Por Plínio Arruda Sampaio
Aparentemente, a eleição presidencial do próximo ano não terá maior significado, posto que os programas dos partidos que disputarão a Presidência da República com maiores chances de vitória, são muito semelhantes. Tudo não passará, portanto, do âmbito da luta entre facções de um mesmo bloco político. Em outras palavras, uma eleição tranquila para o establishment burguês.
O único (embora remoto) risco que a burguesia corre, é o de que ocorra, em 2010 alguma alteração brusca nos ventos que sopram do mercado mundial e que responde pela a limitada marola de prosperidade que ganhou o imaginário do povo. Nesta hipótese, haverá dificuldades econômicas e o novo governo terá de abrir o “saco de maldades” para pagar a conta das liberalidades de 2009. Se o povo for exposto a um debate sério na campanha eleitoral, poderão surgir dificuldades.
Por isso, seguindo o conselho do velho Camões (“não tem perdão o capitão que devendo prever, não previu”), todos os cuidados estão sendo tomados diligentemente para que o debate eleitoral de 2010 não saia dos trilhos.
Balizada por uma lei eleitoral restritiva e dominada pelo poder econômico, a campanha deverá obedecer a um script rigoroso, que prescreve unicamente a possibilidade de “discussões técnicas” entre os candidatos: ou seja, um confronto de proposta técnica com proposta técnica, a fim de que os eleitores escolham a que mais lhes agrada. Desse modo, os verdadeiros problemas do país e suas respectivas soluções não virão à tona no processo eleitoral, a fim de não fornecer material combustível para a oposição de esquerda, caso venha a haver turbulência econômica em 2011.
Dois exemplos podem esclarecer bem a afirmação que está sendo feita: de acordo com o script, a discussão relativa à exploração do pré-sal deverá circunscrever-se à alternativa “técnica”: exploração pela Petrobrás ou por uma nova empresa a ser criada. Ora, a colocação do problema nesses termos retira do debate as verdadeiras questões que a descoberta do pré-sal desperta.
Estas questões são: convém contrair uma enorme dívida externa e provocar um inevitável grau de poluição do nosso mar territorial, para extrair um recurso cuja necessidade, a médio e longo prazos, não está devidamente estabelecida?
Além dessa preliminar, o verdadeiro debate sobre o Pré-Sal não pode escamotear outra questão essencial – uma questão, aliás, jamais levantada pelos nossos políticos, por incidir em um tema tabu: a inaceitável situação de desvalimento das nossas Forças Armadas. Uma vez que o limite do mar territorial brasileiro – fixado unilateralmente pelo Brasil a duzentos quilômetros do litoral – não é reconhecido internacionalmente, e tendo em vista que os depósitos de combustível estão localizados além do mar territorial reconhecido por todos os países (doze quilômetros), cabe a pergunta: dispomos de força militar suficiente para assegurar nossa soberania nessa área? Ou será que ignoramos o destino dos países militarmente débeis que atraíram a cobiça internacional para suas riquezas naturais? O Oriente Médio está aí, para evidenciar que não se trata de “teoria conspiratória” alguma. Afinal, quem explica porque os Estados Unidos reativaram a 4ª Frota e estão construindo seis bases militares na Colômbia?
Serra, Dilma, Ciro e Marina certamente não têm respostas para essas questões, ou melhor, têm, mas não podem explicitá-las.
A questão da terra encerrará outra mistificação. O discurso do establishment, celebrando as grandezas do agronegócio, tratará (com sutileza e sem sutileza) de desqualificar a distribuição de terras e os movimentos que a reivindicam. Não faltará intelectual conservador para justificar tamanho absurdo das propriedades que estão se formando com industriosos argumentos teóricos. Todos os candidatos da direita deixarão entrever que a reforma agrária é uma bandeira ultrapassada e nenhum deles alertará a população para os enormes prejuízos da anti-reforma agrária violentamente concentradora que o agronegócio está realizando a toque de caixa, com o beneplácito do governo Lula. A medida provisória 458, recentemente convertida em lei, entrega nada menos do que uma Alemanha e uma França somadas (67 milhões de hectares) aos grileiros de terras públicas – constitucionalmente destinadas ao assentamento de famílias rurais sem terra.
