Escrito por Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação do Correio da Cidadania
No começo do mês de abril, o Rio de Janeiro foi avassalado por chuvas de intensidade inédita. O resultado foram cerca de 200 mortes, praticamente todas de moradores das áreas mais carentes, praxe de todas as tragédias mundo afora. Na comoção do momento, as autoridades máximas da cidade e do estado disseram ser hora de trabalho em conjunto, não de um suposto oportunismo crítico, mas não perderam a oportunidade de culpar os pobres pelo simples fato de morarem em áreas de risco.
Em entrevista ao Correio da Cidadania, o deputado estadual do PSOL Marcelo Freixo analisou as causas da tragédia, que afetará por longo tempo a vida dos atingidos, e fez implacáveis críticas aos prefeitos da capital e de Niterói e também ao governador Sergio Cabral. Para ele, as políticas públicas, ou a ausência delas, foram as autênticas causas do desastre, e até agora não apresentaram nem mesmo as tão citadas soluções emergenciais efetivas.
Freixo cita também a especulação imobiliária que, em parceria com o poder público, afasta qualquer possibilidade de planejamento urbano. Para o deputado, não há perspectivas de mudanças na concepção da cidade, de modo que os deslizamentos e mortes apenas tenderão a reforçar as remoções de moradores das chamadas áreas de risco, especialmente aqueles que vivem em locais interessantes aos grandes negócios.
A entrevista completa pode ser conferida a seguir.
Correio da Cidadania: O que leva uma chuva, ainda que sem precedentes, a arrasar com uma das maiores cidades do hemisfério sul em tão pouco tempo? Que fatores resumem essa tragédia?
Marcelo Freixo: Primeiramente, não dá para responsabilizar as chuvas, por mais que o volume d’água tenha sido fortíssimo e provocaria tragédias em diversos outros lugares também. Isso é uma verdade. Mas ressalto que nas primeiras horas de chuva a cidade já estava um caos. Muito antes de esse volume enorme de água se formar, a cidade ficou paralisada, vários acidentes ocorreram. É preciso registrar que em duas horas o caos já se instalara.
E o mais importante: ficou claro que não há plano de emergência, estrutura de Defesa Civil, acompanhamento das chamadas áreas de risco em que as pessoas vivem, ou seja, temos um poder público muito ausente diante de coisas muito sérias. Há uma parcela muito significativa de gente que vive em condições desumanas, pagando IPTU, luz. No entanto, com ausência de comunicação entre o poder público e tais áreas.
Neste sentido, se nós falarmos: "olha, o Rio de Janeiro não se preparou para a neve que caiu no mês de abril". Claro, no Rio de Janeiro não cai neve, não pode estar preparado para isso. Mas eles vêm dizer que o Rio de Janeiro não se preparou para a chuva?! Ora, é claro que vai chover com intensidade no Rio de Janeiro, o Brasil é um país tropical, o Rio de Janeiro tem sempre grandes chuvas. Como não estar preparado para a chuva?! Vai estar preparado para o quê? Para o terremoto? Para a neve? Tem que estar preparado é para a chuva, e não está nunca.
E nesse ponto não é um ou outro governo, são dez governos sucessivos os culpados. Por uma razão: é verdade que as chuvas atingiram a cidade inteira, mas é verdade que, de forma fatal, atingiram fundamentalmente os pobres, os mesmos que são vítimas da lógica da ordem, e que agora são vítimas da desordem implementada pela ausência do poder público.
CC: O que achou das reações do prefeito do Rio e de outras cidades afetadas, como Niterói, e também do governador do estado?
MF: Vamos por partes. A fala do governador é irresponsável e covarde. Quando diz que a culpa de quem morreu é por morar em área de risco ele é extremamente covarde, pois essas pessoas não têm a opção entre viver lá ou outro lugar; fala como se pudessem escolher entre um lugar seguro e confortável e outro em que ele pode perder sua família e morrer. É de uma covardia e irresponsabilidade inaceitáveis.
Já o prefeito, é um garoto mimado, que não aceita críticas e chama todos de oportunistas nesses momentos. Por ser autoritário, não oferece possibilidades viáveis de manter as pessoas em locais que permitam transporte, chegada ao trabalho em condições decentes, o que faz as pessoas voltarem às áreas de riscos.
E quero dizer que fazer crítica ao poder público nessa hora não é oportunismo de plantão, é independência. Oportunismo é se aproveitar e ter que apoiar prefeito e governador numa hora como esta, tão trágica. Isso que é oportunismo de plantão: fazer com que os cargos que são distribuídos para comprar deputados valham mais do que a vida de quem morreu.
