Escrito por Paulo Passarinho
Água mole em pedra dura tanto bate até que fura; mentira, repetida inúmeras vezes, se transforma em verdade; ou, hegemonia também se constrói através do discurso, especialmente pela sua própria repetição, foram algumas das sentenças que me vieram à cabeça quando li um recente artigo de Caetano Veloso. No texto, o artista, declarando-se eleitor de Marina Silva, escreveu que entre Serra e Dilma ficaria com a candidata lulista, “porque ela defende a independência do Banco Central”.
Uma amiga me explicou que é natural que seja assim, pois, se assim não for, o Banco Central fica subordinado aos políticos, sempre muito corruptos ou irresponsáveis. Ponderei que a solução da “independência” significa colocar o Banco Central sob comando dos bancos privados, principais beneficiários do modelo e da política econômica. Além de serem os principais financiadores dos tais políticos que não prestam…
Acho que deixei a minha amiga com uma pulga atrás da orelha, mas atentei para a força que determinadas “verdades”, exaustivamente repetidas pela mídia dominante, exerce sobre todos nós.
E me ocorreu um outro fenômeno, ora em curso: acho que ninguém mais atenta, se importa ou acredita que continuamos submetidos a um modelo econômico totalmente controlado pelo sistema financeiro, e nocivo ao povo e à nação brasileira.
A razão desse fenômeno se relaciona a algumas versões construídas durante esses quase oito anos de governo Lula.
Desenvolvimentismo e distribuição de renda passaram a ser as maiores características de um “novo modelo” que teria se implantado no país. Marcio Pochmann, atual presidente do IPEA, em artigo publicado no ‘O Globo’, chegou a escrever que “nos últimos anos o Brasil passou a acusar importantes sinais de transição para o modelo social-desenvolvimentista”.
Desenvolvimentismo deve ser traduzido por taxas de crescimento da economia, que nos teria retirado da estagnação econômica, marca deixada por nossa história econômica, de 1980 para cá.
O exame, contudo, das taxas de crescimento do país entre os anos de 2003 e 2009 não nos permite aceitar tanto otimismo. Nesse período, de acordo com dados oficiais e estudos do professor Reinaldo Gonçalves, o país cresceu a uma média de 3,5%. Esse resultado, primeiramente, nos coloca ainda muito distantes da média histórica de crescimento do PIB brasileiro. Entre 1890 e 2009, a taxa média de crescimento real foi de 4,5%. Entre 1932 e 1980, essa taxa chega a 6,8%.
Não restam dúvidas de que houve mudanças no ritmo do crescimento econômico do país em relação ao governo anterior, de FHC, quando essa taxa média foi de apenas 2,3%. Mas o próprio Reinaldo Gonçalves nos pondera que, de 2003 a 2008, tivemos uma conjuntura internacional extremamente favorável. Nesse período, a renda mundial cresceu à taxa média real anual de 4,2% e o comércio mundial a uma taxa anual de 7,2%. Mesmo incluindo o ano de crise de 2009, essas taxas ficam respectivamente em 3,6% e 4,3%.
O resultado que alcançamos, assim, em termos da participação do Brasil na economia mundial, poderá surpreender a muitos: em 2002, tínhamos uma participação de 2,81% no PIB mundial, e agora, em 2009, representamos 2,79% da produção mundial.
Em termos mais diretos, esses dados nos mostram que, em comparação com os outros países, nós crescemos menos do que a maioria desses, não nos aproveitando a contento de uma conjuntura internacional extremamente favorável.
Mas e a distribuição de renda?
Esse é um outro assunto que merece maior atenção do que as manchetes de jornais nos sugerem.
Primeiramente, de acordo com os dados da PNAD, existe uma melhor distribuição de renda entre aqueles que vivem de rendimentos do trabalho – salários, diárias, renda de autônomos. A PNAD capta com mais precisão esse tipo de rendimento, não cobrindo de forma adequada rendimentos típicos dos capitalistas, especialmente juros e lucros. Entretanto, esse é um processo que vem sendo observado desde 1995 e se associa a vários fatores: forte redução dos índices inflacionários; reajustes reais do salário-mínimo; programas de transferência de renda e a extensão de direitos da seguridade social.