Convém ter claro, porém, que não é o grileiro o beneficiário último desta lei. O grileiro será apenas um intermediário. Sua função será a de vender – diretamente ou por formas transversas – as terras legalizadas pela nova lei a empresas que assegurarão o controle da economia exportadora de soja, cana de açúcar (para fabricação do etanol), carne bovina e madeiras de lei (extraídas na Amazônia) pelo capital dos grandes agronégocios. A soja alimentará o gado dos países desenvolvidos; o etanol, misturado à gasolina, permitirá que a indústria automobilística do primeiro mundo inunde as cidades com automóveis; a carne bovina satisfará o paladar refinado de europeus e norte-americanos; e a celulose responderá pela produção de papel higiênico e guardanapos de papel de alta qualidade, exigidos pelos consumidores do Primeiro Mundo.
Nenhum dos candidatos do establishment burguês, embora entitulem-se de centro e centro-esquerda, ousará denunciar que o ataque do agronegócio não se dirige propriamente às terras (à propriedade do solo agrícola), mas ao próprio território brasileiro, a fim de expulsar dele a população rural e de reduzir a soberania brasileira sobre a operação de uma gigantesca agricultura exportadora. Ninguém se proporá a explicar à população que esse avanço sobre terras que a Constituição reservou para o assentamento da população rural sem terra (seis milhões de famílias) responde à lógica interna de uma operação de dimensão planetária: a montagem de uma economia agrícola que estabelece o monopólio da produção de alimentos, sob o comando de meia dezena de mega transnacionais (Cargill, Monsanto, Sygenta, Dreiffus, Nestlé, etc). As escalas de produção exigidas por esse novo modo de produzir bens agrícolas são superiores às maiores unidades atuais e, portanto, exigem uma concentração de terra ainda maior do que a existente.
Assim como nos casos do pré-sal e da produção agrícola, o debate de todos os demais problemas reais do país – emprego, educação, saúde, habitação, segurança – esconderá, sob o disfarce da “discussão técnica”, a verdadeira essência dos mesmos.
Isto coloca para o segmento lúcido da cidadania a necessidade absoluta de articular uma candidatura que tenha condições de denunciar a farsa eleitoral e de expor, com clareza, bom senso e coragem, as soluções reais, que estão aí à disposição de quem quiser, para os problemas aqui elencados e todos os demais que tornam tão difícil e sofrida a vida do povo trabalhador.
Tal candidatura obviamente só pode surgir na esquerda. Ainda que esses partidos não disponham nem de longe dos meios de publicidade dos partidos da direita, o simples registro dessa voz dissidente contribuirá para a rearticulação do movimento popular e, na hipótese (não totalmente improvável) de que haja turbulências econômicas nos anos vindouros, para oferecer uma bandeira de luta à massa popular.
É indispensável, pois, que os setores sociais capazes de ver com lucidez o risco enorme que o país está correndo com a invasão do capital estrangeiro e a reprimarização da sua economia, apóiem um candidato de esquerda que apresente uma plataforma não capitalista, um discurso corajoso de denuncia e uma campanha claramente de defesa da causa popular.
Não h
á mistério algum na formulação dessa “plataforma do povo”. Como ensinou Marx, as soluções concretas para os problemas do povo encontram-se no interior desses mesmos problemas, de modo que todo o esforço programático consiste simplesmente e recolhê-las e obter apoio político para vencer resistências à sua efetivação.
Um candidato verdadeiramente popular conhece os problemas do povo por contato direto e orgânico com as organizações populares autênticas e, portanto, já chega na campanha com uma noção bastante clara a respeito de tais soluções. Bastará então fazer a articulação dessas aspirações populares com o pensamento teórico dos estudiosos das questões brasileiras para propor uma plataforma eleitoral compatível com as exigências do momento.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 30, de janeiro/2010, do Le Monde Diplomatique Brasil
PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO, 79, é presidente da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária) e ex-consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação). Foi deputado federal constituinte pelo PT-SP e candidato a governador de São Paulo pelo mesmo partido em 1990. Em 2005, filiou-se ao PSOL e concorreu ao governo de São Paulo em 2006. É pré-candidato a presidente da República pelo PSOL.