Por Juliano Medeiros – Membro do Diretório Nacional do PSOL e militante do PSOL/RS
Em texto divulgado esta semana, Roberto Robaina, presidente do PSOL gaúcho e principal dirigente do Movimento de Esquerda Socialista (MES), publicou sua avaliação do primeiro debate preparatório à Conferência Eleitoral do PSOL realizado no Rio de Janeiro. Não estive no debate que contou com a presença dos pré-candidatos à Presidência da República, logo, não posso tecer qualquer análise a esse respeito. Entretanto, acredito ser justo comentar alguns dos argumentos apresentados no texto, sobretudo os mais controversos e que melhor revelam as posições do autor.
Como já lhe é característico, Robaina sustenta umas tantas teses polêmicas, entre as quais destaco:
a) Não cabe a um candidato à presidência tecer comentários sobre candidaturas ou fazer juízos de valor entre governos. Ao contrário, o candidato do PSOL deve ser um mero propagandista de nossas avaliações sobre a conjuntura;
b) Martiniano, por seu peso interno no PSOL, é quem reuniria as melhores condições para conduzir as negociações necessárias para viabilizar a Frente de Esquerda;
c) Heloísa Helena é a personificação – isso mesmo, personificação! – do acúmulo da esquerda socialista nos últimos trinta anos, embora admita que seja a única;
d) O candidato do PSOL deve perceber – e Martiniano e seus apoiadores são os que melhor o fazem – a centralidade da luta contra a corrupção como, nas palavras de Robaina, “elemento de desenvolvimento da consciência de classe”;
e) Plínio não representa o “acúmulo da fundação” do PSOL. Por isso, Heloísa Helena e o MES teriam optado por Martiniano, tendo em vista a defesa do “caráter fundacional” do partido.
Responder a todas estas afirmações com o devido cuidado deixaria esta pequena réplica ainda mais longa que o texto de Robaina. Por isso, gostaria de me dedicar a tratar centralmente da última das teses transcritas acima, a saber, a retomada do que chamarei de “mito dos fundacionais”. Estranhamente, esta tese reaparece apenas em momentos de maior tensão interna e some, como por mágica, sempre que Robaina, Luciana Genro & Cia. se aproximam dos setores que ingressaram no PSOL em 2005, no auge da crise do mensalão. Teve força, senão centralidade, por exemplo, quando MES, MTL e CST compuseram um campo para impedir que os militantes que se filiaram ao PSOL naquele ano, exercessem direitos plenos, impondo a famigerada “filiação democrática”. Era a cruzada contra aqueles que queriam “tomar de assalto” o PSOL. Porém, o mito dos fundacionais logo desapareceu de seu discurso quando MES e MTL compuseram a aliança com a APS que garantiu no I Congresso uma maioria estável na direção do partido. O mesmo ocorreu quando se aprovou em aliança com a APS uma política de alianças mais flexível que a rígida Frente de Esquerda, nas eleições municipais de 2008.
Logo, não é de se estranhar que o mito dos fundacionais reapareça neste momento de acirramento da luta interna. Como bem destaca Robaina, a polêmica real é, em última instância, os rumos do PSOL no período seguinte às eleições. Contudo, a tese do “caráter fundacional” do PSOL perdeu vigor e coerência, em que pese o fato dos defensores da pré-candidatura de Martiniano continuarem sustentando-a.
Ocorre, em primeiro lugar, que parte considerável dos que fundaram o PSOL com Luciana Genro, Heloísa Helena e João Fontes, defende outra candidatura: Babá. Este é um elemento importante. Não é apenas um companheiro que acompanhou os radicais na debandada do PT, mas uma de suas principais expressões. Babá foi, sem dúvida, um dos mais destacados críticos aos rumos do Governo Lula, figura central nos debates que resultaram na criação do PSOL. E qual é a opinião de Babá sobre a atual situação do PSOL? Pelas críticas que vem dirigindo à direção do partido, e em especial às suas principais tendências, é difícil encontrar alguma identidade com as posições hoje defendida por MES, MTL ou Heloísa Helena, a começar pela possibilidade de aliança com o PV, duramente criticada por Babá e seus companheiros.
Em segundo lugar, não se pode desprezar que entre os apoiadores da pré-candidatura do companheiro Plínio de Arruda Sampaio exista igualmente companheiros que participaram ativamente da construção do PSOL, a começar por parte dos dirigentes do Enlace que, como militantes da Democracia Socialista no PT, acompanharam de forma corajosa Heloísa Helena após sua expulsão. Além destes, há também companheiros egressos do PSTU que, no decorrer dos debates para a criação do novo partido, convenceram-se de que o PSOL era o instrumento correto para este período histórico, muitos deles hoje organizados no Coletivo Socialismo e Liberdade (CSOL) e pioneiros no lançamento da candidatura de Plínio.
Assim, não há na história do PSOL elementos que justifiquem a idéia de que Martiniano é o legítimo representante do suposto “caráter fundacional” do partido. Assim o pensa a CST em relação a Babá e, provavelmente, o CSOL em relação a Plínio. Cada qual entende que seu candidato melhor representa o “espírito” presente na fundação do PSOL.