Assim, ele faz um discurso para dar satisfação à classe média, de que vai remover as pessoas das áreas de risco. Só não diz para onde. Tirar das casas é fácil, mas vai pra onde? Estão usando as escolas como abrigo, pois não há alternativa. E o aluguel social é algo que tem inflacionado a ação imobiliária. Ao mesmo tempo, temos 10 mil imóveis vazios no centro.
Por que não os ocupam com esses moradores? Por que não pode ferir os interesses da especulação imobiliária? Por que não pegam o complexo da Frei Caneca, um presídio desativado, e constroem um grande conjunto habitacional, num local apto para as pessoas seguirem uma vida viável, que priorize a vida e dignidade dessas pessoas oferecendo algo decente? E que não se venha com discursos de remoção.
Aliás, temos algo curioso, pois só se usa a palavra remoção em três circunstâncias: quando se fala de lixo, cadáver e favela. Somente nessas três situações, o que é muito simbólico, significativo.
Em Niterói, por sua vez, há um prefeito (Jorge Roberto Silveira-PMDB) que é um absurdo. Primeiro, porque não vem a público dar satisfação. Não dá a mínima estrutura de atendimento às pessoas. Visitei essa semana um lugar atingido pela tragédia, vi casas penduradas, abandono absoluto, enfim, não há sinal de poder público. A prefeitura de lá também está entregue aos interesses da especulação imobiliária, o que é muito grave.
CC: E o governo federal, como avalia a sua reação até agora a esta tragédia? Em que medida pode ser responsabilizado?
MF: Em primeiro lugar, o governo federal tem de parar de fazer propaganda enganosa, dizendo que o Rio está preparado para receber Copa do Mundo e Olimpíadas. Não tem investimento em infra-estrutura, em qualidade de vida para as pessoas e qualquer chuva pode inviabilizar a cidade, o que mostra que todos esses investimentos de PAC e aquela idéia de que o governo trabalha para todos são propagandas que não foram direcionadas aos setores que precisavam, aos setores estruturais que podem inviabilizar a cidade em um momento como este.
Portanto, em parceria com os governos estadual e municipal, tem de saber melhor onde deve realizar investimentos, o que certamente não tem ocorrido.
É estranho que o governo federal venha dizer que o problema é dos governos passados, como se este não fosse continuidade do anterior no Rio de Janeiro. Mais do que isso, o ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira (PMDB), não me parece ser uma pessoa tão preocupada com a integração nacional, porque 45% dos recursos desse ministério num momento importante como este foram destinados à Bahia, sua terra natal, numa desproporção absurda. Foram mais recursos para cidades que não são sistematicamente vitimadas por esse tipo de fenômeno do que para outras cidades que são sistematicamente vitimadas por tais fenômenos.
Sendo assim, o governo Lula tem também sua dose de responsabilidade numa distribuição de cargos que tem esse efeito político.
CC: Em vista deste quadro, pode-se dizer que há políticas de planejamento urbano no estado
e na cidade do Rio de Janeiro?
MF: Não existe planejamento urbano. O que temos é a prevalência dos interesses da especulação imobiliária. É uma cidade absolutamente marcada por um apartheid, onde algumas áreas contam com presença do Estado, políticas públicas, enquanto em outras o poder público simplesmente não faz parte do dia-a-dia das pessoas.
Os últimos dias mostram isso, com pessoas sem poder ir e vir, isoladas. Nos locais onde o Rio vai receber os eventos, de grande interesse da especulação, a prefeitura trabalha em parceria com ela, tentando tirar as pessoas pobres de lá, como se verifica na Vila Autódromo, na região da Barra da Tijuca. São comunidades que vivem no local há muito tempo, mais de 50 anos, em área de risco. E a prefeitura só se importa em tirá-las de lá e nada mais.
E mais: onde está o plano de emergência, que tanto foi anunciado, do qual tanto se fez propaganda? Sendo assim, é o governo municipal somando forças com o governo estadual e o governo federal. Nunca vi um somatório tão grande dar em nada, absolutamente em nada.
Ora, não havia policiais, não havia guarda municipal, não havia orientação. A cidade ficou absolutamente um caos e abandonada durante toda a noite. Não há plano de emergência. Não adianta dizer: "Fiquem tranqüilos. O plano de emergência vai funcionar na hora certa". Como na hora certa? Qual é a hora certa? Duzentas pessoas morreram! Não era essa a hora de o plano de emergência funcionar? Qual é o momento de funcionar?
