“A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos se não por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. (…) Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e algumas vezes o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras”.
O texto acima abre o conto “Pai contra mãe”, no qual Machado de Assis relata a estória de Cândido Neves – Candinho – que exerceu o “ofício de pegar escravos fugidos”. Machado de Assis, uma das maiores expressões das letras nacionais de todos os tempos, era filho de mulato Francisco José de Assis, pintor de paredes e descendente de escravos alforriados. Só uma genialidade extraordinária pode fazer com que fosse aceito e festejado pela sociedade da época, apesar da “nódoa” que carregava no sangue. Vê-se logo que para ele era imperioso marcar um afastamento daquela “instituição social”, deixando antever, nas entrelinhas, até certa simpatia difusa pela “ordem social” grotesca e “algumas vezes cruel”.
Estávamos no último quartel do século XIX, o Brasil acabara de “libertar” seus escravos, num 13 de maio, arremessando-os, ao mesmo tempo, no fosso sem fundo da miséria e da exclusão social. Alguns anos antes, em 1850, a Lei das Terras consagrara a terra como mercadoria, cristalizando o latifúndio e sua contraparte, a imoral situação de milhões de brasileiros, condenados a vagar pelas estradas deste país, sem terra e sem esperança.
Era o tempo em que um país se construía nutrindo-se do preconceito contra a população raptada da África e trazida ao Brasil como “peças” e “coisas” para mover a estrutura agro-exportadora escravagista.
Por mais que pareça anacrônico, a máscara de folha-de-flandres atravessou os séculos e permanece mais viva que nunca, muito embora sob outras e mais sofisticadas apresentações.
Camélia vermelha de sangue
O Jornal Nacional de ontem, 12 de maio, exibiu uma matéria que objetivava mostrar uma suposta revalorização histórica do ato da princesa Izabel. A abordagem visou, de forma explícita, expor um contraponto entre o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, e o 13 de maio, cuja importância histórica estaria sendo soterrada pelos defensores das “quotas” e de outras políticas que visam “inventar” uma oposição entre as “raças” em nosso país. Como se sabe, o 20 de novembro, há vários anos, vem sendo comemorado para reverenciar a memória de Zumbi dos Palmares, e através dele, prestar um justo tributo a todos esses séculos de resistência negra em nosso país.
A abolição, segundo a versão da TV da família Marinho, teria sido fruto de um forte movimento popular, que adotara, por décadas, a camélia como símbolo. A princesa Izabel ostentou uma no vestido, para não deixar dúvidas acerca de seus pendores abolicionistas. Rui Barbosa não teria plantado uma árvore dessa flor em vão. Ainda hoje, diz a repórter, a camélia está lá, nos fundos da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, como se destinada a perenizar aquela grande e atualmente esquecida luta social.
Chocante, por sua desfaçatez, mas ao mesmo tempo bem enquadrada no pensamento conservador dominante, a abordagem da matéria global se ancorou numa entrevista com certo sociólogo tucano, um dos mais requisitados quando se trata de desancar as atuais propostas de igualdade racial e de instituição de políticas afirmativas, ora em debate no congresso Nacional. Todo esse esforço retórico (e de grande potencial manipulatório) pretende prosseguir na campanha de direita contra os avanços que os movimentos negros têm alcançado nos últimos anos, com destaque à política de quotas nas universidades públicas.
Passados 118 anos da Lei Áurea, a máscara de folha-de-flandres permanece viva, a amordaçar a sociedade brasileira. Destruí-la por completo, libertando um debate capaz de desnudar uma das sociedades mais desiguais do mundo, também porque erguida sobre a ignomínia do trabalho escravo, é tarefa indispensável para os que permanecem na luta por um Brasil efetivamente livre, justo e democrático.
Blog Luzes da Floresta – Por Edmilson Rodrigues – maio de 2006