Mas ouso ir mais longe. Existe, realmente, algo que justifique a badalação em torno da fundação do PSOL? Evidentemente, o surgimento do PSOL é um fato extraordinário, mas não mais importante que sua existência hoje em dia. Como militante da Ação Popular Socialista, me orgulha a decisão de saída do PT em 2005, quando a maioria das grandes correntes da então chamada “esquerda petista” optaram pelo caminho fácil da repactuação com o Governo Lula. As perdas eleitorais foram grandes e o recomeço difícil – sobretudo se levarmos em conta a recepção nada calorosa oferecida pelos companheiros que haviam criado o PSOL. Porém, em nenhum momento houve dúvida de que nossa escolha foi a melhor e que sair do PT em 2005 (e não em 2003) contribuiu para fortalecer uma posição de crítica ao governo Lula atraindo outros setores para o PSOL.
Onde estaria, então, o que Robaina chama de “caráter fundacional”, este espectro que ronda o partido e divide os que, com dedicação revolucionária e socialista, constroem o PSOL no cotidiano de suas lutas? Penso que o elemento fundador do caráter e identidade do PSOL está presente em seus estatutos e programa: um partido radical, democrático, socialista, comprometido com as lutas do povo e a denúncia do regime de fome e opressão dos bancos e do latifúndio. É nos estatutos e no programa do PSOL que se encontram os parâmetros de nossa identidade. Fora disso, tudo está em permanente debate. Afirmar que são indignos de representar o PSOL os que não romperam com o PT em 2003 ou os que receberam recursos de empresas imperialistas nas eleições passadas, é prática que caminha na direção da simples luta fracional, tão comum à cultura política predominante no PSOL e que deve ser combatida por todos.
Assim, qualquer pré-candidatura, seja a de Plínio, Babá ou Martiniano, deve buscar encarnar as resoluções do PSOL. Acima de tudo, uma candidatura partidária, de unidade. Não lembro de qualquer resolução que aponte “a centralidade a luta contra a corrupção como elemento de desenvolvimento da consciência de classe”. Robaina admite isso, ao citar a ação dos diretórios regionais do RS e DF ao invés de evocar alguma resolução nacional. Nem por isso, podemos afirmar que Martiniano deturpa o “caráter fundacional” do PSOL por defender esta posição. Apontar a centralidade da luta contra a corrupção não afronta os estatutos ou programa do partido, é algo que está em debate, em disputa.
Uma vez comprovado o caráter instrumental do apelo à fundação do PSOL por parte de Robaina e demais apoiadores da pré-candidatura de Martiniano, é preciso destacar o que está nas entrelinha
s do texto: há uma tentativa de questionar o compromisso de Plínio com o PSOL. Primeiro ao dizer textualmente que ele não tem condições de encarnar o “espírito da fundação” do partido, e depois, ao insinuar maliciosamente que Plínio prefere se identificar com o PT ao PSOL nos artigos que tem escrito. Este é o ponto! Na verdade, Robaina ataca aquilo que é mais positivo na pré-candidatura de Plínio, a saber, a capacidade de ampliação para além das fileiras do PSOL, sobretudo junto a setores frustrados com o PT e que buscam uma alternativa identificada com o que Robaina chama de “acúmulo da esquerda socialista nos últimos trinta anos”. Robaina sabe que Plínio é entre todos os pré-candidatos, a melhor expressão deste acúmulo, por isso o ataca.
Desde o lançamento de sua pré-candidatura, Plínio tem dito com todas as letras: será candidato do PSOL e em nome de suas resoluções. Isto fica evidente, por exemplo, quando reivindica a resolução do último Diretório Nacional que manteve as negociações com Marina Silva, mediante uma série de elementos de programa para o debate. Plínio sabe que não está acima do PSOL, e por isso reivindica-se como candidato que pode unificar a maioria do partido. Isto, porém, não significa que Plínio não possa tecer observações ou análises pessoais do processo eleitoral, desde que em consonância com as resoluções partidárias e, é claro, mediado por algum bom senso.
Por fim, é insustentável a tese de que “Martiniano, por seu peso interno no PSOL, é quem reuniria as melhores condições para conduzir as negociações necessárias para viabilizar a Frente de Esquerda”. Justamente porque é Plínio quem, neste momento, possui o “peso interno” do apoio da chapa vencedora no II Congresso do PSOL só ele pode fazer avançar com mais facilidade a aliança com PCB e PSTU.
Fica evidente que o texto de Robaina faz parte do início do segundo round do Congresso do PSOL. Até aí, nada de novo. Mas que isso seja feito em nome das “origens” do PSOL ou do apelo a um inexistente “espírito fundacional” não há nada mais ridículo. Sendo Robaina um verdadeiro trotskista, deveria pensar o que teria acontecido se Lenin tivesse utilizado contra Trotsky seu passado de crítica às posições bolcheviques sobre a concepção do partido, para questionar sua adesão às fileiras revolucionárias. Lembremos que foi precisamente recorrendo ao passado de “inimigo das concepções bolcheviques” que Stalin justificou a expulsão e posterior banimento de Trotsky. Que aprendamos com os descaminhos da história.
Juliano Medeiros é membro do Diretório Nacional do PSOL e militante do PSOL/RS