Por Eduardo Garcia C. do Amaral
… diz o dito popular. Corri ao dicionário para encontrar o que as palavras escondem. Trumbicar-se, explica o Aurélio, é ‘dar-se mal, entrar pelo cano’. Do verbete “saber”, para quem gosta de gastar seu latim, aprendi que saber é sapere, ‘ter gosto’. Nesta acepção, se diz de um vinho “sápido”, saboroso, que em sua paciência esperou anos a fio para saber, isto é, ter gosto. Pois sim: vinho ruim vai pelo ralo, se trumbica, como os livros sem sabedoria, sem gosto. Livros também são para saborear, se neles há alguma “sapiência”. Nunca havia pensado no que podia haver de comum nos livros e vinhos. E, pensando bem, a comparação me pareceu bastante oportuna.
Da vinícola à sala de aula, há uma analogia insuspeitada. O enólogo, que depurou sua sensibilidade na degustação de vinhos, pode apreciá-los, degustar seus sabores, julgá-los, examiná-los, reconhecendo pelo paladar o tipo de uva que se fermentou e tudo o mais que compõe a bebida. Ademais, se ele for também um produtor de vinhos, deve conhecer na minúcia o processo de sua fabricação, da arte de se produzir o vinho, de quanto tempo o mosto de uva carece para se fermentar, descansar e tomar corpo, cor e sabor.
Na universidade ocorre algo de assemelhado, quando tanto se preza e valoriza a erudição, que é uma das provas pelas quais um professor precisou se submeter para sua titulação. A custo de muita leitura –depois de degustar bons livros, os clássicos, as obras consideradas como as mais importantes no seu ramo de saber– o professor pôde, por assim dizer, depurar o paladar, reconhecer na sua ciência os seus sabores, dominar o tempo de maturação do saber. Como pesquisador, o professor é também um produtor de “sabores”: os investiga na experiência do fazer da sua ciência. Cumpre ao professor, na sua prática de ensino, iniciar os seus alunos no gosto pela ciência, para que eles também possam apreciá-la, como faz o degustador com o vinho.
No entanto, não basta ter nome de “enólogo” ou ser degustador renomado se não se sabe apreciar o vinho. É que o título é só um nome, e devemos cuidar de não tomar o nome por outra coisa. A erudição não responde pelo título, mas pelo trabalho e experiência do professor. Ou, trocando em miúdos, o professor e o professor titular se distinguem apenas no nome, não na atividade que lhes são próprias, docência e pesquisa. A titulação de um professor é tão somente o reconhecimento institucional de sua autoridade acadêmica, no topo da carreira docente, após ter percorrido um longo percurso, desde a pós-graduação, mestrado e doutorado, livre-docência e finalmente a sua titulação.
Por outro lado –e é aí que o vinho azeda–, o título confere poder a quem o possui. Da autoridade à hierarquização, os titulares se investem do poder de ocupar cargos dirigentes na universidade, vedado a todos os demais professores. São privilegiados na composição dos diversos órgãos colegiados, responsáveis pela definição dos rumos da universidade, bem como da escolha de seus dirigentes, em detrimento das demais categorias docentes, mais numerosas e de representação reduzida.
Como se, certo dia, os enólogos resolvessem não ser apenas sabedores dos vinhos, mas por saberem diferenciar safra, região e tipo de uva, pensassem ter privilégios: “Ora, quem planta ou pisa nas uvas, não sabe de vinícolas”. É quando o enólogo vira administrador de fazendas, com o título de barão. Mas ele já não se ocupa tanto de saborear vinhos, pois que agora se preocupa mais com a distribuição do produto, baratear os custos de sua produção, com as vendas, e coisas afins, muito alheias da sabedoria do velho vinho. A vocação de enólogo mitigou-se nos negócios.
Nestes termos, saber é poder, desde que um saber reconhecido e devidamente “entitulado” – título que, pelo poder que se lhe reveste, afasta quem o possui dos sabores do vinho ou dos livros. Ou seja, o “saber” perde a referência ao objeto que o determinava enquanto saber, pois era sempre um saber de algo, para ser agora apenas um título, para efeitos de distinção. O que se sabe não mais importa. Para o professor, vale dizer o que se disse do degustador de vinhos: sua vocação trumbicou-se nos afazeres da burocracia universitária.
Não se trata de uma inescrupulosidade dos professores titulares ávidos do exercício do poder, como se o poder tivesse lhes subido às cabeças – o que pode ocasionalmente ser verdadeiro, mas não a regra. Em todo caso, entretanto, os ritos nos quais se reconheciam os valores da vida acadêmica –e fomos reconhecê-los nas taças de vinho– foram de tal modo burocratizados que perderam seu sabor.
As discussões de política acadêmica, por exemplo, nas quais se debatem desde o financiamento de linhas de pesquisa, contratação de professores a compra de livros, abertura de novos cursos, enfim, tudo quanto cuide da vida universitária e seus sabores, foram avinagradas. Não são apreciadas –ou seja, submetidas a juízo e exame– em relação aos valores sob os quais a universidade promove sua razão de ser (ou deveria promover), o ensino e a pesquisa, ou a iniciação ao gosto da ciência e da cultura, e sua preservação. Antes, submete o debate a critérios e valores outros: a eficiência, a produtividade, a relação custo-benefício e que tais – à semelhança do enólogo que se fez barão.
Pois não são meramente as leis ou as ingerências externas –embora, reconhecemos, não são poucos seus efeitos na vida universitária– que afrontam a instituição, sua autonomia em reconhecimento de seus valores e de seu próprio fazer, pelos quais se define. A universidade entranhou valores estranhos a ela e, quanto aos seus próprios valores, só lhes conhece de nome, mas estranha seus sabores. São as marcas de um tempo de dissabores em que não mais se aprecia a arte do vinho, senão como consumo. Em que os velhos livros são esquecidos, a não ser pelo renome do autor, se tanto, ou pela bela capa.
[nov.2001]
Eduardo Garcia C. do Amaral é professor de filosofia da rede estadual de São Paulo e militante do PSOL.
Fonte: Blog Crônicas de Escola