A evolução do salário mínimo real, a partir de 1995, nos dá uma clara idéia desse processo. De acordo com o Dieese, e tendo o salário mínimo de julho de 1940 como referência para um índice igual a 100, em 1995 tivemos o mais baixo valor da história, com o índice de 24,53. Em 2003, esse índice já havia se recuperado, chegando a 30,70 (elevação de 25,15%, em relação a 1995), e em 2008 alcançou a 42,75 (elevação de 39,25%, em relação a 2003). Desse modo, entre 1995 e 2008, o crescimento real do valor do salário-mínimo foi de 74,28%, continuando a sua trajetória de elevação real até hoje, em 2010.
Mas, além desse importante dado sobre o salário-mínimo, tivemos o crescimento do emprego formal. O governo tem se utilizado dos dados do Caged – Cadastro Geral de Emprego e Desemprego do Ministério do Trabalho – para a divulgação de dados recordes de geração de empregos no país. Contudo, o que não se divulga com tanto estardalhaço é que os saldos positivos na geração de novos postos de trabalho no país ocorrem exclusivamente até a faixa salarial correspondente a dois salários-mínimos. A partir da faixa salarial entre dois e três, o saldo de vagas é negativo. Não há, portanto, saldo positivo na geração de empregos nas faixas salariais acima de dois salários.
Esse fenômeno pode nos ajudar a entender os dados de um estudo do IPEA que apontou que, entre 2002 e 2008, trabalhadores brasileiros mais qualificados (na verdade, com mais de 9 anos de estudo) tiveram, na média, queda nos seus rendimentos. Esse estudo aponta que, nas ocupações que exigem um nível de escolaridade acima de onze anos, por exemplo, houve uma redução no salário médio de mais de 12% neste período considerado.
Dessa forma, muito antes de festejarmos a criação de uma nova classe média ou a ascensão de milhões a uma nova classe social, o que devemos admitir é que temos reduzido de fato o número de miseráveis.
E, principalmente, em função da extensão de mecanismos de crédito aos mais pobres – com prazos de pagamento extremamente elásticos, além de taxas de juros que garantem altíssimas rentabilidades aos financiadores -, houve um aumento do consumo de bens duráveis para uma imensa parcela da população.
Neste contexto, mecanismos como o crédito consignado ou a ampliação da oferta dos serviços de cartão de crédito estimularam esse tipo de consumo, através principalmente do aumento do nível de endividamento das famílias.
Confundir esse processo em curso com o fortalecimento da classe média me parece uma grosseira simplificação. O propalado crescimento da chamada “classe C” – para estudos veiculados pela FGV-RJ, e com ampla repercussão na imprensa (para muitos, golpista), brasileiros com uma renda familiar de R$ 1.200,00 já estariam classificados nessa categoria! – deveria ser analisado com mais critério e cuidado.
E, antes de chegarmos a conclusões rápidas ou superficiais sobre um processo de real melhoria da distribuição de rendas – incluindo os capitalistas, é claro – no Brasil, é importante assinalar que mantemos uma das estruturas tributárias das mais regressivas do mundo. E, ao mesmo tempo, a política fiscal praticada pelo governo – onde no ano passado, por exemplo, mais de 35% do Orçamento Geral da União se destinaram ao pagamento de juros e amortizações da dívida pública – privilegia, de forma escancarada, aos mais ricos.
Por tudo isso, prefiro ficar com as palavras de Jessé Souza, coordenador do Centro de Pesquisa sobre Desigualdade Social da Universidade Federal de Juiz de Fora e autor do livro ‘A Ralé Brasileira’. Em recente entrevista, ele afirmou: “Esses índices mostram apenas que a pobreza absoluta diminuiu. Mas a desigualdade é um conceito relacional”.
O Brasil é uma das sociedades complexas mais desiguais do planeta. Entre 30% e 40% de sua população tem inserção precária no mercado e na esfera pública. Somos uma sociedade altamente conservadora, que aceita conviver com parcela significativa da população vivendo como “subgente”. Essa classe social, que chamamos provocativamente de “ralé”, é a mão de obra barata para as classes média e alta que podem – contando com o exército de empregadas, motoboys, porteiros, carregadores, babás e prostitutas – se dedicar às ocupações rentáveis e com alto retorno em prestígio.
É isso que chamo de “desigualdade abissal” como nosso problema central. Desigualdade abissal que, sem uma profunda alteração do modelo econômico em curso, com uma total alteração da política econômica dos banqueiros, não será alterada.
Paulo Passarinho é economista e membro do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro.
Artigo originalmente publicado no Correio da Cidadania – 4/6/2010