comum do que divergências. Isso os habilita a fechar acordos de envergadura, como a constitucionalização do arrocho espanhol.
Existe também a possibilidade da desesperança contaminar boa parte dos indignados. Se amplas mobilizações não resolvem, eles podem se perguntar: para que afinal sair às ruas?
Há pelo menos uma vantagem da Espanha sobre a Grécia e a Itália. Mariano Rajoy, virtual primeiro-ministro, é um quadro formado na esfera da disputa política. Não é um burocrata financeiro como Lucas Papadremos ou Mario Monti.
Os processos políticos europeus têm , contudo, um ponto comum: todos os novos dirigentes , ao implantar ajustes radicais, enfrentarão a ira de seus povos. Isso pode fazer dos futuros governos construções instáveis que, para se manterem, poderão lançar mão de mecanismos nada democráticos.
A ver.
Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).
Artigo originalmente publicado pela Agência Carta Maior