Portanto, não é verdade, mais uma vez, não é aceitável que se coloque a responsabilidade da tragédia nos fenômenos da natureza. A responsabilidade é humana e política.
CC: A especulação imobiliária, levando a um loteamento das cidades regido pela lógica dos interesses de grandes grupos econômicos, notadamente as empreiteiras, é uma evidência nas cidades brasileiras. A se considerar o caos que se instalou, parece estar atuando com vigor no Rio, não?
MF: Não temos a construção de moradias, casas populares, mas há em cada rua um grande prédio surgindo, o que leva ao caos completo, não só pelo escoamento da água e esgoto, mas também pelo trânsito. Em ruas onde antes circulavam 100, 200 carros, passam a circular 1000 por conta desse processo.
É todo um planejamento urbano, uma concepção de cidade, calcada na lógica do lucro, não na vida das pessoas. E isso incide no caos que agora testemunhamos de forma bem visível.
Visitei, há dois meses, junto com alguns jornalistas de O Globo Niterói, o Morro do Estado. Fui visitar o Morro do Estado por outra questão, pelo GPAE (Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais). Havia muitas reclamações, sobre o GPAE estar abandonado enquanto as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) são valorizadas.
Os moradores me levaram a uma área chamada Barreira. Estavam muito preocupados porque era uma área em que já havia ocorrido um deslizamento, as casas estavam em situação muito perigosa e queriam chamar atenção para isso.
Quando eu e o repórter vimos a situação, imediatamente ligamos para a Defesa Civil da prefeitura de Niterói. O que ouvimos foi: "Vamos tomar providências". No dia seguinte, liguei novamente. Liguei durante toda a semana e nenhuma providência foi tomada. A área que desmoronou no Morro do Estado, que vitimou diversos moradores, foi exatamente essa área da Barreira, onde a Defesa Civil de Niterói, depois de alertada, nada fez.
O prefeito de Niterói é sócio da especulação imobiliária da cidade, gasta o seu tempo em reuniões longas com os especuladores, e não com os moradores da cidade. Niterói é uma cidade vendida ao interesse especulativo e financeiro. Agora ele diz ser hora de se preocupar com as vidas? Agora é hora de toda a população de Niterói estar unida se preocupando com as vidas, mas a responsabilidade do prefeito é diferenciada: ele tem de assumir responsabilidade, pedir desculpas e saber que eles foram alertados de que aquela tragédia poderia acontecer e poderia ter sido evitada. Isso tem que ser dito.
CC: Circularam notícias de que teriam sido bastante avariadas casas originárias do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento, do governo federal). Isso ocorreu realmente? Como analisa o PAC dentro daquilo que está reservado ao Rio de Janeiro?
MF: O PAC não investiu quase nada perto do prometido. Além do mais, foi um processo nada democrático, não chegou às comunidades através de um debate com elas, tratando de saber do que careciam e o que gostariam de ver nessas áreas.
Por exemplo, o Complexo do Alemão, um dos locais de maior investimento do PAC, foi dos mais atingidos, várias pessoas perderam suas casas, inclusive as recém-construídas, o que deixou muita gente revoltada.
Ao invés de se falar de investimento em escolas, postos de saúde, saneamento, fala-se na construção de um teleférico, coisa que nem de longe é prioridade dos moradores do Complexo do Alemão.
Portanto, o PAC não é um instrumento democrático, é uma idéia de crescimento autoritário, pois a comunidade não é priorizada a partir de seu desejo e necessidades reais.
CC: Quanto aos programas de urbanização de favelas, considera que, ainda que paliativos, permanecem necessários?
MF: É claro que, se pegarmos uma favela construída sobre um lixão, não se pode urbanizá-la. Devem-se retirar as pessoas de lá e garantir uma realocação digna. Uma favela histórica, que não representa área de risco, deve ser urbanizada, mas sem que se configure uma ‘remoção branca’. O que seria isso? Coloca-se luz, água, melhoram as ruas e depois aumentam os impostos, de modo que aquela população não pode se manter ali.
Dessa forma, a urbanização tem de ser feita com objetivo de viabilizar a vida daquelas pessoas nos locais em que elas já se encontram.
CC: Em vista dos acontecimentos, vêm sendo também citados vários cortes de verbas, como, por exemplo, para a coleta de lixo, para obras relativas à drenagem, estas últimas com redução de 65%. Sabendo-se serem investimentos imprescindíveis em favelas após sua urbanização, como explicar, ou não explicar, esses atos que configuram expressamente uma negligência do poder público?
MF: Bom, não tem explicação, essa é a verdade. São áreas que servem de curral eleitoral e humanitário, não são alvos de investimento do poder público. São áreas de reprodução do voto de cabresto.
Boa parte dos lugares de Niterói vítimas do desastre e que visitei não tem saneamento, coleta de lixo. Na comunidade da Garganta, pode-se ver lixo espalhado por toda parte, pois não há coleta, nunca houve. E, evidentemente, a falta de interesse do poder público se deve ao fato de que o retorno esperado nestes lugares é meramente eleitoreiro, o que se consegue na compra do voto, dentro dessa lógica que expliquei.
CC: Mesmo diante de uma tragédia como esta, cuja maior vítima é, sem a menor dúvida, a população carente, está havendo a criminalização da pobreza, já que os moradores de morros estão sendo acusados de serem irresponsáveis ao ocuparem territórios indevidos. Essa postura não se agravará ainda mais, onde governantes podem se aproveitar da alegada irresponsabilidade dos moradores para promover despejos e desocupações truculentas?
MF: Claro que sim, o que, aliás, já estamos verificando. A criminalização da pobreza nem depende das catástrofes naturais. Já é um processo que se pratica através da política de ordem, que é a manutenção da ordem de classe.
Faz-se uma vigilância nas áreas pobres de modo que se legitime a violência, especialmente em comunidades próximas a bairros mais nobres.
Quando se responsabiliza o pobre pela tragédia, já se legitima uma ação mais truculenta, a ação violenta sem diálogo, sem p
reocupação com o lugar para o qual essas pessoas irão morar. Depois tudo deixa de ser notícia e ficamos assim.
CC: A aventada necessidade de desocupações neste momento já não caracterizaria este quadro? Algumas delas não seriam realmente necessárias em virtude da urgência que a situação de tragédia impõe?
MF: Claro que configuram uma ação violenta e discriminatória. Mas também é claro que não podemos ser contrários à retirada de uma comunidade de uma região em que as pessoas podem morrer. Há locais em que as pessoas são retiradas imediatamente mesmo, pois podem morrer a qualquer momento, essa noite, amanha de manhã… É uma questão de bom senso.
Porém, é preciso mudá-las para um local onde a vida seja viável, se não elas voltam a morar em lugares tão ruins quanto antes. E não há a menor perspectiva de uma solução nesse sentido, só se fala em remoção. Não temos notícia alguma a respeito de onde elas poderiam passar a morar. Só ouvimos falar em aluguel social, como se fosse algo definitivo. Não há mais nada apontando para uma solução de verdade.
CC: Você possui alguma esperança ou expectativa de que, diante da magnitude dos acontecimentos, possam ser tomadas medidas mais efetivas pelas diversas instâncias governamentais contra esse quadro de verdadeira calamidade?
MF: Não é o que vejo. O que estou vendo é um discurso cada vez mais preconceituoso, discriminatório e as pessoas vivendo em condições precárias.
CC: Em que medida os acontecimentos esportivos vindouros, como a Copa e as Olimpíadas, poderão influenciar nessa situação?
MF: Esses grandes eventos chamam a atenção do mundo para o Rio de Janeiro, o que permite uma maior participação das pessoas e a ampliação da cobrança sobre o poder público.
Tenho esperança de que a imprensa internacional e o olhar da imprensa nacional ao Rio possam trazer um pouco mais de críticas e refazer as relações de força aqui estabelecidas. Mas não é fácil.
CC: Para encerrar, têm se repetido situações semelhantes de tragédia em todo o país, a exemplo de São Paulo, de Santa Catarina e até mesmo do Nordeste. Que analogia você teceria entre esses casos e, muito especialmente, o que todos eles juntos sintetizam de nosso país?
MF: Na verdade, há toda uma simbologia, pois todos esses problemas se aplicam a outros centros urbanos do país, não se trata de um problema específico do Rio.
Temos uma orientação, uma prioridade política de classe, fruto de uma concepção de Estado neoliberal, muito fortalecida no Brasil nos últimos anos. É o pressuposto de se governar para determinado setor da sociedade. Quem diz que governa para todos está mentindo pra alguém.
O que acontece é que simplesmente os governos dos grandes centros políticos trabalham para um setor minoritário da sociedade, abandonando completamente a grande maioria, que geralmente é vítima das grandes catástrofes.
Quem morre nesses episódios são fundamentalmente as pessoas pobres e desassistidas por conta de tais políticas.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.